Hidalgo é o título original de um filme – que em Espanha chamaram de Oceanos de Fogo, talvez para evitar confundi-lo com outro filme sobre o famoso padre Hidalgo da história do México – mas também é o nome de um cavalo de raça mustang que ganhou muitas corridas de longa distância, no final do século XIX, montando por Frank T. Hopkins. Este lendário cavaleiro, pelos padrões do oeste americano, não apenas venceu corridas de 800 quilómetros ou mais, mas fê-lo com um cavalo mestiço em vez de com um puro-sangue, ou cavalo de raça, como a maioria dos corredores tinha feito.
O filme é de 2004, realizado por Joe Johnston, com guião de John Fusco, uma combinação que lhe confere o ritmo e a atmosfera do cinema clássico de ação e aventura, ao qual devemos juntar a jornada interior do protagonista para se reencontrar a si mesmo. É protagonizado por Viggo Mortensen no papel do cavaleiro Frank T. Hopkins, Omar Sharif como o xeque que organiza a corrida no deserto, Zuleikha Robinson como a filha do xeque, Louise Lombard como Lady Anne Davenport – uma aristocrata britânica interessada em vencer a corrida e sem escrúpulos para atingir os seus objetivos – todos num elenco bem escolhido que inclui uma breve aparição, uma participação especial de Malcolm McDowell no papel do marido aristocrático de Lady Anne.
Hopkins, além de participar em corridas de longa distância, é mensageiro do exército norte-americano e recebe instruções para transferir ordens para uma unidade do exército, que deve concretizar o massacre de Wounded Knee, de uma tribo indígena Lakota. Isso afeta-o seriamente, dado que ele é mestiço, filho de um colono branco e de uma índia Lakota, origens que sempre escondeu, mas que não pode ignorar, muito menos quando tem consciência de ter feito parte, ainda que de forma passiva, do massacre dado ter levado pessoalmente as ordens que deram origem à morte de toda uma tribo, incluindo velhos, mulheres e crianças. Desse modo, dececionado e amargurado pelo que fez inconscientemente, acaba no famoso espectáculo de Buffalo Bill, que consistia em representar de forma circense, para o público do Este e depois europeu, as aventuras do oeste americano.
No espetáculo também participavam índios e, entre eles, havia um veterano chefe que se preocupava muito com o destino dos cavalos índios, os mustangs, pois quando os membros das tribos ficavam confinados nas reservas indígenas, os cavalos passavam a ser propriedade do Governo, que não tinha uso para esses belos animais, pois, aos olhos dos governantes, eram inúteis, mas tinham que ser alimentados. Consequentemente, esses cavalos foram colocados à venda e, caso não houvesse comprador, eram sacrificados. Em suma, eles não serviam para nada e, na mentalidade do século XIX, tinham que se desfazer deles porque já haviam cumprido o seu propósito.
É nesse contexto que chega um emissário de um xeque árabe que soube que o espetáculo de Buffalo Bill apresentava Hidalgo como o maior corredor de longa distância do mundo. Isso, aos olhos dos criadores árabes, era um insulto à raça de cavalos puro-sangue árabes, que eram capazes de superar condições terríveis em corridas pelo deserto. Portanto, ele exorta Buffalo Bill a retirar o título “ofensivo” ou a atrever-se a participar, com o seu cavalo, na corrida de três mil quilômetros pelo deserto chamado “Oceanos de Fogo”. Hopkins não tem interesse, vive deprimido e bêbado, mas todos no circo, desde o chefe aos participantes do espetáculo, incentivam-no a participar, fazendo até uma coleta para reunir o dinheiro necessário para a inscrição. De seguida, vem a viagem por mar e a chegada ao porto para a lenta deslocação até ao local da corrida.
Uma cena que simplemente se perdeu
Uma vez no porto, a lenta e longa jornada começa até ao ponto de partida da corrida. Assim que deixaram o porto, ou talvez ainda nele, não me lembro bem, encontraram algo já ultrapassado aos olhos do Ocidente – estamos em 1890 -, um mercado de escravos. Diante do inesperado espetáculo, Frank T. Hopkins decide, num ato impulsivo durante a venda das pobres personagens, comprar uma criança que esperava uma vida de abusos e iniquidade. Assim que a criança é libertada, e antes de poder coordenar com o seu novo “dono” as coisas que teria de fazer, a criança simplesmente foge, regressando pouco tempo depois, percebendo que não tem para onde ir ou quem a proteja. Frank é um chefe benevolente que lhe pede para se encarregar de dar água ao cavalo ou ajudar a montar e desmontar o acampamento. Assim, deve acompanhá-lo durante o percurso, não durante a corrida, pois esta é apenas para corredores, encontrando-se ambos nos pontos de descanso ou oásis. Todo o enorme cortejo viaja pelas rotas das caravanas, pelo que chega a esses oásis antes dos corredores, que têm de atravessar o deserto.
