Quando falamos de equilíbrio ou de harmonia, do que falamos? Quando falamos de estética, a que no referimos? Estética, beleza, harmonia, equilíbrio, arte. São palavras que de alguma forma estão relacionadas, unidas, guardadas uma dentro da outra como numa boneca russa (matrioshka) que guarda dentro de si outra mais pequena, e, assim, até chegar à de menor tamanho, mas a mais importante, porque cria o modelo ou molde para todas as outras.
“Nunca na já longa história cultural do Ocidente se escreveu tanto sobre arte como nos nossos dias, nem nunca existiu tal quantidade de artistas; paradoxalmente, o ambiente físico feito pelo homem nunca foi tão antiestético. A arte ocidental, como outros aspetos da nossa cultura, caiu no mecanicismo do sistema económico materialista, onde a eficácia e o funcionamento prevalecem sobre a beleza e a qualidade. A arte de hoje não pode desempenhar a função social que sempre teve: fazer consciente o subconsciente, abrir as portas da perceção e dar forma expressiva aos grandes temas que preocupam cada geração em cada momento.”
Que estas palavras de Luis Racionero sirvam como um começo reflexivo sobre o tema deste artigo.
Quando expressamos a nossa admiração por algo belo, seja uma pessoa, um gesto, um poema, um pôr do sol, uma música, uma rosa, etc., geralmente apontamos que ele nos enche com um certo hálito de complacência, de satisfação ou prazer; algo agradável que nos dá alguma atração e até mesmo necessidade de posse.
Este é um bom ponto de partida: a harmonia, a beleza atrai-nos, em geral agrada-nos, produz sonho, êxtase. De alguma forma, estamos marcados para ser influenciados pela beleza. E este é um fator muito importante porque não há nenhum ser vivo na Terra que necessite de forma imperiosa ter contato com a beleza.
Sim, já sei que para cada um a beleza é subjetiva, ou seja, que a mim me atraem coisas que não te atraem e vice-versa. Mas a verdade é que, além desse subjetivismo parcial, somos todos atraídos por algumas coisas belas, seja a música, a pintura japonesa, uma paisagem árida ou mil verdes, o gesto inocente de uma criança, a delicadeza de uma flor, o estouro das ondas contra as rochas, dois versos maravilhosos, etc. E também é assim que a cada um de nós permite contemplar algo que não está na vida quotidiana, que normalmente não ocorre no dia a dia e que, além disso, nos comove, nos abala, nos torna visível algo que normalmente é invisível para nós.
No entanto, como já dissemos antes, este é um ponto de partida: a subjetividade; o prazer, o gosto, que para todos é diferente.
Mas é suficiente, é definitivo, pode ser desenvolvido?
Tenho que admitir, que este tema me interessa particularmente. Sou músico e educador e sempre me fascinou a capacidade da música de transformar o ser humano, de socializá-lo, de levá-lo a estados de interiorização, de acalmar as suas tensões e angústias. Mesmo em alguns momentos especiais, tem a capacidade de levar a perceber algo inexplicável que só pode ser compartilhado através de olhares de cumplicidade com aqueles que a viveram.
Naturalmente, busquei o mesmo nas outras artes, na escultura, na pintura, na fotografia, nas extraordinárias construções da Antiguidade (amo o antigo Egito e a Grécia antiga), na poesia e na literatura, na dança e até no folclore, com as suas canções e danças tradicionais, que guardam a essência da alma de cada povo.
Beleza em todas as artes
Reconheço também que sabia pouco sobre algumas delas. A poesia descobri-a durante uma longa doença. Aí eu percebi quanta paz podem proporcionar essas imagens maravilhosas expressas em tão poucas e precisas palavras.
Fui descobrindo a arte nas suas diferentes facetas pouco a pouco, paulatinamente.
Isto me levou a lutar e empenhar-me para fazer com que mais e mais pessoas pudessem descobrir o que a arte guarda como um tesouro. Porque, assim como eu estava focado na minha música e pouco mais, e precisei de algum tempo para descobrir outras artes, pode-se ensinar os outros a descobrir outras artes. Mas para fazer isso é necessário um pouco de tempo e uma formação que permita ir descobrindo essas expressões artísticas e o que abrigam.
