«Thy sufferings have been shameful, and thy mind Strays at a loss: like to a bad physician Fallen sick, thou’rt out of heart: nor cans’t prescribe For thine own case the draught to make thee sound.»[1] – Aeschylus (525-456 a. C.) in Prometheus Bound
No hay espejo que mejor refleje la imagen del hombre que sus palabras.» – Juan Luis Vives(1492-1540)
Introdução
Hermes, Ele próprio é a circulação, a transmissão, a passagem. De algum modo, remete para o entre-lugar. A frase acima de J. L. Vives recorda-nos a passagem de Platão:
You mean he will in the city whose foundation we have now gone through, the one that has its place in speeches, since I don’t suppose it exists anywhere on earth.[2]
O Renascimento italiano recupera o conhecimento clássico. Podemos dizer que com Hermes Trismegisto e os seus textos renasce Hermes Logios. A palavra volta a ter um papel clarificador, orientador para o Homem. O saber assume-se como o fim e ao mesmo tempo o processo alquímico de transmutação através da Palavra (logos) antiga e eterna. A ciência activa, a arte harmoniosa, a magia simpática voltam a inspirar e a gerar movimento criador no e através do Homem, na sua relação com o Cosmos (vide o artigo “Magia e Alquimia no Renascimento” de Guzmán, Delia, Lisboa, 2007). Renasce também uma arte médica filha da harmonia e da magia. Retoma-se o equilíbrio salutar da música, do canto sob a égide de Asclépio (vide Corpus Hermeticum).
O antigo Deus Hermes remete, logo à primeira vista, para um princípio de reconexão, de ligação, de comunicação, caracteristicamente alado, ágil, jovem. Até hoje, passados longos séculos da sua aparição ou refiguração, na Grécia Antiga, passando pelo Renascimento, e depois pelo Iluminismo, podemos afirmar que chega até nós um Deus vivo, sempre benfeitor das trocas, da circulação, do comércio e do bom augúrio, a Ele associados.
A sua raiz ainda mais antiga, no Egipto, na sua relação com Thot, recorda-nos a magna sabedoria e a magia. A magia surge como a arte de encontrar e manifestar no acto os caminhos novos, ainda não trilhados ou de que não há memória/ conhecimento consciente. Esses caminhos são reveladores, acrescentam algo. Ou seja, também permitem novas trocas, maior circulação e uma maior eficácia. Quando falamos de magia, falamos também de percorrer caminhos desconhecidos que se podem tornar em experiência-sabedoria, em esclarecimento, insight e visão. Aqui navegamos já num mapa interno, o percorrer caminhos interiores que geram reconexão, renascimento.
Este saber comunica-se frequentemente pela linguagem e pela imagem. Logo, o poder de bem imaginar e de saber usar a linguagem como portadora de saber e elemento de despertar é fundamental. Estas características surgem associadas a Hermes e ao saber que transmite.
Veremos, mais adiante, como, nas mais diferentes terapias e no processo da pessoa se ir curando, esses elementos são tão diferenciadores para a boa resolução da encruzilhada[3], a doença.
Na época mais tardia da Grécia Antiga, Hermes surge associado a Anúbis (vide imagem acima), reflectindo também a imagem de um Deus que faz a ponte, que acompanha o Ser Humano e o une aos deuses e vice-versa, através de uma comunicação em torno de um eixo vertical e clarificador (deus-guia).
Talvez Hermes seja dos deuses mais humanos, que acompanha, guia e protege o homem nas suas mais diversas aventuras, como por exemplo sob a forma de viageiro, de que é exemplo Ulisses na Odisseia.
