Depois da apresentação e de algumas frases cerimoniais, já que mais do que uma prova era um ritual mil vezes repetido no Templo de Philae, anunciaram a Hipátia que as perguntas versariam sobre o significado da Deus Ísis, Mãe e Regente do Templo em que se encontravam; ou seja, o exame era sobre os Mistérios Religiosos, a face mais externa e popular da mística sem nome nem forma que era vivida no coração de cada Aspirante e na parte interna do Templo.

Devia explicar vários dos epítetos da Deusa, da sua excelência ou aretê, como diriam os gregos. Tantas vezes Hipátia tinha meditado neste tema que se sentiu mais do que aprovada, abençoada pela Deusa Ísis, a dos Mil Nomes.

— Porque a Nossa Senhora, a Deusa Ísis, está representada por um trono, cujo assento é cúbico? — perguntou um Sacerdote.

Hipátia respondeu:

— Ísis é a Mãe Natureza, e a sua Alma; ambas representadas por um cubo, que tem seis faces, o número que rege a justiça e a natureza. Se desenvolvemos este cubo obtemos uma cruz que significa que o Espírito Divino está crucificado Nela. Cruz cuja medida é de três faces na horizontal e quatro faces na vertical o que nos dá indicação do número 7, o número chave que dá forma a esta Natureza, as setes cores da luz una.

— O cubo sugere-nos, também — continuou a jovem Aspirante — a forte coesão que existe na Natureza, em que nada se perde, nada deixa de ser Natureza e é desperdiçado. Na Natureza a morte não existe, sendo que tudo é uma incessante transformação. Os quatro ângulos retos de cada uma das faces significam, ao serem perfeitamente iguais e abarcarem 360º, a perfeita justiça com que é governada esta natureza; quase poderíamos dizer que é a sua essência. Este cubo é também um assento da Divindade, pois a Natureza é considerada não só nos seus corpos materiais e com forma (o cubo propriamente dito) mas também na corrente de vida invisível que a usa como cenário. Não é só o trono, o corpo da Natureza; mas a Deusa que se senta no referido trono, a Alma, a Vida-Una que peregrina na Eternidade. Séneca dizia que Deus é o Todo que vemos e o que não vemos. Esse Todo em Ação é a Natureza embora os homens, na sua ignorância, somente chamem natureza ao que podem perceber através dos seus limitados sentidos corporais, ao que vive fugazmente num presente que é uma ilusão destes sentidos.

— O cubo expressa também a Estabilidade — disse Hipátia — outro dos atributos da Natureza, pois o cubo é o sólido platónico mais estável. Na natureza a tensão dos opostos, a mudança, a luta pela sobrevivência, é perpétua mas, no entanto, ela própria jamais se desestabiliza. Como já observámos, no terraço do templo, as estrelas e, portanto, o nosso Sol e a sua filha irmã, a nossa Mãe Terra, podem morrer; mas a Natureza continua a ser ela mesma, e do seu seio fará nascer outra vez uma infinidade de estrelas, mesmo que o mundo inteiro fosse consumido em chamas.

Io (à esquerda, com chifres) é recebida no Egito por Isis / Wikimedia Commons

Io (à esquerda, com chifres) é recebida no Egito por Isis / Wikimedia Commons

 

— O hieróglifo de Ísis — prosseguiu — é uma perspetiva desse trono, com um encosto que se converte, assim, numa espécie de escada, pois noutra chave, Ísis, a Natureza, é a escada que permite ao homem reencontrar-se com Deus, sendo sempre o elemento intermédio; água e ar, entre a terra e o céu, o mundo psíquico que nos reveste e faz com que sintamos e entremos, portanto, no dinamismo da vida, com as suas alegrias e as suas tragédias.

— Porque dizemos que tem mil nomes? — perguntou outro sacerdote, de idade avançada que esboçava um sorriso, talvez surpreendido por uma resposta tão brilhante numa quase adolescente como Hipátia.

— Os mil nomes são os que suspiram todos os seres vivos, amando a vida — disse a jovem — e as almas querendo regressar ao seio do Pai Invisível, que é representado como um Olho sobre o Trono, uma das formas de Osíris.

