No filme documental “The fog of war: eleven lessons from the life of Robert S. McNamara”, este personagem, que foi o ministro de guerra de Kennedy e depois, durante o desastre do Vietname com Lyndon B. Johnson, e na Segunda Guerra Mundial, um dos responsáveis logísticos dos bombardeamentos ao Japão, disse ao seu superior: “Ainda bem que vamos ganhar a guerra, porque se não, julgar-nos-iam e condenariam à morte como criminosos e genocidas”.
Antes da explosão de Hiroshima e Nagasaki – que finalizou, dois dias depois, a guerra contra o Japão com a rendição incondicional deste país destruído – os bombardeamentos aéreos massacraram as cidades mais importantes do país, num capítulo da história que se quer que passe o mais despercebido possível.
Há vários anos tive uma conversa com um sargento do exército de um país europeu, e cuja formação e manuais são cópia dos dos Estados Unidos, dizia. E fiquei pasmado quando explicou que na guerra moderna, isso é o que ele estudava nestes manuais, trata-se de causar baixas primeiro que tudo às mulheres, crianças, anciãos, antes que aos soldados, pois há que vencer quebrando a moral do inimigo. Como se a luta entre soldados fosse um capítulo de menor importância, pois a guerra real é a destruição da alma, e a melhor forma de fazê-lo é evidentemente golpear onde esta morre.
Na Segunda Guerra Mundial, ao contrário do que as pessoas creem, quem começou os bombardeamentos sistemáticos da população civil, maioritariamente anciãos, mulheres e crianças (pois os demais eram soldados em cenários de guerra), foram os ingleses, para quebrar a coluna moral alemã, e contra todas as leis e convenções de guerra (que só permitem bombardeamentos táticos, ou seja, objetivos militares, ou em todo caso industriais, mas não civis). Vários altos oficiais da aviação inglesa demitiram-se, condenando esta forma bestial, infame e desonrosa de fazer a guerra. Mais brutal, sobretudo, durante os últimos oito meses, quando a Alemanha já estava vencida, pois eram bombardeamentos completamente desnecessários. Perante o silencio cúmplice, e a aprovação (!) de Winston Churchill[1], o carniceiro Arthur Harris, o responsável de ditos bombardeamentos, dedicou-se a exterminar a população alemã, num dos atos mais repugnantes do último milénio: as próprias cidades converteram-se em campos de extermínio. As técnicas intimidatórias e guerra de Gengis Khan pareciam, em comparação, uma versão já obsoleta e quase infantil. Colónia, Hamburgo, Dresden, Nuremberga, etc., e mesmo Berlim sucumbiram em ruínas.
No início os militares americanos tinham-se oposto a esta descida ao abismo mas rapidamente foram tentados pelos seus vórtices e participaram nesta empresa, aqui na Europa e no Pacífico.
No caso dos bombardeamentos do Japão, estes começaram de modo sistemático e massivo desde o mês de junho de 1944, e provocaram na versão mais otimista a morte de mais de 300 000 civis e meio milhão de feridos. Mesmo Tóquio, e depois de muitos bombardeamentos, numa noite foi arrasada naquele que é considerado o bombardeamento não nuclear mais mortífero da história (e que depois ficou eclipsado pelas bombas de Hiroshima e Nagasaki). 1700 toneladas de bombas incendiárias napalm, mais os fortes ventos, converteram a cidade numa fogueira gigante e estima-se que nessa noite morreram nela mais de 100 000 pessoas (a maior parte, claro, civis), e mais de um milhão ficaram sem lar, nesta jornada pavorosa que depois foi chamada “a noite da neve negra”[2].