Quando olhamos a filosofia oriental e a sua ideia-símbolo sobre o Homem, por exemplo nos ideogramas, no Ikebana, entre outros, vemos que este (o Homem) é, por excelência, quem une o céu (domínio dos Deuses) à terra. A terra que o Homem pisa, onde, mais abaixo, para o pensamento grego e posterior, se localiza o Hades. Hermes circula pelos três, conhece as chaves das três dimensões, as quais percorrem a alma humana em dado momento. Por isso, pode auxiliar o Homem decisivamente na conquista da harmonia nas diferentes fases de trânsito. Esta harmonia reflecte-se, obviamente, também, na saúde, no seu sentido tanto específico como amplo ou holístico.
A relação de Hermes e Apolo é uma constante. No mito, trocam atributos que remetem para essa conquista e dacção de harmonia como é o caso da lira que Hermes constrói logo após nascer. Hermes surge representado, em estatuária, junto às Cáritas[4]na entrada da Acrópole e junto às Musas, Atena e Hércules na Academia de Platão. O equilíbrio, a harmonia, a inteligência e a superação-conquista acompanham, então, este princípio comunicador que é Hermes.
Partindo destas premissas, assumi a abordagem deste tema: Hermes como Deus Terapeuta com o fim de sintetizar os contributos, entre outros, mitológicos, poéticos, artísticos (por. ex. na pintura), do imaginário, característicos desta divindade e que, ainda, nos nossos dias, nos podem inspirar no âmbito da saúde.
Por um lado, a todos os seres humanos nos preocupa a saúde, o equilíbrio, o bem-estar-liberdade que nos permite seguir com os nossos objectivos, com a independência essencial à prossecução regular e em crescendo de novas experiências/ conquistas/ descobertas… ao longo da nossa vida.
Por outro lado, devido à aceleração, algo alienante do presente, tendemos a querer sempre mais, esquecendo a sábia ciclicidade que figura na natureza e que, cito agora a título de exemplo, os poetas japoneses tão bem souberam sintetizar nos seus Haikus. Hermes poderá ajudar-nos a recordar esses ciclos, a religar-nos à natureza e a um estilo de vida, também, natural e orgânico. Hermes recupera Perséfone e com ela há um retomar salutar dos ciclos, da produtividade da terra, da florescência da natureza. No entanto esta personagem feminina, terminado o Verão, regressa ao infra-mundo, progredindo através dele até ao alvorecer de uma nova Primavera. Ou seja, com Hermes poderemos (re)entender, ou seja, recordar e viver como tal, sabendo que nascemos, encetamos uma preparação para a vida, expressamos as nossas aprendizagens-sabedoria, recolhemos novas, e, passado certo tempo, devemos terminar a nossa preparação para bem partirmos. Para desapegadamente mas, ao mesmo tempo, honradamente, sabermos, com amor, respeito e cortesia, para com as novas gerações, partir. O legado impõe-se mas a saída de cena também. Caronte espera-nos para o iniciar de uma nova viagem, esta guiada por Hermanúbis. O Ser Interior regressa ao invisível. No Egipto Antigo era pesado o coração do defunto face à levíssima pena de Maat (a lei harmónica). Há um julgamento, uma balança, uma passagem. Frente a ele, o defunto deve poder estar em paz e poder assumir a negação das acções fora de Maat que não perpetrou. A paz interior e o saber do Dever cumprido assumem a máxima preponderância[5].