Mil nomes porque qualquer caminho que seja escolhido, se é feito com o coração puro, é amparado por Ela, a Vida, e nele se instrui com base em experiências, acertos e erros. Mil nomes porque o canto de vida provém, como a chuva do céu, desde a infinidade de estrelas das quais a nossa Mãe Terra é um ponto ínfimo, «perdido» no espaço. Mil nomes porque desde há milhões de anos, desde que o ser humano teve consciência sobre o significado interno da vida, rende a esta Deusa culto como mil nomes e formas. Hoje mesmo, e somente no Império Romano e nos povos que ele ampara e civiliza, os nomes são quase infinitos: Tanit, Astarté, Maria, Vénus, Sekinah, Eva… e tantos outros deuses gregos, romanos e egípcios, por exemplo. Na Índia, ensinava-nos um sábio em Alexandria, rendem culto aos 330 milhões de Deuses, mas todos estes não são mais do que as misteriosas ondulações desta Grande Mãe, deste Grande Mar de Amor, Sabedoria, Energia e Vida que nós chamamos Ísis.

— Porque é que Ísis diz nas orações que é a governadora de toda a terra? — perguntou uma Sacerdotisa.

Isis a segurar um sistro / wikipedia

— Se um raio de luz penetra e se reflete nas mil faces de um cristal vemos uma grande quantidade de resplendores. — respondeu Hipátia — do mesmo modo, aquilo que a Deusa Ísis representa assume diferentes significados de acordo com «a chave de interpretação» que usar­mos. E em todos, ela é «a governadora». Ísis é a Vida, e a vida reina sobre a morte, pois tudo aquilo que na aparência está morto é reabsorvido pelos seres vivos, para seu alimento. E mesmo que não o fosse, ao observar atentamente ou graças às disciplinas mistéricas, sabemos que numa gota de água existe uma infinidade de seres vivos, que estas pequenas vidas respiram, ínfimas, em todas as partes e que inclusive entram e formam parte da composição de outros seres vivos, como, por exemplo, os seres humanos. A Vida reina sobre a morte, porque a morte não existe, é uma ilusão, uma passagem, um deixar de ver as coisas de uma maneira e vê-las de outra.

— É «governadora de toda a terra» — continuou Hipátia — porque cada estrela, cada átomo no espaço — e o próprio espaço — homogéneo no seu estado mais puro, está vivo, é vida, é um suporte vivo da vida que passa através dele. Ísis representa também a nossa Mãe Terra, e nesse sentido governa sobre todos os continentes, sobre a terra, a água, o ar e o fogo que nela existem; sobre os seres humanos que nascem nela e que nela irão morrer… e renascer. Reina sobre os climas, sobre os diferentes tipos de ventos, sobre a diferente composição de cada terra e como incide a luz, diferenciando tudo isto gerando assim diferentes caracteres nas raças humanas.

— Ísis é também o Eterno Feminino e quem não se rende perante o seu régio e amável poder? — afirmou a jovem — é o Amor e a Vida que unem e separam as almas para que continuem o seu caminho de aprendizagem. Ísis é também a Lua, e não governa esta as mudanças na natureza aqui na Terra? as marés das águas e da mulher, e mesmo as marés dos rios de fogo no interior da Terra. Toda a Natureza avança com a maré crescente dos primeiros catorze dias da lua e retrocede nos catorze seguintes. Os espíritos da Natureza, fadas, gnomos, ondinas, elfos… Seguem também este ciclo e assim o melhor momento de começar qualquer trabalho, qualquer obra nesta Terra é com a lua crescente.

