Smile though your heart is aching
Smile even though it’s breaking
When there are clouds in the sky, you’ll get by
If you smile through your fear and sorrow
Smile and maybe tomorrow
You’ll see the sun come shining through for you
Nat King Cole

Para Arthur Fleck a vida dava-lhe muito poucas razões para sorrir mas, ironicamente, ele sofre de uma doença (segundo o jornal espanhol El País trata-se de epilepsia gelástica) que lhe provoca risos incontroláveis sem um aparente motivo. Nesses momentos, ele nem consegue articular a sua fala, razão pela qual tem um cartão para apresentar às pessoas a explicar a sua condição e, assim, evitar mal-entendidos.

Gotham, inícios da década de 80. Arthur Fleck é um palhaço de festas que vive com a sua mãe Penny, cuja condição de saúde exige que ele lhe dê constante atenção. A cidade onde vive encontra-se numa situação de clivagem social, visto que a taxa de desemprego é alta gerando descontentamento numa fatia da população contra a elite rica da metrópole.

Estando empregado numa agência de talentos, a aspiração de Arthur é chegar a realizar stand-up comedy, mas somente consegue arranjar trabalhos como palhaço a animar crianças ou a publicitar lojas na rua. É enquanto se encontra com um cartaz publicitário à porta de uma loja que é alvo de chacota e é agredido por alguns adolescentes após estes lhe terem roubado o cartaz que transportava. Era o embate com a dura realidade de Gotham, onde a corrupção, o crime e a violência reinavam tornando as pessoas frias e indiferentes umas com as outras. Um retrato fiel de muitas das atuais sociedades modernas, em que cada um vive para si, para a satisfação das suas necessidades e não se importa com o bem-estar nem com as necessidades dos outros membros da comunidade onde se encontra inserido. Cada indivíduo constrói à sua volta um muro de indiferença onde a flor do altruísmo não consegue se enraizar.

Uma pessoa insegura, solitária, com problemas psiquiátricos e com a referida doença, como Arthur tem dificuldade em viver a vida neste ambiente agressivo e violento.

Um dos seus colegas de trabalho, Randall, propõe-lhe que comece a andar com uma arma de fogo para se poder proteger e oferece-lhe uma. Com alguma relutância Fleck acede. Este gesto marcaria o início de uma série de eventos que o iriam transportar para uma viagem cada vez sofrida e cada vez mais sinistra.

O primeiro incidente ocorre no hospital, quando se encontrava a animar as crianças ali internadas e o referido revólver lhe cai do bolso perante o olhar atónito de todos os presentes. Dois elementos negativos vão marcar Arthur logo de seguida: o seu despedimento e o facto de não ter tido o apoio de Randall, que mente ao empregador de ambos dizendo que não tinha sido ele a fornecer a arma a Arthur, mas que tinha sido o próprio a adquiri-la.

O segundo incidente marcante ocorre no metro, quando, numa noite, Fleck retorna a casa: três homens de negócios bêbados, da Wayne Entreprises, encontram-se a incomodar uma passageira e quando Arthur começa a rir devido à sua doença viram a sua atenção para ele e agridem-no violentamente. O peso do mundo parecia-lhe cair em cima. Encontrando-se no limite do sofrimento e da humilhação que conseguia suportar, Arthur utiliza a sua arma e alveja dois dos agressores e mata o terceiro deles.

Ele estava farto de ser alvo da violência dos outros. Ninguém o compreendia, ninguém lhe estendia a mão para o ajudar minimamente. Sentia-se rejeitado, insignificante e humilhado. Toda a revolta que tinha estado a acumular-se no seu interior expressou-se naquele gesto violento.

O sofrimento faz parte da vida, mas para o conseguir suportar há que entender a sua causa e o que fazer para o superar. Muitas vezes é necessário o apoio ou a orientação de alguém, para que se consiga suportar a dor. Sem isso, muitas vezes o ser humano cede e a loucura ou a violência instalam-se por entre as brechas de uma mente quebrada.

A busca por momentos felizes na sua triste vida fez com que imaginasse ter uma relação com uma das vizinhas do prédio onde morava. Alguém que o inspirava a ser comediante de palco, que estava ao seu lado nos momentos de necessidade, que simplesmente passeava com ele pelas ruas da cidade e lhe sorria com carinho. Uma companheira que lhe mostrava, no fundo, o lado bom da vida, algo que, provavelmente, ele já almejava há muito tempo.

Entretanto, o seu ato de violência no metro tinha gerado um efeito inesperado. A condenação pública do mesmo por parte de Thomas Wayne, um rico empresário e filantropo, pai de Bruce Wayne (o futuro Batman), que apelidou todos os que têm inveja das pessoas de sucesso de “palhaços”, gerou vários tumultos, com protestantes a vestirem máscaras de palhaço, à imagem de Arthur, a insurgirem-se contra a classe abastada de Gotham.