Como condutor, até no outro mundo, após a partida deste plano (a morte do corpo físico) Hermes é fundamental. Aprender a viver cientes desta certeza ajuda-nos a conquistar uma harmonia natural, menos sincopada, abrupta e de uma dor hoje tão habitual como evitável. Porém vivemos numa sociedade em que a morte não existe. Há uma fuga, um esconder sob o desejo de que tudo progrida e cresça indefinidamente. Há um não saber enfrentar o decrescimento, as paragens momentâneas para reflexão, o reequacionar e redirecionar, o acelerar e abrandar, subir e descer, etc. Penso que Hermes nos pode inspirar em todos esses momentos, pois todos estão na Vida, na experiência, no que podemos tornar mais e mais consciente para a acção interna e exterma, em que nos podemos superar – aí há movimento. Desde os filósofos antigos do Oriente e Ocidente, de há centenas ou milhares de anos, que se considera que o movimento que dá Vida proviria do Ser, do seu influxo sobre a matéria (desde o plano mais subtil). Assim Hermes torna possível a clarividência, a visão no Homem de algo que tem a sua morada habitual no plano superior. Ele transita, pela escada invisível através da qual o Homem pode antever, medir, avançar no escuro e assumir-se flecha frente a um alvo[6]. Enfim, ir tornando clara a sua direcção na vida, para acertar o movimento a empregar e poder gradualmente progredir em harmonia. Essa harmonia pode reflectir-se em diferentes velocidades e ritmos externos. Porém para que o movimento seja harmónico e benéfico, cremos que deve seguir uma pauta interna e aparentemente menos visível externamente. Essa pauta unida ao Dever Ser da natureza trás consigo a saúde interna e o bem-estar, mais próximo da paz ou tranquilidade e fruto da certeza de se estar a protagonizar o devido.
Segundo a nossa perspectiva, hoje, nos cuidados gerais e aparentemente mais acessíveis de saúde[7], carecemos de uma visão mais ampla e efectiva no sentido de se definir o que é ser saudável. De forma a que esta definição-consciência inspire e ajude a elucidar a nossa visão em geral e as práticas de cuidados connosco próprios e os demais (cuidados formais e informais em saúde[8]).
Assim, ao longo desta monografia, tentaremos destacar aspectos desta divindade que muito objectivamente nos ajudem a atingir esse significado mais amplo e verdadeiro. O qual, esperamos que, simultaneamente, seja prático e útil.
Bem como tentaremos contribuir com a partilha e exposição da aparição destas ideias em diversos autores e correntes de pensamento de referência.
A Saúde: uma perspectiva hermenêutica
A circulação de informação superior da natureza que influísse na boa actuação dos homens e no encontro da saúde, a partir do interior, surge expressa desde a Antiguidade, de que é exemplo os cultos a Asclépio, em Epidauro. Poderemos vislumbrar o grau de subtilidade do tratamento e de exigência para a manutenção de um estado de equilíbrio salutar através da citação abaixo que surge no âmbito de estudos epidemiológicos actuais:
«A visão holística da medicina remonta a tão longe quanto ao tempo de Asclépio (dos gregos) e Esculápio (dos latinos) e, depois, Hipócrates (460-377 a. C.), pai da medicina. Asclépio tinha seu centro de acção em Epidauro e, no pórtico de seu templo, lia-se o lema básico de sua medicina: “Puro deve ser aquele que entra no templo perfumado. Pureza é ter pensamentos sadios”, era a nooterapia (noos, em grego, significa mente[9]), terapia da mente. O processo das curas holísticas dava-se pela dança, música, ginástica, poesia, ritos e sono; havia locais específicos para estas práticas (…)»[10]
As curas em Epidauro e outras pólis partiam do pressuposto da harmonização de pensamento e sentimento – a metánoia. Centravam-se na manutenção de um salutar estado mental – nooterapia – e de consciência que assim actuaria beneficamente sobre alma e corpo. Inclusivamente, alguns autores contemporâneos defendem a eficácia e avanço do tratamento psicossomático praticado pelos Asclepíadas. Para estes o fundamento do tratamento era a Ordem Divina que se manifestaria no doente, por exemplo através do sono – Enkoímesis – ao longo da sua permanência no complexo terapêutico[11].
Sobre Asclépio refere J. Brandão (2000) algo que aproxima em muito esta divindade de Hermes ou Hermanúbis, tendo em conta a sua génese,
«Como herói, que foi deificado, Asclépio participa da natureza humana e da natureza divina, simbolizando a unidade indissolúvel que existe entre ambas, assim como o caminho que conduz de uma para outra.»[12]
A Terapia por excelência, como afirma Platão – e os grandes filósofos que nele se inspiraram até aos nossos dias e dos quais, ainda, podemos alimentar-nos a partir do seu riquíssimo legado –, trata de colocar em concordância o homem quotidiano com o seu Ser, Nous ou alma imortal.