— E, por fim — concluiu Hipátia — Ísis é Sírio, a mãe da alma e a raiz eterna da nossa consciência, o coração do nosso Cosmos, a Senhora da Grande Inundação, das terras de Kem e também do rio da nossa vida interior. Não é o seu cetro que governa a Natureza inteira? E se elevamos ainda mais com a imaginação o olho da Alma não é a deusa leoa, Sekhmet uma forma de Ísis? E não é Ela, a Senhora, que governa o destino humano e o dos astros; não é a Senhora do Espaço e da Lei que o rege, de modo que com a sua garra poderosa arrasta as almas, humanas e estelares, mesmo que seja violentamente, para que voltem à Vida redentora, para que não se percam para sempre, para que não se petrifiquem? Sim, podemos dizer que Ela é sempre a Eterna Governadora de toda a terra, governadora ainda do Tempo, embora nele nasça e renasça como corrente de vida sempre fértil. Sempre virgem, sempre pura e sempre mãe. É governadora porque é a Mãe: a Mãe do Sol, como o Espaço Matriz, a Mãe da Terra, ou seja, a Lua; a Mãe da Alma humana, em relação com Sírio, a Mãe do Tempo como Vida Una pois não é o tempo só a medida do ritmo desta Vida? A Mãe do Universo pois, não é este gigantesco Ser Vivo que nasce e morre? Ísis alimenta-o, sustenta-o, fê-lo nascer, morrerá no seu seio virgem e nele renascerá novamente.

Sekhmet, British Museum / Joan Lansberry

Sekhmet, British Museum / Joan Lansberry

E assim durante mais de três horas, as perguntas foram-se sucedendo; e as respostas sábias e inspiradas pareciam encher de luz, de alegria, vida e música a assembleia e a própria Sala do Templo. Sala cujos muros em pedra dura não esqueceriam jamais a referida cena, talvez o mais sublime exame até que o próprio Templo fosse profanado e destruído pelas hordas de fanáticos cristãos do deserto. Quem sabe se no seu sonho de pedra as paredes do Templo ainda recordam e podem sussurrar aquilo que Hipátia respondeu…?

— Porque é que Ísis diz que descobriu o trigo para a Humanidade? Porque é que nos textos sagrados Ísis afirma que se levanta com a Estrela Cão (Sírio)? Porque é a Senhora dos Sete Escorpiões e o que significa isto? Qual é o significado do facto de ter roubado o nome secreto ao Deus Sol Rá e de o ter outorgado aos homens? Porque é a grande Maga? O que simboliza o seu laço? Porque são as suas vestes, em geral, de cor vermelha? Porque diz Ísis que mostra a senda às estrelas e que regula o curso do Sol e da Lua? Porque é a protetora dos pescadores e dos marinheiros? Porque diz que é quem ensinou a Iniciação nos Mistérios e também a que ensinou como reverenciar as imagens dos Deuses? Porque diz que é a que permitiu aos seres humanos diferenciar o bom e o mau e a ver sempre o que é verdade como bom? Porque é chamada Senhora dos Juramentos, porque nos ensinou que nada deve inspirar tanto terror sagrado como um Juramento? Porque é chamada também de Senhora da Guerra e portadora do raio? Porque é a Senhora da chuva? Porque diz que conquistou o Destino e que o Destino lhe obedece e que faz surgir as ilhas desde as profundezas até à luz e que faz inavegável aquilo que antes era navegável? Ao dizer que Ela está nos raios do Sol, qual é o significado astronómico e alquímico desta afirmação? Qual é o significado psicológico do mar que Ela diz acalmar e encrespar?…

A última pergunta, e sem dúvida última não por casualidade, selou este discurso teológico sublime com base em perguntas e respostas.

— O que reflete o seu Espelho Mágico, com o qual encontrou os fragmentos do seu irmão e marido Osíris? — perguntaram.

A resposta foi breve e taxativa:

— O Olho de Hórus, o Olhar da Alma, é o único que pode penetrar no seu Espelho Mágico — disse Hipátia.

E depois explicou:

— Neste espelho vivemos tu, eu, ele, todos juntos, o que nunca morrerá porque talvez nunca nasceu. O seu Espelho é este próprio Templo, é a Casa de Eternidade onde o Aspirante aos Mistérios descobre Osíris, a sua própria Alma imortal. Pois cada ser humano, cada vida na Natureza é um fragmento do corpo despedaçado de Deus, e Ísis o Grande Amor é quem fará renascer neles a sua divina unidade, quem reconstruirá com a sua magia o corpo secreto de Osíris.

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Excerto de “Viagem Iniciática de Hipátia”, de José Carlos Fernández