O navegador João de Lisboa (meados do Séc. Xv-1526) merece um lugar de relevo na História da Expansão e dos Descobrimentos Portugueses, pois para além de ter sido um dos pilotos portugueses mais notáveis do século XV e princípios do século XVI, dedicou parte da sua vida a congregar dados geográficos das mais variadas latitudes e longitudes do globo terrestre, assim como aprofundou as observações experimentais sobre o fenómeno do magnetismo terrestre, cujo esforço culminou na produção da obra designada «Livro de Marinharia», o qual inclui o importante «Tratado da agulha de marear achado por João de Lisboa no anno de 1514, pollo que se pode saber em qualquer parte que homem estiver quanto he arredado do meridiano vero pelo varear das agulhas [bússolas]». Sem qualquer exagero, pode-se afirmar que João de Lisboa foi o pioneiro dos estudos sobre a variação da declinação magnética, precursor dos trabalhos referenciais da autoria de D. João de Castro, que constam no «Roteiro de Lisboa a Goa» de 1538, e de Luís Teixeira (c. 1585), naquele que é considerado o primeiro planisfério que contém um traçado de linhas isogónicas (linhas de igual declinação magnética). A obra é reveladora da sua vastíssima experiência de navegação, a avaliar pela riqueza descritiva patenteada nos roteiros entre a Europa e o Extremo Oriente, e pela forma minuciosa como descreve o «Livro de Marinharia», aditando procedimentos para a medição de alturas das Estrela Polar e Cruzeiro do Sul, e o método para determinação da distância a terra, quando esta era vista pela proa. O seu nome está ainda ligado a um rio que aparece nas cartas do século XVI, a norte do Brasil, para além de ter participado em 1506, como mestre da nau de Santiago, na poderosa armada comandada por Tristão da Cunha, onde seguiu também, aquele que viria a ser Governador da Índia e 2º Vice-Rei, Afonso de Albuquerque.
Desconhece-se a data exata do seu nascimento, mas segundo Brito Rebelo, deve ter nascido por volta de meados do século XV, e a sua morte ocorreu em finais de 1526, conforme atesta uma carta de D. João III, datada de 15 de novembro, que nomeava Fernando Afonso seu patrão, em substituição de João de Lisboa, por motivo de sua morte.
A questão da declinação magnética foi pela primeira vez mencionada no diário da primeira viagem de Cristóvão Colon ao Novo Mundo, em 30 de setembro de 1492, quando descreveu que «las agujas noroestean una cuarta», o que faz pressupor que este fenómeno já era conhecido dos navegadores portugueses que viajaram para o ocidente, reconhecendo-se que a formação do Almirante das Índias, foi consolidada em Portugal. Mas foi o «Tratado da agulha de marear» de João de Lisboa, um dos pioneiros na sistematização deste assunto, que no prólogo do mesmo, explica os termos «nordestear» e «noroestear», que naturalmente eram usuais na linguagem da marinharia portuguesa: «Primeiramente has de saber que as agulhas todas, assim genovezas como flamengas, nordesteam e noroesteam, segundo os lugares onde estão, porque se forem do meridiano vero para o oriente, fazem conhecimento para nordeste, tanto quanto vos dele afastais; e sendo do meridiano para o ocidente, fazem conhecimento para o noroeste; e isto se diz noroestear e nordestear». João de Lisboa ensaiou uma explicação muito rudimentar para este fenómeno, todavia parece muito interessante, no quadro do estado da arte e conhecimento científico: «E temos sabido que a dita agulha de marear tem um ferro de norte a sul e sendo este ferro cevado na pedra de cevar [magnetita], assim o polo norte como o polo sul são tão sujeitos aos polos ártico e antártico do mundo pelo dito cevamento da pedra, por Nosso Senhor influir nela uma tão singular virtude, que em nenhuma parte repousa nem descansa, senão quando direitamente com a flor de liz se enfiam em direito com os ditos polos do mundo». Não parecendo convencido da explicação, acrescentou que: «neste caso possa haver outras considerações, esta aprovo por mui boa, por a ter já imaginado por muitos dias que me tenho dado à sua contemplação»