No Timeu, Platão defende que todas as enfermidades resultam de planos internos e superiores ao físico, surgindo neles desarmonia. Define que as enfermidades da alma são a Ignorância e a Loucura. Pensamos que o antídoto para estes males possa ser o desenvolvimento da visão interior, a intuição que se transforma, na dimensão mental do Homem, em discernimento inteligente e, logo, uma porta que se abre, através da coerência, a um saber pensar, sentir e agir com maior claridade interior e mais certeza do caminho a trilhar. Este processo imunizaria o caminhante por forma a evitar dores desnecessárias, traumas penosos e improfícuos, enfim, as armadilhas da alma que não o deixam libertar-se. Só livre, ainda na Terra, o Homem poderá dar o seu melhor contributo e resgatar para si essa harmonia perdida, o Bem platónico. O que nos pode recordar o paraíso perdido ou o reino longínquo do próprio Rei Artur, onde as virtudes conviviam tendo por reservatórios os próprios Cavaleiros e Damas, que recorrendo a elas se transformavam paulatinamente em aspirantes a Deuses.
Retomando a citação acima, Hermes porta o caduceu, essa síntese simbólica que conduz o caminhante. É um dos símbolos antiquíssimos que percorrem o planeta e a sua história, ressurguindo nas mais diversas culturas e continentes, e chegando até aos dias de hoje como significante da saúde, como observamos nas farmácias, centros clínicos,… Assume um significado, em valor, similar ao de Asclépio, conforme defende Antonio Alzina[13].
Seguindo o anterior, tomamos a passagem de Platão na Republic (444d-e) em que o filósofo sintetiza a interdependência da justiça com a saúde, lembrando-nos a harmonia de Maat:
«To produce health is to establish the parts of the body in a relation of mastering, and being mastered by, one another that is according to nature, while to produce sickness is to establish a relation of ruling, and being ruled by, one another that is contrary to nature. (…) Virtue, then, as it seems, would be a certain health, beauty and good condition of a soul, and vice a sickness, ugliness and weakness.»
Noutra passagem, prossegue:
«(…)in the case of the just man that, if he falls into poverty, diseases, or any other of the things that seem bad, for him it will end in some good, either in life or even in death. For, surely, gods at least will never neglect the man who is eagerly willing to become just and, practicing virtue, likens himself, so far as is possible for a human being, to a god.».[14]
Acerca da importância da educação assente nas virtudes como bens éticos e morais, considerámo-lo o mais forte e útil legado a transmitir. Alzina conclui:
«No hay nada superior a un corazón puro, pues sólo el corazón puro puede recibir y transmitir toda la energía que dimana del Caduceo, llegar desde la tierra al cielo y realizar milagros entre los hombres com la fuerza de los dioses.»[15]
Ethan Hawke editou no ano passado (ed. Knopf, 2015) «Rules for a Knight», um texto que recria o mito de uma cavaleiro do séc. XV. Dias antes de morrer em batalha, escreve uma carta aos seus filhos a testemunhar as virtudes que considerava mais importantes preservarem, ao logo da sua vida, por forma a poderem ser realmente Cavaleiros. Poderiam desenvolvê-las mais e mais a partir da vida interior clara e sadia e da possibilidade de decisão interna. Dentre essas virtudes destaca o autor: a Humildade, a Gratidão, a Amizade, a Honestidade, a Coragem, a Generosidade, a Disciplina, entre outras. Este livro nasceu da experiência pessoal do autor (actor de cinema norte-americano, mundialmente conhecido) e dos desafios com que se confrontou ao tentar educar os seus filhos. Reparou que necessitavam de regras para Crescerem e essas regras ensaiadas foram a base para a síntese que expõe, de forma muito leve mas pofunda, nesta publicação.