Ora, esta cena que acabo de citar de memória e que vi na primeira vez que assisti à exibição do filme, simplesmente desapareceu das cópias que hoje podem ser vistas na televisão ou na Internet. Ou seja, alguém, alguma mão caridosa ou politicamente correta, decidiu por nós o que podemos ver e o que não podemos ver. Se for esse o caso, seria censura bem-intencionada, mas censura mesmo assim. Ouvimos falar muito sobre outras épocas em que se censuravam cenas por razões políticas/ideológicas, ou porque eram picantes aos olhos do censor. Lembro-me superficialmente das disposições da época de ouro de Hollywood, que obrigavam um casal, por exemplo, a dormir em camas separadas na tela, ou se eles tivessem que dividir uma cama para uma cena, um deles tinha que ter um pé apoiado no chão em todos os momentos durante a filmagem.
Tudo isso foi em grande parte superado hoje em dia, contudo, pela lei do pêndulo, que fez o caminho inverso, permitindo todo o tipo de cenas íntimas, em muitos casos desnecessárias para a história em questão ou que simplesmente retardam a dinâmica dos acontecimentos. Se a isso adicionarmos um certo gosto pela violência gratuita, encontramos o padrão sexo/violência prevalecente. Mas, aparentemente, neste caso, e talvez noutros semelhantes, é uma nova forma de controle, que considera que se está a lidar com crianças em idade escolar, que devem ser protegidas de coisas desagradáveis como a escravidão. Como se a história pudesse ser apagada da maneira que fazíamos quando terminávamos um exercício no quadro da escola e simplesmente ignorar que existiu. Lamento ter de expressar uma opinião pessoal, mas parece um apreciável disparate. A história é para aprender, para tentar não repetir os erros do passado e inspirar-se nos seus grandes exemplos. Como poderíamos tentar melhorar o nosso passado se não o conhecemos? Quem ignorar as lições da história está condenado a repeti-la e não sou, claro, o primeiro a dizê-lo. Deixo aqui, então, este tema da censura aparentemente bem-intencionada.
Tempestade no deserto
A corrida tem várias fases ou etapas e, como em todos os filmes de aventura, acontecem muitas coisas que afetam ou podem eliminar o jóquei do cavalo malhado. Um bom exemplo disso é uma verdadeira tempestade de areia que surge do nada e faz desaparecer vários cavaleiros, uma tempestade da qual o nosso herói se salva graças a encontrar as ruínas de um antigo edifício onde se refugia com o seu cavalo até que a tempestade de areia passe. Quando termina cada etapa, anunciam numa espécie de torre improvisada, tocando um sino, a chegada dos cavaleiros que sobreviveram à prova até aquele momento. Vê-lo chegar após a tempestade de areia é surpreendente para o xeque e o seu séquito.
Então, aparece a intriga dentro da família do xeque, onde um sobrinho rebelde quer roubar o cavalo estrela da raça, além do livro de criação de cavalos que passou através das gerações e que contém, supostamente, os segredos para alcançar a excelência na criação de equinos.
Há um ataque ao acampamento, com o rapto da filha do xeque com o objetivo de trocá-la pelo cavalo estrela. O nosso herói deve tentar o resgate sem perder o espécime em questão, pois o cavalo significa o orgulho da casa do xeque, por meio de uma manobra de distração que inclui pintar outro cavalo para fazê-lo passar pelo desejado. Este é um típico filme de aventuras, sequência muito ao estilo de Indiana Jones, com o resgate da donzela.
Mais tarde, descobrimos que o sobrinho rebelde do xeque faz parte de um conluio com Lady Davenport para tirar o cavalo estrela da corrida e permitir que vença a égua puro-sangue que corre em nome desta senhora, ganhando assim o direito exclusivo de cruzar o cavalo com a sua égua e ter o controle absoluto sobre a sua descendência. Pura e simples especulação económica ocidental com puros-sangues árabes. Em toda essa operação, Hopkins e o seu cavalo malhado representam um incómodo inesperado e, portanto, também tentam retirá-lo da corrida; sem falar que a sua presença não é do agrado de quase ninguém relacionado com a corrida, inclusive os corredores.