De acordo com Luís de Albuquerque, a pertinência do estudo de João de Lisboa, no «Tratado da agulha de marear», alertava os navegadores, pilotos e cartógrafos para os erros que estavam presentes nas cartas de navegação tradicionais, que eram traçadas através de rumos magnéticos das agulhas, facto que originava distorções na localização das costas marítimas. Esta interpretação de João de Lisboa deve ser considerada como uma inovação para a época, que reconhecendo este erro, aconselhava que se operassem os mesmos procedimentos de navegação baseados no rumo e estima, até que a cartografia fosse corrigida. Eis a passagem no seu tratado que desperta para esta configuração: «E por que as mais das cartas em suas arrumações são falsas por respeito dos pergaminhos não se assentarem bem ao arrumar e haver neles muitos intervalos e outras coisas vos darei regra mais segura e melhor para carteardes pela altura e isto não ha de ser ao modo da esquadria, somente pela linha direita como se segue…».
Neste seu «Tratado da agulha de marear», João de Lisboa faz denotar uma persistente atração pelo tema da declinação magnética, ao ponto de estabelecer procedimentos para a conceção das bússolas, e para a operação das mesmas, descrevendo o valor de cada quarta da agulha que «noroestear e nordestear» e o processo para determinação da distância a que se encontrava o meridiano verdadeiro. O seu esforço e mérito eram justificados pela busca incessante da compreensão do fenómeno, no sentido de se obter um procedimento correto para a determinação exata das coordenadas geográficas. Embora este tratado contenha um procedimento de navegação que estabelecia uma proporcionalidade entre a longitude e a declinação magnética, que há muito se sabe estar distorcido da realidade, contudo, não deixa de ser interessante que este procedimento tenha sido adotado por largo tempo pela generalidade dos navegadores.
Cerca de 85 anos após João de Lisboa produzir o seu «Tratado da agulha de marear», são publicados os trabalhos dos físicos William Gilbert e de Simon Stevin, para ensaiarem uma explicação sobre o magnetismo terrestre, na posse de mais dados científicos. William Gilbert declara na sua obra «De Magnete, Magneticisque Corporibus, et de Magno Magnete Tellure, London, 1600 (Sobre os ímanes, os corpos magnéticos e o grande íman terrestre)», que recorreu a medidas executadas por pilotos portugueses, e Simon Stevin regista valores de autores portugueses, na sua obra «De Havenvindig, 1599 (Procura de Posição)», não identificando as fontes, em conformidade com os estudos de Luís de Albuquerque.
O navegador João de Lisboa merece o reconhecimento de grande precursor dos estudo sobre o magnetismo terrestre que foram incrementados a partir de meados do século XVI, e considerando ainda que no seu tempo, eram débeis os fundamentos científicos para exploração de tema tão complexo, aliás, como provaram os anos vindouros, com a redescoberta do fenómeno por Guillame Dennis, de Nieppe, em 1666.
Bibliografia:
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Albuquerque, Luís de, O Tratado da Agulha de Marear de João de Lisboa – Reconstituição do seu texto seguido de uma versão francesa com anotações, Separata da Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXIX, Coimbra: Imprensa de Coimbra, Lda., 1981, pp. 129-162.
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Albuquerque, Luís de, Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses, Biblioteca Breve, Vol. 73, Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Divisão de Publicações, 1983.
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Rebello, Jacinto Ignacio de Brito (copiado e coordenado), Livro de Marinharia, Tratado da Agulha de Marear de João de Lisboa – Roteiros, sondas e outros conheci- mentos relativos à navegação, Lisboa: Imprensa de Libanio da Silva, 1903.