No livro Cármides[16], Platão apresenta o conceito de epódé. Este conceito remete para a ideia clássica de auto-cura que somente, segundo as palavras de Sócrates na mesma obra, cada ser humano pode lograr (vide Aeschylus, Prometheus Bound,p.1).
Neste momento fazemos um parêntesis para estabelecer um paralelismo com os Asclepíadas, citando Brandão:
«(…)a missão de cura em Epidauro era uma das missões, porque, basicamente, a cidade do deus-herói-Asclépio era um Centro espiritual e cultural. Dado que as causas das doenças eram principalmente mentais, o método terapêutico era essencialmente espiritual, daí a importância atribuída à nooterapia, que purifica e reforma psíquica e fisicamente o homem inteiro. Procura-se, a todo o custo, através do gnôthi s’autón (conhece-te a ti mesmo) que o homem “acordasse” para a sua identidade real.»[17]
Retomando Platão, Epódé pode ser um bálsamo, um ensalmo… mas é, sobretudo, na dimensão em que nos centramos um acto mágico. Este acto implicou uma (auto)descoberta por parte do doente, uma claridade interior sobre si mesmo e como funciona, um conhecer-se, e, também, uma actuação através das palavras, do logos, que nasceu no seu interior. Esta seria a melhor e única cura: descobrir as palavras certas com que cada um poderia obter a sua recuperação, ensalmar-se.
Defende-se[18]a ideia de que a alma é que adoece, segundo Platão, e não o corpo, o que é importante, mas sobretudo também esta de epódé:
«Hay ocasiones en que el filósofo [Platão] se limita a mencionar con ella, de un modo tradicional y directo, los ensalmos o conjuros mágicos que desde los tempos prehoméricos venía practicando el pueblo griego. La palabra es, en tales casos, mucho más denominativa o descriptiva que interpretativa, aun cuando su significación concreta no se halle totalmente exenta de un juicio de valor, positivo unas veces y negativo otras. Hay textos, en cambio, en los cuales es patente la intención interpretativa. El término no es usado entonces según su sentido directo y tradicional, sino con una original significación metafórica o analógica.»
A título de exemplo é com o uso de épodé que os filhos de Autólico curam Ulisses ferido.
Mais adiante, na mesmo obra, Entralgo acentua:
«La epodé, que comenzó siendo conjuro o ensalmo mágico, ha venido a ser razonamiento o relato contra el error o contra los afectos dañosos.»[19]
Mais tarde, no Renascimento, como reflectimos acima, este gosto hermético Renasce. A lei das correspondências, assente na tradução dos textos antigos, ganha a atenção dos homens do conhecimento. Estudam-se os textos gregos, os de influência egípcia e tenta-se uma síntese global e uma verdadeira multi, ou mesmo, transdisciplinaridade. A Europa conhece Da Vinci e tantos outros que criam na arte, na poética, na pintura, na ciência, na mecânica, na engenharia, nos estudos anatómicos, na arquitectura… sem qualquer distinção.
A propósito deste momento impar em que se transmite, por exemplo o Kybalion, Picatrix, entre outros símbolos desse saber sintético e agregador no essencial, D. S. Guzmán defende:
«A magia vai conceder ao homem uma nova visão, uma nova capacidade; desperta no ser humano um potencial que tinha estado latente: a vontade. O homem do Renascimento pensa eu quero fazê-lo, eu posso fazê-loe é isto que vai mudar definitivamente o curso da história, o que determinará o giro dos tempos e nos vai trazer até ao momento presente. É interessante comprovar que o interesse por essa magia iluminadora e poderosa, longe de ter desaparecido, permanece vivo e continua a ser motivo de atracção para muitos eruditos actuais. Muitos grandes cientistas da nossa época continuam a pensar que a ciência é uma forma de ler o pensamento de Deus e expressam-no de um modo simples, sem nenhum rubor.»[20]
Nessas décadas produz-se a Primavera de Botticelli em que Hermes (personagem mais à esquerda) aparece, no limite, entre a luz e as sombras, afastando estas últimas. Ele actua nas duas realidades porque as interpreta e, por isso, é o mensageiro do primeiro olímpico, Zeus.