Tudo isso me leva a destacar que, mesmo partindo de um gosto inicial, este se pode desenvolver. Como todas as coisas nesta vida, precisa ser expandida, ampliada desde o ponto inicial, para outras perceções que incluam não só o que nos encanta, mas também as ideias, as imagens e até mesmo o inexplicável…
E isso alcança-se não só conhecendo e experimentando outras artes, visitando lugares, vendo vídeos ou assistindo a palestras, mas sendo guiado e acompanhado; desejando ser educado.
É curioso, existe a ideia de que, em termos de música, dança, teatro, poesia, fotografia, cinema, etc., o que vale em primeiro lugar é a opinião do espetador (eu prefiro dizer consumidor) mesmo que ele nunca tenha tido contato com essa expressão artística. É uma ideia pela qual toda a opinião, nesse sentido, é válida, deve ser levada em conta; é mais do que válida, é indiscutível, é ciência.
É curioso porque, sobre outras questões vitais, como por exemplo a dor física, nunca nos atreveríamos dar a nossa opinião ou um diagnóstico categórico sem antes estarmos preparados, e deixaríamos o médico fazer o seu trabalho. Não opinaríamos a menos que a experiência nos desse algumas pistas sobre que doença é e como tratá-la.
No entanto, no campo artístico, isso não só é possível, mas até mesmo plausível; é um traço da modernidade ter uma opinião e também discuti-la.
Isto é mau?
Opinião e conhecimento
Ter uma opinião não é mau, mas é só uma opinião. A não ser que se tenha conhecimento, formação, o gosto, a opinião é apenas um ponto de saída. Há que estar disposto a aprender, a ampliar, já que o gosto é apenas uma apreciação subjetiva que muitas vezes não tem mais apoio do que o prazer que nos dá.
Recordo uma história em que o maestro Leonard Bernstein acompanhava o pianista Glenn Gould. Antes do concerto, ele subiu ao palco para explicar que discordava do ritmo que Gould dava à interpretação, mas que como era a orquestra que acompanhava, se limitaria à versão do pianista. Interessante. Estava disposto a aprender, tinha critério para escolher, e mesmo assim, deixando o seu gosto de lado, adaptou-se à versão para aprender.
Em síntese, o gosto existe, mas se não o desenvolvemos, limita-nos, restringe-nos. É necessário ampliar esse âmbito através da formação, e a educação é sempre acompanhada. É curioso, existe a ideia de que, em termos de música, dança, teatro, poesia, fotografia, cinema, etc., o que vale em primeiro lugar é a opinião do espectador (eu prefiro dizer consumidor) mesmo que ele nunca tenha tido contato com essa expressão artística. A beleza é conhecida por um processo de integração, não de fragmentação. A mente racional não pode abarcá-la. Sim, pode lidar com as partes, os elementos, as porções, mas a síntese, isso surge do conjunto, só se pode ser intuir.
Recapitulemos.
Nós dissemos que possuímos a capacidade de perceber a beleza e que somos vulneráveis a ela, que nos comove.
Que também vamos gerando um gosto estético inicial, que é um ponto de partida que surge da própria experiência e inclinação pessoal, algo absolutamente subjetivo.
E concordamos que é necessário desenvolve-lo e expandi-lo.
E como?
Na realidade, é simples… Em contato com a beleza.
E o que é belo?
Se dissemos que cada um tem uma perceção subjetiva da beleza, temos que nos perguntar se há pontos de contato entre a tua perceção e a minha. Se o que tu consideras belo tem algo em comum com o que eu considero belo. E se procurarmos esses fatores?
E se procurarmos qualidades da beleza comuns a vários âmbitos, características que se repetem?
Por exemplo, dissemos que todos os seres humanos têm a capacidade de percebê-la em diferentes níveis e sensibilidades. Talvez dirão, todos? Sim, todos. É o que se conhece como alcance estético. Aqueles que possuem uma gama estética mais ampla podem experimentar a beleza em mais situações.