A sociedade estava saturada devido à desigualdade existente, que se refletia numa grande insegurança nas ruas, na elevada taxa de criminalidade e na dificuldade em encontrar empregos estáveis que proporcionassem uma qualidade de vida mínima. Neste cenário, o facto dos três empregados de uma grande empresa terem sido alvejados surgiu como um ato de alguém que se tinha revoltado contra o estado em que as coisas se encontravam, tornou-se o símbolo da revolta silenciosa que existia, mas que agora encontrava o caudal para se expressar.

Tal como a nível individual ocorria com Arthur, também a sociedade tinha perdido a esperança na melhoria das suas condições, fruto da inépcia ou falta de interesse da sua classe dirigente. Exemplo disso é o que ocorre com o próprio Arthur, que vê a sua medicação ser anulada devido a cortes financeiros que forçam a encerrar o programa de Serviço Social. É mais uma acha para a fogueira da insatisfação.

Já Platão referia, na sua magnífica, mas muitas vezes desconsiderada obra, A República, que quando numa cidade se veem mendigos, “haverá algures na vizinhança ladrões dissimulados, carteiristas, salteadores de templos e autores de malfeitorias de toda a espécie.”. O filósofo estava a caracterizar uma sociedade oligárquica, onde a busca pela riqueza assumia um papel preponderante. A insaciável ambição faz com que tudo o resto seja indiferente, negligenciando-se a proteção aos mais desfavorecidos. Como resultado deste excesso no interesse na acumulação de riquezas surge a violência.

Em Arthur, essa via ia-se abrindo cada vez mais no seu interior, pois cada acontecimento na sua vida ia acrescentando uma fratura por onde a raiva e a loucura poderiam passar sem grande dificuldade. E o acontecimento seguinte ia ser determinante.

No seguimento de ter lido uma carta da sua mãe para Thomas Wayne confrontando-o com o fato de Arthur ser seu filho, Fleck acaba por descobrir que ela era uma paciente psiquiátrica no Asilo Arkham e que o tinha adotado quando ele era bebé. A sua infância tinha sido má, pois Penny tinha um namorado violento que abusava dela e batia no pequeno Arthur. O seu mundo acabara de ruir. A mãe, que o tinha encorajado a ser especial e a trazer um sorriso ao rosto das pessoas, tinha-lhe mentido. A pessoa a quem tinha devotado tanta atenção e que o tinha impedido de mergulhar em estados pior de ânimo, afinal tinha sido responsável por muito do sofrimento que tinha tido em criança. Era uma coisa que não podia suportar e, portanto, irado e descontrolado, dirige-se ao hospital onde ela se encontrava internada devido a um derrame e confronta-a com os fatos, terminando por sufoca-la com uma almofada. Já nada parecia poder parar a ascensão de Joker. Arthur Fleck era cada vez mais um fantasma, aliás, alguma vez terá existido? Quem era ele, afinal? Se todo o seu passado era uma mentira, ele deveria permanecer Arthur Fleck?

Outro acontecimento ocorre em paralelo às desgraças de Arthur. Uma apresentação sua de stand-up comedy, num clube, torna-se viral e acaba por ir parar ao programa do seu ídolo Murray Franklin, que o ridiculariza num primeiro momento. Porém, devido ao sucesso com a audiência do seu show, Murray convida Arthur a ir ao seu programa.

Enquanto se preparava para ir ao estúdio onde o show era gravado, é visitado por dois dos seus ex-colegas, Randall e Gary. Encontrando-se já no limiar da loucura, Arthur mata de forma brutal Randall por vingança pela sua cobardia e traição, mas deixa Gary vivo, pois ele tinha sido o único a alguma vez trata-lo com consideração. Joker já tinha nascido, Arthur Fleck já era passado. Ao sair pela porta do seu apartamento, a figura que caminha pelos corredores já não se apresenta insegura e cabisbaixa, emergindo antes alguém com uma presença segura e convicta. Pela primeira vez surge a figura que se tornará icónica: trajando um fato grená, com a cara toda pintada de branco e com os lábios a vermelho, todo o conjunto encimado por um luxuriante cabelo verde. O rei da loucura e senhor de um sorriso maquiavélico surge em cena para tomar Gotham de surpresa.

Aparências. Flickr

Paralelamente, uma enorme manifestação está a ocorrer na cidade, e dezenas de pessoas com máscaras de palhaço percorrem as ruas prenunciando uma noite agitada. A caminho do estúdio, Joker é perseguido por dois polícias que se encontravam a investigar o homicídio do empresário da Wayne Enterpresises. Ele consegue escapar no meio da confusão que se gera após um dos agentes da lei atirar num manifestante.

