A verdade: objetivo do filósofo
A filosofia é intrinsecamente, amor à verdade. Embora não tenhamos a pretensão de conhecer ou alcançar a verdade absoluta, podemos tomá-la como guia e tentar direcionar até ela as nossas ações no quotidiano, naquilo que depende de nós, ou seja, em pensar e agir, porque a vida nos apresenta oportunidades para fazê-lo. Para tomar essa decisão não é necessário ter estudado Filosofia na universidade, pois todos somos filósofos por natureza.
O que significa pensar e agir com respeito à verdade? Basicamente, comportar-nos como o cavaleiro novato que, uma vez montado no seu cavalo, deve prestar atenção para tentar manejar adequadamente as rédeas da sua montaria, se quiser que ele o leve para onde pretende. Às vezes, isto exige deter o cavalo, que já se está movendo para um dos lados e corrigir o curso, se necessário.
Todos enfrentamos situações novas ao longo do dia, por vezes mascaradas em outras que já conhecemos, e talvez seja aí que esteja a armadilha. Devemos sempre abordar as circunstâncias sem ideias preconcebidas, mas isso exige atenção. Quando se trata de avaliar uma situação ou uma pessoa, isto é importante, porque os julgamentos são uma coisa e os preconceitos (que nunca parecem ser assim) são outra bem diferente; há uma distância filosófica que os separa. Como filósofos, devemos conscientizar e honrar o nosso propósito.
A ligação entre doxa e episteme, isto é, entre opinião e conhecimento é, como disse Fernando Savater, uma relação de antiga inimizade. Parménides já distinguia entre o caminho da verdade e o caminho da opinião como formas de acesso ao conhecimento. Doxa, na filosofia antiga, era o termo que definia um pseudoconhecimento, o falso conhecimento baseado no superficial, e que correspondia mais ao que se acredita ou imagina, do que ao que é verdadeiro. Platão fala de doxóforos ou profissionais da opinião, que explicam as coisas como se realmente soubessem, quando na realidade apenas desempenham um papel fingindo saber, pois a sua verdadeira habilidade está nas palavras, com as quais sabem lidar muito melhor do que com os pensamentos. Poderíamos perguntar se não estamos diante de um fenómeno semelhante quando ouvimos uma série de opiniólogos profissionais que dominam os encontros dos meios de comunicação atuais, capazes de dar uma palestra sobre qualquer tema que lhes seja proposto, independentemente da sua formação ou profissão.
Julgamento ou compreensão
Triste época a nossa! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito (Albert Einstein).
O julgamento é a faculdade pela qual o ser humano pode distinguir o bem do mal e o verdadeiro do falso. O bom senso permite escolher entre as diversas opções, a mais adequada. Ter bom julgamento é ter sanidade, prudência, bom senso; o discernimento provém da capacidade racional da mente humana e consiste em escolher corretamente entre as possibilidades oferecidas.
Preconceito é uma coisa diferente. O Dicionário da língua espanhola explica-nos que preconceito é uma opinião prévia e tenaz sobre algo que se conhece mal. Essa é a chave. Julgamos antes de conhecer e, além disso, insistimos em mantê-lo. O preconceito é uma opinião consolidada que adotamos antes de termos os elementos necessários para avaliar corretamente uma situação ou uma pessoa, e o exteriorizamos, emitindo uma avaliação sem fundamento suficiente, perdendo assim a verdade como ponto de referência.
Na vida quotidiana, são os estereótipos que costumam gerar preconceitos. Um estereótipo é uma ideia simplificada sobre um grupo de pessoas que compartilham certas características; por exemplo: todos os andaluzes são engraçados. Ou seja, classificamos todo o grupo com uma característica comum numa categoria, e o preconceito faz-nos esperar que cada membro do grupo responda a essa característica. Este mecanismo de categorização de pessoas e situações faz-nos rotular as pessoas com base na sua aparência ou na primeira frase que dizem. É nos estereótipos que se escondem muitos preconceitos em relação a determinados grupos sociais.
Essa condição de antecipação do preconceito é o que dificulta a sua superação, justamente porque já está instalado na nossa mente antes de começarmos a raciocinar ou pelo menos tentar, que é um passo que só é dado voluntariamente. Ou seja, se não tivermos vontade de analisar as nossas ações ou inclinações, nem perceberemos que temos algum preconceito.