Quando a psicologia do marketing usa música nos seus anúncios, é porque sabe que estamos todos indefesos diante da capacidade da música de fixar imagens. Quando as bandas sonoras dos filmes são tão relevantes, é porque essa banda sonora prefixa certas emoções.
John Blacking, no seu livro Há música no homem?, aponta que a componente estética, a música, a dança, as representações, etc., estão presentes em todas as culturas, por mais tribais ou isoladas que estejam. Sabemos que quando um grupo humano é formado, naturalmente aparecem traços de arte, cerimónia, certas regras sociais que favorecem a convivência, etc. É inato ao ser humano o contato com a estética.
Unidade e integração
A beleza conhece-se por um processo de integração, não de fragmentação. A mente racional não pode abarcá-la. Se pode manipular as partes, os elementos, as porções, mas a síntese, isso que surge do conjunto, só pode ser intuída. Porque a grande qualidade da beleza é que produz uma completa integração de elementos. Expressa algo que não está numa ou outra parte, mas emana do conjunto, que surge da relação harmónica dos diferentes elementos. Como a própria vida, integra tudo e produz algo que é a união de tudo isso.
Talvez seja por isso que, na Grécia antiga, Apolo era o senhor da harmonia, da beleza e da justa proporção. Ele era o sem polos, o Uno.
Outra qualidade da beleza é que ela não pode ser explicada. Como todas as coisas importantes da vida, é indefinível, exceto pelos efeitos que produz em nós.
Podem dizer: como pode ser isso? Eu perguntar-vos-ia: podem definir o amor ou a dor? Não. Podemos falar sobre as características que toma, mas não da sua natureza. Isso requer intuição.
Na cultura hindu, essa faculdade da intuição era chamada Budhi. Uma captação que não precisa de instrução externa, que não é conjetura nem palpite, nem um persistente desejo. É, segundo Sri Ram, “uma faculdade que fala apenas a linguagem da verdade. Por outras palavras, esta faculdade está desperta para a verdade, ela só pode perceber a verdade.”
Todos nós já tivemos a experiência de sair de um evento profundamente emocionados e à saída notar o silêncio, que se quebra pouco a pouco com comentários tímidos e adornado com olhares de cumplicidade que vêm dizer: sim, nós vivemos isso, mas não podemos comentá-lo; no entanto, foi verdade.
E aqui temos uma característica muito filosófica. A beleza é a expressão, a roupa que uma verdade veste. A beleza fala de coisas certas e verdadeiras, expressa elegantemente uma verdade.
Ouçam, por exemplo, estes versos:
A rosa não tem porquê,
floresce porque floresce;
sem se preocupar consigo mesma,
sem desejar ser vista.
E, finalmente, uma característica essencial da beleza é a harmonia, o equilíbrio, que tem muito a ver com a proporção, o movimento eurítmico e os estados de equilíbrio emocional.
Expressa uma relação precisa entre aspetos diferentes e até opostos; o que chamamos de harmonia. E que podemos concretizar numa relação matemática, numa lei, por exemplo: Phi a+b/a s a/b. Ou numa relação matemática: 1/2 = oitava musical. Mas também na poesia.
Recapitulando, tomámos estas características:
- A beleza afeta-nos. Estamos indefesos diante do seu poder de pressionar as nossas emoções. É algo irracional, mas produz em todos nós um maior ou menor efeito em função da escala estética.
- Tende para a unidade, para a integração proporcionada de diferentes elementos. Talvez seja por isso que, na Grécia antiga, Apolo foi o senhor da beleza.
- Entramos em contato com ela não pelo racional, mas pela intuição. Isso que os grandes artistas chamam de inspiração.
- Toda verdade se expressa através da beleza.
- Vivemo-la pela harmonia e equilíbrio que nos causa.
- Os seus dois grandes campos de expressão são a natureza e a arte.
É por todos estes elementos e muitos outros que a beleza é um fator de equilíbrio imprescindível para o ser humano.
Sebastián Pérez Alcaraz
Publicado na revista Esfinge, novembro de 2019