Paris, 22 de março de 2014. O Embaixador da Argentina na França, Jean Michell Casa, homenageou Quino com a medalha da Legião de Honra. Creative Commons

Desde há pouco mais de meio século, O Principezinho, uma personagem meta-histórica, e no entanto – talvez por isso – mais conhecido que De Gaulle, Curie ou inclusivamente Kennedy; forjado pela pena e pela imaginação de um herói de guerra, pronunciou um ensinamento, daqueles que comovem o seu século e o mundo: “O essencial é invisível aos olhos, só se vê com o coração”.

Muito poucos anos depois, em 1964, agora da pena e do génio de Quino (nome criativo do pintor argentino Joaquin Salvador Lavado), nasce outra personagem imaginária, em certo modo irmã do Principezinho; não tão séria nem solene, mais reivindicativa; não tão sábia e vidente da natureza profunda da vida, mas sim filósofa, com necessidade de saber, de elevar os olhares, de questionar tudo, e portanto inconformista, empatizando compassiva todas as dores e misérias do mundo. Uma personagem como Tintin, o Principezinho, ou Fernão Capelo Gaivota, com vida própria, a vida palpitante de um belo mito, nascida no tempo desde um sem tempo, desde o mundo das aspirações e sonhos: MAFALDA.

O seu nome nasceu como um anagrama utilitário, o da empresa de eletrodomésticos Mansfield que devia ter anunciado e que rebelde, não o fez. Embora seja possível que o seu criador, Quino, quem lhe deu o nome, só inconscientemente tivesse recordado que Mafalda é nome de infanta portuguesa , e daí a régia dignidade e espírito elevado e rebelde da nossa heroína, pois há uma magia nos nomes que os fazem karmicamente poderosos.

Mafalda nasce em setembro, num dos semanários informativos mais importantes da Argentina, Primera Plana, onde aparece regularmente durante seis meses. Mas estas vinhetas não serão incluídas nas futuras edições pois o seu autor Quino considerou-as “fase de rodagem”. Em março de 1965 prossegue a publicação, agora no El Mundo de Buenos Aires, um dos jornais de maior tiragem deste mesmo país, onde aparecem seis tiras de vinhetas a cada semana. Um pequeno editor converte-as em livro e a edição esgota-se em doze dias. Aqui começa o fenómeno “Mafalda”, que é traduzida e editada, primeiro em italiano, depois chega a Espanha e Portugal (em 1970), ao Brasil (neste mesmo ano) e a partir de 1971 aparece já em inglês, em hebraico, em dinamarquês, em sueco, norueguês e francês, fazem-se cartazes, cadernos, envelopes de presentes… e em 1973 começa a ser emitida na televisão argentina (260 curtas de minuto e meio cada). Chega até ao Japão e estende-se a praticamente todos os lugares do mundo.

Nove anos depois do seu nascimento, em 1973, Quino renuncia fazer mais vinhetas, a personagem é demasiado poderosa (por si mesma, não por ter chegado ao mundo inteiro) e consome-o; a velha história da lâmina da espada que vai devorando a bainha em que descansa, como a alma o seu veículo carnal. Ou talvez simplesmente retira-se ao estranho mundo do qual veio. Só excecionalmente, e como dever de “cidadão do mundo”, a pedido da UNICEF, produz dez vinhetas e um cartaz original para a Declaração dos Direitos da Criança.

Placa de Mafalda. Flickr

Do mesmo modo que o colonizador Tintin, Mafalda não pode deixar de pertencer ao século em que nasce, e mais especificamente à década da Guerra Fria, do temor a um fim do mundo nuclear, à pobreza endémica e cada vez maior do seu país natal, cujos licenciados fogem para os Estados Unidos procurando o futuro que a inoperância política na sua terra-mãe lhes nega, a década dos Beatles, da divulgação entre as massas da “caixa tonta” (tonta não ela, mas quem a ela ficava enganchado), e de guerras sem sentido (salvo a de venda de armas) como a do Vietname e tantas outras, uma década em que já se torna evidente (ainda que só agora tenha deixado de ser “tabu”) o perigo devastador da excessiva população mundial, raiz de grande parte das misérias de todo o tipo que hoje vivemos perante a perspetiva de um cataclismo ecológico. Um tempo (até à queda do Muro de Berlim) no qual o mundo era governado ou pelo comunismo soviético ou pelo liberalismo e imperialismo económico ianque.

Mas como o fogo que consome a madeira, e se apoia nela buscando o céu, Mafalda arde e agita-se no seu século procurando o que sempre o transcende e lhe dá sentido: a verdade, a justiça, a paz nascida da cooperação e do trabalho conjunto, a liberdade que emerge por cima das estreitezas de pensamento e ambições. Ela é sempre a voz da consciência humana, que se nega, a ser como a sua mãe, a “entrar no antro da rotina” que mata a alma, ou como o seu pai, um “vencido da vida”, quer mudar o mundo e fazê-lo melhor, não só adaptar-se a ele esquecendo-se de si e do que quer e deve fazer. Ainda que os seus pais, típicos expoentes da burguesia “pobre” do momento, a adorem, e ela a eles, não quer ser, nem terminar como eles, pensa que a vida deve ser algo mais que ser dona de casa ou animal de escritório. Ela é idealista, mas de verdade, não pelas suas crenças, mas porque a sua alma transborda, ama profundamente a humanidade e sente as suas dores como próprias. Ela não é mística no sentido que damos hoje ao termo, mas sim no que lhe dão os verdadeiros sábios, como no livro Voz do Silêncio (joia do budismo Mahayana) onde diz: “Harmonizaste o teu coração e mente com a grande mente e coração da Humanidade inteira? Porque assim como na rugiente voz do Rio sagrado ressoam à maneira de ecos os sons todos da Natureza, assim também o coração daquele que pretenda entrar na corrente deve vibrar respondendo a cada suspiro e pensamento de tudo quanto vive e alenta” (…) Harmonizaste o teu ser com a grande dor da Humanidade, oh candidato à Luz? Sim?…Então podes entrar.”