Hannah Arendt fala sobre preconceitos referentes à política, mas podemos aplicar os seus argumentos aos costumes estabelecidos e às verdades de um grupo social ou geográfico específico. Ela enfatiza que estão intimamente relacionados com a capacidade de julgar, e que para que haja um pleno exercício desta capacidade e da liberdade que lhe é inerente, os julgamentos devem ser apoiados em raciocínios e precedentes bem definidos e verificados.
O perigo de um preconceito e da sua perturbadora eficácia é que normalmente se baseia numa experiência anterior real e concreta, sim, mas esconde (quase sempre inconscientemente) uma parte também real das circunstâncias que o geraram, o que é suficiente para o desviar da verdade. Originalmente, poderia ter sido um critério verdadeiro, conforme as circunstâncias espaciais e temporais específicas. Mas este julgamento, arrastado ao longo do tempo num estado imóvel, congelado, através de uma realidade em constante mudança, sem qualquer revisão ou objeção, torna-se num preconceito estabelecido na mente, a nível individual ou coletivo.
Referindo-se ao histórico ou ao político, dizia Arendt que os preconceitos, embora possam ter uma base no momento do seu aparecimento, impedem a análise da atualidade e bloqueiam-na, o que impossibilita ter uma verdadeira experiência do presente. Assim, a primeira receita para dissolver os preconceitos seria aceitar a missão de redescobrir os julgamentos passados que contêm para encontrar a parte de verdade que eles contêm e consequentemente, a parte de falsidade que eles também abrigam. Aplicados em sentido amplo, podem referir-se a preconceitos coletivos, às vezes muito antigos (aqueles que dizem respeito aos negros que chegaram à América ou aos judeus em diferentes partes do mundo, por exemplo), mas também podem referir-se a períodos de tempo ou grupos mais pequenos em várias escalas, chegando até mesmo ao que prejulgamos sobre um vizinho pela sua aparência física, a sua condição social ou as suas crenças.
O filósofo do século XX, Hans Georg Gadamer, afirma que o preconceito, sendo um julgamento prévio à razão, não precisa obrigatoriamente ser errado, mas sim uma fórmula para experimentar a realidade, pois pode levar-nos tanto à verdade, quanto a verdade ao erro. Estaria condicionado à nossa compreensão. Esse é o ponto crucial. Pode funcionar como uma hipótese de trabalho, cujo valor de verdade requer ser comprovado, e podemos, neste sentido, considerar o preconceito como uma simples suposição e não necessariamente uma conceção errada. Tomada como hipótese, pode levar à verdadeira compreensão de um tema ou situação específica.
Gadamer fala sobre dois grupos principais de preconceitos: os da precipitação e os da autoridade. O primeiro tipo refere-se a julgar algum tipo de informação sem tê-la examinado rigorosamente. O segundo ocorre quando aceitamos acriticamente algo que vem de uma fonte que representa para nós uma autoridade (passada ou presente, escrita ou oral). Damos isso como certo, sem mais delongas. Assim, embora Descartes tenha apontado que o bom senso é naturalmente o mesmo em todos os seres humanos, Kant defendeu a conquista da autonomia de pensamento, porque ocorre frequentemente uma espécie de incapacidade autoculpável, que não é uma deficiência na faculdade de julgar, mas sim um comportamento que renuncia à própria razão por cobardia para enfrentar os critérios estabelecidos. Qualquer tomada de decisão exige um certo esforço.
Querer entender
O filósofo do século XIX, William James dizia que um grande número de pessoas pensa que está pensando quando nada mais faz do que reorganizar os seus preconceitos.
A nossa parte psicológica predispõe-nos a responder de certa forma a um estímulo de acordo com uma resposta anterior, principalmente se não exercitarmos a nossa capacidade crítica. Baseia-se num princípio da economia cognitiva que indica que é mais fácil confirmar uma opinião pessoal baseada nas emoções do que refletir para chegar a uma ideia diferente daquela que tínhamos. Não podemos evitar ter uma atitude mental repleta de pressupostos que nos fazem posicionar e condicionar a nossa interpretação dos factos, mas há uma forma de determinar a validade dos nossos pressupostos, que é levá-los ao nível da consciência.