Também não é muito divulgado o porquê da resistência tão aparentemente inútil e férrea dos japoneses na batalha de Iwo Jima no mês de fevereiro e março de 1945. Sim, o guerreiro japonês educado na moral samurai lutaria até à morte, a defesa da ilha era vital para que os americanos não construíssem nela uma pista aérea e assim começassem os seus bombardeamentos sistemáticos. Uma ilha quase morta, de apenas 21 km quadrados, foi o cenário de morte de quase 25 000 soldados norte-americanos, e quase 21 000 japoneses, a totalidade dos seus efetivos (foram feitos prisioneiros só 216 sobreviventes). Mas o verdadeiro motivo de tantos soldados japoneses defendendo com unhas e dentes a ilha de cinza vulcânica era um segredo militar. Um truque de guerra psicológica que saiu exatamente ao contrário de como estava planeado, pela incapacidade do estratega japonês de compreender a mentalidade norte-americana do momento. O alto comandante nipónico queria fazer de Iwo Jima umas Termópilas à japonesa, e a moral dos seus defensores não devia ser menor, certamente. O desejo e finalidade oculta era fazer ver ao bando aliado o esforço e terrível gasto de vidas que significaria a conquista de mais de 6 mil ilhas do Japão, se uma tão minúscula tinha custado 25 000 soldados norte-americanos. E então as quatro ilhas principais? Os japoneses estavam dispostos a semienterrar as suas crianças nas praias com bombas que seriam ativadas à passagem dos seus exércitos.
E se isto é assim, está justificado o uso das bombas atómicas que evitou todo este massacre, de não menos, imaginamos, que um milhão de combatentes por cada um dos lados?
Como muito bem se vê no filme de Clint Eastwood, “As bandeiras dos nossos pais”, os cofres de guerra americanos estavam esgotados, não aguentavam nem mais um mês. Derrotada a Alemanha, o povo norte-americano desejava o fim desta contenda e massacre, em que já demasiado tinha sangrado a sua juventude e a sua economia. Tomada Berlim, e demonstrado que os alemães não tinham construído uma bomba atómica – apesar de que Heisenberg e outros cientistas alemães tivessem conhecimentos para isso, mas tinham desviado a atenção dos chefes militares para que não empreendessem este caminho, no qual tampouco tinham meios suficientes – muitos cientistas do programa Manhattan tinham renunciado a continuar. Recordemos que a construção de uma bomba atómica deveu-se principalmente à assinatura de Einstein (de uma carta que ele não escreveu) numa carta a John Roosevelt, alertando-o de que a Alemanha estava já a dar passos nesta direção. Einstein arrepender-se-á disto toda a sua vida, foi enganado e abriu esta Caixa de Pandora que quiçá só o colapso da nossa civilização feche, num retorno à Idade da Pedra, como gracejaria amargamente o autor da Teoria da Relatividade.
Aí está então a questão. O povo norte-americano não queria continuar a guerra. O alto comandante japonês ideou o estratagema de Iwo Jima para convencer o bando aliado do preço em vidas da invasão, e forçar uma rendição que não fosse incondicional.
Os comandantes militares norte-americanos sabiam este preço e nem sequer tinham ouro e sangue para pagá-lo. A bomba já estava construída, e tinha sido testada, a Trinity no deserto do Novo México. Pelo menos a de plutónio, que seria lançada em Nagasaki; da de urânio enriquecido, a de Hiroshima, ainda não se tinha feito nenhum teste. Nas nossas falsas democracias, se tivessem dito ao povo americano as consequências, as imagens pavorosas do que ia suceder, e o caminho nuclear sem retorno possível, e que o Japão estava disposta a render-se, este não tivesse aprovado de nenhuma maneira o holocausto de Hiroshima e Nagasaki. A Rússia, talvez não tivesse construído a bomba atómica, pois fê-lo graças a um espião infiltrado no projeto Manhattan. Talvez, talvez, talvez, tantos talvez na história, que já não têm sentido.
E então, seguindo um dos debates da atualidade, há justificação para o genocídio? Celebramos uma vitória e um massacre que evitou mais mortes, que “construiu” além disso o mundo moderno mercantilista, sem samurais nem honra nem ideais cavaleirescos, um circo de prazeres, banalidades e medos?
NÃO, DE NENHUM MODO! A guerra deve ser evitada exceto quando já seja impossível fazê-lo, esgotadas todas as possibilidades de paz: por defender a liberdade de uma nação (e de todos os que a formam), a sua vida, os seus direitos e a sua honra (e não simplesmente os seus interesses lucrativos, como se executaram as últimas guerras não declaradas desde há 50 anos, uma aberração moral!)