Aqui, podemos ver a luta interna de Hopkins para reconciliar os seus dois ancestrais, tanto o branco quanto o índio, que ele manteve oculto durante anos, apesar de ter sido criado entre eles, que o chamavam de “menino azul” devido às duas naturezas que habitavam nele. No entanto, há um ponto inviolável em Frank: ninguém toca ou insulta o seu cavalo. No início do filme, numa corrida no Missouri, outro corredor diz que esse cavalo mestiço não merece competir com verdadeiros puros-sangues, ao que Hopkins reage colocando-o a dormir com um soco, dizendo logo de seguida: “Amigo, podes dizer de mim o que quiseres, mas não insultes o meu cavalo”. Esta situação repete-se quando o seu cavalo é ferido numa armadilha preparada pelos conspiradores, levando a uma luta onde finalmente derrota o sobrinho do xeque, que morre ao cair numa das suas próprias armadilhas, dizendo-lhe: «Sinto muito, amigo, mas ninguém toca no meu cavalo” antes de abandoná-lo à sua sorte.
A dureza da corrida torna-se quase insuportável e Hidalgo cai enfraquecido pela lesão. Frank entende que chegou a hora de se separar e, com toda a dor e carinho de que é capaz, prepara-se para matá-lo com um tiro para não o deixar a sofrer. Mas não consegue fazê-lo, já que imagens da sua infância na tribo e de sua mãe índia chegam a ele na forma de uma miragem do deserto. Então, ele assume a identidade da sua infância e canta uma canção índia. É neste momento que ele ouve uma risada vinda do cavaleiro do grande cavalo árabe que o observa com ar divertido e lhe lembra que nunca deveria ter ousado competir com eles no deserto. Então Hidalgo, contra todas as probabilidades, levanta-se e, enquanto Frank e o cavaleiro árabe o observam surpreendidos, o terceiro cavaleiro, o da égua de Lady Davenport, passa a correr por eles pois a meta final está próxima. O árabe dispara em perseguição e Frank, montando Hidalgo em pelo, quer dizer sem sela, vai atrás deles.
O sino da torre anunciou primeiro a égua de Lady Davenport no horizonte; depois, o grande cavalo do xeque – que é onde deve ser definida a corrida aos olhos de todos -; mas logo anuncia “cowboy” indicando que Hidalgo vem em sua perseguição. O final é apoteótico e emocionante, ultrapassando ambos a égua e definindo a luta na reta final, que Hidalgo vence para alegria de todos, incluindo os espectadores.
Frank volta aos Estados Unidos vencedor da corrida do deserto e com o prémio de cem mil dólares no bolso. Em seguida, mostram-no a dirigir-se para umas terras onde mantêm os cavalos mustang em currais – à espera de serem sacrificados – a cargo de alguns soldados, aos quais recomendam que não desperdicem balas na matança que vão realizar. Então, Frank chega montando Hidalgo e entrega um documento ao responsável, no qual está estipulado que Frank pagou em dinheiro por todos esses cavalos e evita o abate. Em seguida, pede ajuda a alguns índios, que lhe dizem que o velho chefe morreu, mas que ele conheceu a vitória além-mar do “cavaleiro distante”. Em seguida, eles abrem os currais e libertam os cavalos mustang, aos quais logo se junta Hidalgo, pois Frank considera que chegou o momento de ele voltar com os seus.
Nessa viagem interior, ele recupera a confiança em si mesmo, assume a sua verdadeira identidade mestiça e salva uma raça de cavalos da extinção, simplesmente porque não tinham utilidade económica. É uma mensagem positiva, agradável e simpática, à maneira dos filmes antigos.
Admito que gostei do filme por causa daquele sabor de clássico filme de aventura, superando inúmeros obstáculos para alcançar o objetivo. Só posso acrescentar que foram utilizados vários cavalos para as cenas de Hidalgo e que Viggo Mortensen e John Fusco, o guionista, gostaram tanto deles que acabaram comprando um cada.
Alfredo Aguilar
Publicado na revista Esfinge em julho de 2020