Mafalda e seus companheiros. Flickr

Joga a ser astronauta, chefe de governo, e ainda estátua de herói nacional… e como ensinou Platão, os jogos (disse-o quando não havia televisão que modelasse e amassasse como barro as consciências) definem a vocação das crianças, aí se vê a sua necessidade de conquista do ilimitado, o instinto de poder e amor à justiça, e a necessidade de deixar uma pegada na vida e na história. Ao que não joga, porque já o é, de alma inteira, é a ser Filósofa, no sentido clássico da palavra. Ou seja, não no de prestidigitações semânticas, mas no amor à verdade, na busca do significado profundo do que a rodeia, à descoberta de analogias e misteriosos vínculos entre seres e coisas. Deixa-se acariciar feliz pelo Sol, que é o mesmo, diz, que viu e iluminou Cervantes, ou Pasteur, Bach ou Shakespeare; ou fica olhando os esforços desesperados de uma mosca num vidro, enganada pelo que há detrás dele e compara os seus esforços com os da humanidade, ou reflete sobre a importância do dedo indicador e o poder que tem como símbolo; e quando vem um vendedor de máquinas de lavar, pergunta-lhe se também lava as consciências. E certamente que se odeia a sopa, é porque representa o indefinido, o não formado, o barro da matéria… e tudo aquilo que nos obrigam a “suportar” e não temos força para nos opormos. Porque a Mafalda, e tal é o estigma dos filhos de Zeus (como o leão entre os animais), não gosta que mandem nela, e pior ainda, de perder a sua liberdade de escolher, de acertar, de ser ela própria, com os seus mais e os seus menos. Numa ocasião a mãe manda-a comer a sopa e ela diz que não pode fazer isso, porque ela é Presidente de Estado, ao que a mãe responde que, “ah, sim, então eu sou o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, etc.” e dá-se conta que a liberdade e o comando estão subjugados pelas fraquezas e dependências, e só vencendo-as podem servir uma missão, um destino real.

Surpreende-nos nela, inclusivamente, um certo poder taumatúrgico. O seu pai, enamorado pelas plantas, queixa-se de que uma não floresce, apesar de ter sido regada, estar à luz e ter o alimento de terra necessário. Mafalda grita-lhe “chegou a Primavera” e imediatamente a planta começa a florescer, e Mafalda responde inocente ao seu pai, atónito, “faltava-lhe informação”.

Mafalda é a alma indómita, rebelde, amável ao mesmo tempo, compassiva mas não emocional, que todos levamos dentro de nós, a que quer saber, quer ser, quer poder fazer, e ante tudo não ser tragada pela “sopa do mundo”. Em 1973 perguntaram a Julio Cortázar sobre Mafalda e o que respondeu é surpreendente:
“O que penso de Mafalda não tem nenhuma importância. O realmente importante é o que Mafalda pensa de mim”.

Mafalda recebe Legião de Honra. Flickr

Pois ela é a criança interior que jamais devemos deixar morrer e que se converte, finalmente, na voz que nos anima e alenta ou no mais severo juiz se não a deixamos viver.

Umberto Eco escreveu, anónimo, o prólogo de uma edição em italiano de um livro de Mafalda, em 1969, o primeiro dela na Europa e diz que Mafalda é uma heroína rebelde que rejeita o mundo tal como é, pois sabe que não é assim que deveria ser e nega-se a aceitá-lo, por mais que a queiram fazer engolir (como a sopa). Como podemos melhorá-lo sem nos rebelarmos contra a injustiça, a ignorância, o culto ao corpo, os ideais de mentirinha, ou pior, de pesadelos, pois só pesadelos concebem no mundo (como o liberalismo, ao máximo, de Friedmann ou o positivismo de Comte, ou o comunismo de Marx, ou todas as doutrinas e mitos diabólicos que embandeiram a juventude e o mundo para cair depois como pranchas de ferro sobre a cabeça dos seus contemporâneos, fazendo-os inclinar e beber o barro no qual vivem e morrem), como podemos, seguindo o nobre espírito de Mafalda, embandeirar-nos se não perguntamos à vida cara a cara e encontramos respostas de acordo com a natureza humana?

Numa das vinhetas o seu irmãozito, um bebé, atira o guizo para fora do berço e Mafalda devolve-o mas diz-lhe que não volte a fazê-lo novamente; quando repete o ato, Mafalda recrimina-o: “Não comeces a desperdiçar agora o espírito de rebelião… olha que vais necessitar dele para fins menos banais”.
Obrigado Quino, por nos entregares a Mafalda, e obrigado Mafalda por nos recordares com tanta chispa e lógica inquebrantável, o que não devemos esquecer… se não nos queremos perder a nós mesmos.

Quino autografando um livro em Paris (2004). Creative Commons

Feliz viagem no teu encontro com a tua MAFALDA.

Jose Carlos Fernández
Escritor e diretor de Nova Acrópole Portugal