Se os Estados Unidos tivessem aceitado uma rendição extremamente vantajosa para si, pois eram os vencedores, não teria sido necessário o uso destas duas bombas nucleares, e nem sequer, antes, os bombardeamentos de Tóquio e de outras cidades japonesas. Teríamos evitado o horror, o massacre, o genocídio, o holocausto, a criação da bomba de hidrogénio (com uma potência 2500 vezes superior à de Hiroshima), as 2100 bombas atómicas (incluídas as termonucleares) detonadas, a maior parte na atmosfera, e que são a causa provável das alterações climáticas (ao afetar não só a atmosfera mas também o campo magnético que protege a Terra). Tudo porque o presidente Truman, de triste memória, e o Alto Comando norte-americano de nenhum modo iriam renunciar exibir o seu poder frente ao mundo e à história, nem iriam vencer o seu orgulho deixando de humilhar a nação vencida. Não era suficiente vencer, era necessário pisar as suas cabeças, a rendição devia ser incondicional e nunca de nenhuma outra maneira, fosse qual fosse o preço. E ainda que Obama, prémio Nobel da Paz por razões desconhecidas, visitasse o memorial de Hiroshima no ano 2016, o primeiro presidente norte-americano em funções que o fez, não, não pediu perdão, nem expressou nenhum tipo de arrependimento, não fosse humilhar o orgulho da nação destinada a subjugar o mundo inteiro, pela graça de Deus.
Tal como todos os cidadãos – e não só os militares – foram obrigados, sob pena de morte, imagino, a entregar todas as suas katanas, e fazer com elas uma pira incendiária ou algo semelhante, era necessário que entregassem a sua alma… e depois… já veremos.
Ou seja, que quando se diz que a alternativa ao massacre era a invasão terrestre e o milhão de mortes de ambos os bandos, talvez nunca se diga, que a alternativa era uma vitória que não exigisse rendição incondicional. Esta esconde-se debaixo do tapete, e que ninguém a mencione, porque aí está o quid da questão. Não é imperioso nem absolutamente necessário o que pode ser evitado com boa vontade e inteligência. A do Japão não é que fosse boa, estavam completamente derrotados, mas e do outro lado, a magnanimidade do vencedor, que serviu para educar durante mil anos os romanos?
Claro, existem as Leis da Natureza, não só da manifestada, mas as Leis da Alma da Natureza, e as que definem a própria condição humana. E quando se violam, os resultados são catastróficos, e o Karma não perdoa, nem a uns nem a outros, não importa a bandeira que icem ao alto, e em nome de quê se tenham cometido umas atrocidades ou outras. Também sempre há novas oportunidades de escrever bem, com respeito, no Livro da Vida que chamamos História.
No fim, com o massacre de civis em cidades destruídas pelos bombardeamentos aéreos, e com as explosões de Hiroshima e Nagasaki, e mais além dos atos heroicos e luminosos de ambos os bandos, a vitória foi suja, sem glória, criminosa – contra as leis da guerra – infame o facto. Digno de recordar, para não ser repetido nunca mais – que difícil! – e porque além disso, como pode ser esquecido?
75 Anos da Vitória sobre o Japão, e do fim da Segunda Guerra Mundial? Não, ninguém pensa nisso. 75 ANOS DO HORROR, do HOLOCAUSTO de ter feito explodir as primeiras bombas atómicas da história sobre a povoação civil de Hiroshima e Nagasaki! E talvez pior ainda, de ter desencadeado uma corrida armamentária que ainda nos pode levar a uma nova Idade da Pedra.
VAE VICTIS!
José Carlos Fernández
Escritor e diretor nacional da Nova Acrópole Portugal
Anotações
[1] Quem logo teve, evidentemente terríveis remorsos de consciência, pois, ao contrário de Arthur Harris não era um psicopata.
[2] A 9 de março de 1945.