Já no estúdio, Arthur exige que Murray o apresente como Joker devido à gozação que tinha feito previamente sobre a sua atuação. Relutantemente o apresentador concorda e sob as luzes da ribalta o lunático personagem é introduzido em cena sob uma chuva de aplausos. Rapidamente o humor dos espetadores muda devido às mórbidas piadas do desinibido e confiante Joker.

Ele critica o sistema, que decide o que é certo e errado; o que tem graça e o que não tem. E confessa que atacou os empregados das Wayne Enterprises porque eles eram horríveis. “Toda a gente é horrível nos dias que correm”, afirma, e reforça esta ideia dizendo que “todos gritam uns com os outros, já ninguém é civilizado.”. Para ele, o sistema era culpado pela atual situação de instabilidade e violência. A elite vivia num mundo à parte, estava distante da realidade circundante, em que pessoas anónimas como Arthur viviam uma vida dura e quase sem conforto algum.

Aquilo que o Joker diz não deixa de descrever a realidade quotidiana em muitos locais do mundo. Sociedades onde as pessoas têm que lutar dia a dia por melhores condições de vida, com baixos salários e fracas condições laborais (por exemplo, não ter hora de almoço por não se poder abandonar o posto e ter que comer qualquer coisa por trás de uma cortina; ter que almoçar em locais com poucas condições higiénicas; fazer turnos de horas enormes; ter que estar disponível para trabalhar quando se é convocado, sem ter em conta períodos de descanso ou de poder estar com a família, etc.), onde os preços de habitações e bens de consumo aumentam constantemente. Neste contexto surgem aqueles que, para escapar a esta situação, optam por seguir uma via ilegal, assaltando pessoas ou tornando-se corruptos, conseguindo assim ganhos suficientes para terem uma vida mais confortável, mas à custa do sofrimento alheio.

Como consequência existem convulsões sociais que paralisam a sociedade com greves e manifestações constantes. Porém, se as classes dirigentes continuarem a não dar atenção surge a violência como elemento persuasor, causando uma disrupção na sociedade e levando dezenas, se não centenas, de pessoas a passarem por muitos momentos de sofrimento.

O apresentador do talk-show, Murray Franklin, procura argumentar com Joker conseguindo somente ser morto em plena transmissão em direto do seu programa. O vilão louco é preso, mas a cidade está num caos tremendo e o carro policial onde seguia é abalroado e o corpo inconsciente de Joker é resgatado por alguns dos manifestantes. Ele desperta e exulta-se com o cenário com que se depara. Era a loucura coletiva, o caos infindável. Ele ergue os braços e ri. Já iria deixar de ser anónimo, agora sentia que era alguém.

Realizado por Todd Philips, Joker é um filme que não deixa ninguém indiferente: ou se gosta ou não se gosta. Retrata de uma forma propositadamente negra todo o processo de decadência de alguém que é um desajustado da sociedade e que vai perdendo tudo aquilo em que se apoiava para manter um mínimo de sanidade. Mostra uma sociedade completamente indiferente para com o próximo.

Visualmente a fotografia é escura, como que a querer mostrar a tristeza da vida de Arthur. O argumento parece estar construído de uma forma que faz com que uma fatia das pessoas possa sentir empatia com Arthur, aqueles que são os esquecidos, ignorados e maltratados da sociedade. Esse era um receio latente na sociedade americana, pois muitos tinham medo de que o filme inspirasse vários tipos de insurreições contra as autoridades.

Aquilo que pode impactar negativamente os espetadores é a falta de aspetos positivos, de algo que seja uma chama de esperança num mundo melhor. Talvez isso torne o filme um pouco duro e difícil de desfrutar confortavelmente.

Há que, no entanto, destacar o tremendo desempenho de Joaquin Phoenix, no papel de Arthur Fleck/Joker. O ator, que já tinha habituado as audiências a grandes atuações, como, por exemplo, em Gladiator (Ridley Scott; 2000) onde interpreta o papel do louco imperador Comodo; ou em O Mentor (Paul Thomas Anderson; 2012), representando a figura de Freddie Quell, um veterano de II Guerra Mundial que procura ajustar-se na sociedade e conhece o líder de um movimento religioso. No entanto, neste parece suplantar-se conseguindo dar força à personagem através da sua expressividade facial e da sua linguagem corporal. O ator teve que perder cerca de 23 kg para poder interpretar a personagem.

Icónica a dança que Joker realiza nas escadas perto de sua casa quando se dirige para o programa de Murray Franklin.

Para finalizar, é curioso que no ano em que Batman completou 80 anos, seja a figura do seu arqui-inimigo a que ganha um grande protagonismo, ultrapassando em Portugal, pelo menos, as receitas de bilheteira de todos os filmes do Homem-Morcego. Um filme que vale a pena ver.

Cleto Saldanha