Se não colocarmos a vontade de bloquear este primeiro impulso e a atenção para valorizá-lo, estaremos constantemente construindo e formulando opiniões superficiais. É necessário, portanto, rever criticamente as próprias posições com alguma frequência, distanciando-nos delas para submetê-las ao exame. O domínio de preconceitos inconscientes pode anular a compreensão de uma situação e impõe-se, portanto, o ato voluntário de análise como condição necessária à capacidade de compreensão. Por isso é importante aumentar a consciência, e assim perceberemos que são sempre falsas as afirmações generalizantes tais como todas as mulheres são exageradas ou todos os homens são iguais. Mesmo que apenas um indivíduo entre milhões se desviasse da norma decretada, o julgamento já seria falso.
Afinal, o preconceito é uma forma distorcida de interpretar a realidade, por isso tomemos mais uma vez a verdade como farol e exercitemos adequadamente o nosso entendimento, que é o que temos de mais humano, segundo as tradições antigas, e o que colocamos num nível acima do animal, pois o plano mental é exclusivo do género humano e, além disso, não se limita apenas à capacidade de raciocinar.
Porém, não basta ter a ferramenta para o fazer – a mente; faz falta aprender a utilizá-la e que funcione da melhor maneira possível. Não basta ter uma bicicleta guardada na garagem para declarar que podemos viajar de bicicleta para onde e quando quisermos. Na primeira vez notaremos que, apesar de sabermos onde estão os pedais, o guiador e o travão, pois manter o equilíbrio requer algumas tentativas iniciais. No caso da mente, nem sabemos exatamente onde estão as peças, quantas são e o que fazem, o que sustenta a hipótese de que é preciso trabalhar muito para obter dela um bom desempenho. E não estamos a falar do cérebro físico, mas sim das capacidades humanas que constituem os verdadeiros poderes que todos temos a nível individual e que muitas vezes permanecem inexplorados.
Aprender a pensar
Emilio Lledó explica que a enorme quantidade de informação que circula no nosso tempo tem um efeito paradoxal, porque em vez de tornar mais ágil a nossa compreensão, podem atrofiá-la pelo excesso e dar origem a reflexos condicionados que fazem saltar de forma incontrolável os comportamentos e opiniões.
Um dos efeitos negativos desta estagnação mental é o fanatismo. A fanatização das opiniões contradiz, segundo Lledó, a faceta dinâmica do viver, a energia vital de sentir e pensar, porque filosofia significa não tanto amor ao conhecimento, mas interesse, tendência, paixão por compreender, por saber, por iluminar [ 1]. A verdade, como dizia Rousseau, não precisa do fanático.
Esta vontade de saber pode estar condicionada por todos os preconceitos que se mantêm ao longo da vida através das opiniões assumidas. Se começarem desde a infância através de uma educação errada e tendenciosa, podem obscurecer a possibilidade de exercício da inteligência crítica, impedindo assim a liberdade individual, pois o indivíduo é sufocado por estereótipos mentais ou frases irracionais que impactam a mente desde cedo, nas quais ainda não foram ativados os seus mecanismos de defesa.
Pelo contrário, um exercício constante das nossas capacidades interiores permite a transformação de opiniões móveis em julgamentos estáveis e o surgimento de convicções, como explica Delia Steinberg: Não é estagnação ou inação; pelo contrário, quem tem convicções vive ao ritmo das ideias, pois tem energia própria e um ritmo natural de desenvolvimento [2]. Uma pessoa com convicções é tolerante, mesmo sendo firme no que faz. Por outro lado, o fanático não o é, pois, só aceita uma ideia, a sua.
Os antigos hindus não se enganaram quando aconselhavam os corretos pensamentos para abordar uma vida estável e com convicções, ou seja, com um horizonte vital longe da dor existencial e com pequenas certezas adquiridas ao longo do caminho. Pensamentos corretos que deveriam ser precedidos por intenções corretas. Um desafio para nós que navegamos neste século XXI. Difícil, mas possível.
[1] Identidad e amitad , Emilio Lledó. Taurus, 2022.
[2] «Conviccion e fanatismo», https://biblioteca.acropolis.org/conviccion-y-fanatismo/
Esmeralda Merino
Publicado na revista Esfinge em 1-03-2024
Imagem de destaque: O julgamento final, escultura no portal central da Catedral de Amiens, França, Savant-fou. Creative Commons.