“Aquele que pode ir à fonte não vai ao jarro de água.”
Para renascer, é preciso ter nascido, vivido e morrido num momento anterior. O que renasce não é um conjunto de formas, mas um conjunto de essências. Renascer significa precisamente voltar a revestir-se de novas formas de modo a que as mesmas essências possam tornar a influir no mundo e fazê-lo progredir cada vez mais na sua compreensão. As essências que voltaram à vida no Renascimento foram as do Mundo Clássico.
A Florença do século XIV, com Petrarca e outros entusiastas dos textos clássicos, começou a reunir um conjunto de manuscritos, principalmente escritos em latim, mas também, depois, a traduzir alguns manuscritos diretamente do grego. Obras como Astronomica de Manilius, De Rerum Natura de Lucrécio, De Aquaeductu Urbis Romae de Frontinus, forneceram importantes contributos para a astronomia (ou astrologia), o estudo da natureza e a arquitetura no século XV. Pouco depois descobriram-se as obras políticas de Cícero, assim como as de arquitetura de Vitrúvio e as obras médicas de Cornélio Celso, que tanto influenciaram Leonardo. Descobriram-se mais obras de Platão e Aristóteles, entrou-se em contacto com conhecimentos de Pitágoras, Arquimedes, Euclides, voltou a ler-se as histórias de Heródoto e a Ilíada e a Odisseia de Homero, as tragédias de Ésquilo, Sófocles e Séneca, os tratados de Hipócrates e Galeno, os estudos de Ptolomeu e de Estrabão. É como se todo o conhecimento (ou o que não se perdeu), que serviu de apoio para a compreensão, sempre incompleta, de certos arquétipos na época clássica, tivesse adormecido durante vários séculos para mais tarde, com os renascentistas, retomar o percurso em direção a uma compreensão mais elevada.
Quando um ser nasce, nasce inteiro, com todas as suas componentes harmonicamente organizadas. Não nascem, de forma separada, primeiro uma cabeça e depois as pernas e os braços. Como todos os seres que nascem, também a civilização tem que nascer inteira. Numa civilização, não renasce primeiro a ciência ou a arte, ou a política ou a medicina, mas renasce tudo ao mesmo tempo. Esta é a resposta a uma lei da natureza, a Lei da Unicidade, uma lei que determina um destino comum a um conjunto de partes relacionadas, pois todas as partes participam de uma mesma unidade. Esse Todo, ou esse Uno essencial, é precisamente o que renasce novamente, o espírito indivisível e intemporal que se vai revestindo de diferentes formas com o passar das eras.
No plano humano, o arquétipo da Unidade manifesta-se no que chamamos o Homem Integral, cujo ideal encarna naqueles seres fora do comum que em si reúnem todas as qualidades que, passados alguns séculos, só se encontrarão de forma parcial em grandes cientistas, artistas ou filósofos. Esse arquétipo do que convencionamos chamar Homem Renascentista condensou na figura de Leonardo, génio notável na física, na anatomia, na engenharia, na matemática, na pintura, escultura, poesia, e tantas outras facetas, tantas quantas pudéssemos conceber como ingredientes principais da civilização.
As ideias e invenções que concebeu, ainda que em semente, foram sendo consecutivamente realizadas e aplicadas com o passar dos séculos. É como se o todo da civilização, tanto ao nível multidisciplinar como a nível temporal, dos séculos vindouros, lhe passasse como um filme pela imaginação e pela firme vontade em realizar os arquétipos que vislumbrava.
Ao que parece, cada civilização tem um conjunto de arquétipos fixos, de hiatos imóveis entre os quais os homens têm que construir uma ponte, um percurso, uma realização, ainda que imperfeitas. Leonardo, como homem integral, entre muitos outros, ajudou a intuir o caminho, a delinear o percurso, a desenhar a ponte através da qual passariam os milhões de seres humanos que, com as suas mãos, preencheriam os pormenores e construiriam a passagem.
Mas não basta a presença dos arquétipos para garantir a bondade da realização. É necessária a compreensão e a manutenção da Unidade. Não bastou proclamar a primazia da Razão para conduzir os destinos humanos. Teria sido necessário, mas foi esquecido, preservar o sentido sagrado de unidade entre o destino do Homem e o destino da Natureza. Ao desenvolver a razão por si mesma, sem um coração de ética transcendente, sem a intuição da Unidade do Mundo – que outras épocas chamaram Deus –, uma das marcas da nossa civilização acabará por ser a razão da sua destruição. A razão afastou o homem da natureza, fragmentou o homem por dentro e separou-o de si mesmo. Para voltar a unir a História com o destino humano, para a reconciliar com a natureza, para aproximar de novo os homens, são de novo necessários homens integrais, homens inteiros e íntegros, unidos por dentro, curados da insana separatividade.
Onde estás, homem íntegro, homem justo, homem novo, homem uno? Junta-te com outros como tu. É imprescindível que faças uma Nova História.