“A experiência foi a mestra de todos aqueles que escreveram bem, e assim, citá-la-ei em todos os casos.”
“Todo o nosso conhecimento deriva do que sentimos.”
Verrocchio, discípulo de Donatello, foi o mestre de Leonardo, assim como de Perugino e de Botticelli. O destino, responsável pela reunião de tão grandes talentos na mesma cidade, e até na mesma casa, sabia bem a importância da continuidade na transmissão dos conhecimentos através das gerações.
Em maior ou menor medida, todos aprendemos e nos deixamos influenciar, inclusive os génios, pela cultura da época em que vivemos e pelas oportunidades educativas a que temos acesso. Essa continuidade é útil para manter uma corrente em movimento, à qual novos elos, querendo mover-se com maior velocidade, se unem aproveitando o momento acumulado por quem os precedeu. É essa a importância da preservação de uma tradição que possa passar de geração em geração o melhor da cultura acumulada pelas eras.
Não podemos conceber que Leonardo tivesse pintado a Última Ceia ou dissecado e desenhado as componentes anatómicas de mais de trinta cadáveres humanos, como nenhum outro antes dele, sem nunca ter saído de Vinci – o local onde nasceu – e vivido por vários anos na Oficina de Andrea del Verrocchio, ali onde foi iniciado nas técnicas, nos saberes, nas práticas necessárias ao aprimoramento da sua arte. Podemos ver o génio que despontava já na alma jovem de Leonardo, uma vez que o génio não pode ser criado pela educação nem pela cultura exterior. No entanto, é conviver com almas grandes desperta as potências da própria alma.
De entre todo o conhecimento que nos possam transmitir, pouco se transforma em sabedoria se não passa pela própria experiência. Leonardo poderia passar dias e meses a ouvir Verrocchio falar sobre pintura ou escultura, mas, sem pegar na tinta ou na matéria, nenhum homem, nem Leonardo, poderia ser considerado pintor ou escultor. É necessária a educação, o treino, o trabalho dedicado, o fortalecimento das potências da alma e dos dons da arte, para que o génio possa manifestar-se em todo o seu esplendor.
A frase de Leonardo com que iniciamos este texto demonstra bem a sua relação de insatisfação com o saber de memória, que tanto vigor guardava neste fim de Idade Média em que se repetia como máxima erudição, até à exaustão, até disparates, desde que fossem atribuídos a Aristóteles ou a algum Doutor da Igreja. Talvez por não ter tido as mesmas oportunidades de infância que os seus ilustres contemporâneos – devido à ilegitimidade do seu nascimento – Leonardo mostrava certo desprezo pelo saber escolástico. Preferiu apoiar-se desde cedo no seu percurso autodidata, ainda que aproveitando ao mesmo tempo o acompanhamento do seu mestre. A instrução junto de um mestre, por quem a devoção abre muitas portas para uma aprendizagem bem orientada e segura, em nada diminui a importância da investigação individual e experimentação pessoal. A experiência pessoal é grande aliada do discipulado. A primeira é-nos dada por uma prática que nos permite aprender com os nossos próprios erros e acertos. A segunda conecta-nos com uma corrente intemporal de sabedoria, uma disciplina, um método que guia desde o alto e para o alto.
A saída da Idade Média, na sua transição através do Renascimento para a época da Revolução Científica, deveu muito ao espírito irreverente de não ficar satisfeito com o conhecimento baseado na autoridade, seja ela Aristóteles, Platão ou a própria Igreja. O que mais tarde vemos expresso por Descartes, e ainda antes dele em Francisco Sanches, de que é preciso colocar tudo em dúvida, questionar a validade e o alcance de todo o conhecimento, vemos já também na atitude crítica e de mente aberta de Leonardo.
Em Leonardo, contudo, não se trata de ir contra a tradição, mas de ir mais longe que ela. Não se trata de aplicar a dúvida por sistema, relativizando todos os valores e minando os mais elementares princípios – como acontece nos dias de hoje –, mas de utilizar a dúvida como um método comedido para readaptar cada um dos conhecimentos a cada época, evoluindo-o. Aplicando esta atitude à arte, que para Leonardo não estava separada da ciência, afirma “como a pintura declina e se perde de era para era, quando os pintores têm como único modelo as pinturas dos seus predecessores.”
Quanto à importância concedida por Leonardo à matemática, encontramos a seguinte afirmação: “não deixem nenhum homem que não seja matemático ler a minha obra.” Não só o seu método empirista de aquisição de conhecimento estava à frente do seu tempo – fazendo lembrar Roger Bacon na sua ânsia de experimentação – como também excedeu os seus contemporâneos na forma de apresentação do seu conhecimento, como está patente nos seus estudos sistemáticos e exaustivos de anatomia, onde a observação aguda e paciente alimentavam o traço firme do seu desenho, possivelmente até hoje não superado, a não ser, talvez, pelos computadores.
A ciência, ou seja, o saber que apenas se satisfaz na busca genuína da verdade, ainda que esteja apoiada na continuidade da tradição, avança pelo impulso do génio de alguns. A transmissão e a aprendizagem de mestre a discípulo, além de no exemplo, apoia-se de forma imprescindível no raciocínio e na memória. Para compreender a ciência é preciso usar a lógica e a matemática. Mas para progredir, a ciência precisa algo mais que um encadeamento de raciocínios lógicos, é preciso intuição, é preciso a arte de formular uma nova visão do mundo.
Neste sentido, a ciência é o conhecimento refinado pelas teorias, destilado pelas experiências, acumulado pela tradição. A arte é a invenção, a inovação, a transformação do conhecimento de modo a abrir novos caminhos.
Não foi o encadeamento lógico que levou Copérnico a afirmar como mais plausível a centralidade do Sol em relação à Terra, uma vez que ele próprio não encontrou para isso nenhuma prova definitiva, só encontrada por Galileu na observação das fases de Vénus. Foi antes a beleza da explicação, a intuição de que fazia mais sentido, o pressentimento que no centro de tudo deve estar a luz, e não quem recebe a luz. No caso de Newton, foi preciso uma maçã auxiliá-lo na sua descoberta, não da gravidade, mas da lei matemática que descreve a gravidade. Haverá algo mais irracional que isto?
O método científico parte da Ideia. Ela deve ser intuída, depois de muita observação serena, num salto ascendente da consciência, como um clarão interior que nos dá o sentimento de verdade. Mas esse sentimento de verdade não é suficiente, é necessário formular hipóteses, enquadrá-las matematicamente e, fundamentalmente, levá-la à experimentação. Sem experimentação, não há teoria que mereça esse nome. Mas sem a ideia original, nada haveria para testar com a experiência.
Podemos chamar a esta a Lei da Iluminação, a qual inspira os seres humanos cuja alma chega tão alto que, na sua visão interna, as imagens surgem para além do tempo e do espaço onde residem os seus corpos.
Essa visão interior inspirou profundamente Leonardo, fazendo-a descer até à sua arte e a tudo o mais onde pousava a sua atenção. A união entre arte e ciência, entre invenção e tradição, era para ele como o ar por sobre as ondas do mar: têm a mesma forma, e vão unidas moldando-se mutuamente.
Henrique Cachetas