Já no século XX, filhos da nostalgia dessas grandes corrente vivas, do Nous de outrora, o poeta – à imagem de muitos – canta:
«Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria
São outra cousa que a noite e o vento
– Sombras de vida e de pensamento.
Tudo que vemos é outra cousa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
Tudo que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento
São sombras de mãos cujos gestos são
A ilusão mãe desta ilusão.»[21]
Mito de Hermes
Logo desde o relato do nascimento de Hermes, aparece o símbolo da fecundidade e imortalidade associado ao Deus, o salgueiro[22], em que filho de Zeus e Maia cumpre, ao primeiro dia de nascimento, o ritual de libertação das faixas em que tinha sido colocado. Isto decorre a um dia 4 que lhe é dedicado. O 4 remete para o fogo, a mente, que Hermes vai expandir, estabelecendo novos caminhos de comunicação. Será também o Deus da Intuição. E, neste sentido, relacionado com o 4º princípio da Natureza, o da Organização e da circulação[23].
É também o Deus das uniões, a partir deste mundo concreto em que todo o Homem vive, ao Mundo dos Arquétipos de que fala Platão e, a meu ver, de algum modo Confúcio, com o seu conceito de ordem cósmica – Li. É esta ligação que os poemas de várias épocas vão reclamar. E que em Portugal, encontramos na poesia de Antero de Quental, Fernando Pessoa (supracitado), Florbela Espanca e tantos outros. Hermes abre caminhos que o Homem procura interiormente.
Ainda no primeiro dia do nascimento de Hermes, este 12º olímpico, produz a música, a harmonia que só um ser evoluído, uma alma superior pode manifestar. Com ela vence também os conflitos, que confundem habilmente o ser interior do Humano, lançando-o, vezes sem conta, no nevoeiro e na falta de direccionalidade. O conflito surge com Apolo que, face à entrega da lira, a que se torna atributo do Deus da Luz, o perdoa da mentira em que Hermes quase caía.
Mais tarde, em troca da Flauta de Pã, Hermes recebe ensinamentos de Apolo (na arte advinatória)[24]e o cajado de ouro que lhe permite guiar/conduzir o rebanho. Não podemos esquecer que a condução pressupõe um estado de maior domínio e visão por parte do guia comparativamente com o que é conduzido. Neste momento da narrativa, vemos que Hermes vai adquirindo poderes que são cristalizados nas insígnias que vai recebendo.
Neste sentido, Hesíodo, na Teogonia(445), mais precisamente no seu Hino a Hécate, canta:
«Noble is she in the stables with Hermes to increase the herds. Herds of cattle, broad flocks of goats and wooly sheep, if it is her wish in her spirit, she enlarges from small and diminishes from many.»[25]
Na citação anterior, refere-se à arte de Hermes saber intervir conjuntamente na diferenciação do que deve avolumar-se e do que deve menorizar-se, quer dizer aquilo a que se deve dar relevância, alimento e cuidado e aquilo, em nós, a que devemos ir dando menos espaço, porque nos trará desiquilíbrio, doença, dor e, assim, será nefasto.
Na Ilíada (livro XXIV, 580-585)[26], Hermes, enquanto mensageiro, é também fonte de alento e coragem:
«Oh ancient Priam! an immortal God
Attends thee; I am Hermes, by command
Of Jove my father thy appointed guide.
But I return. I will not, entering here,
Stand in Achilles’ sight; immortal Powers
May not so unreservedly indulge
Creatures of mortal kind. But enter thou,
Embrace his knees, and by his father both
And by his Goddess mother sue to him,
And by his son, that his whole heart may melt.»
Acima vemos Hermes como antídoto para o medo, como desbloqueador, encorajador. Hermes, elemento intermédio que, no domínio da alquimia, une o sal da terra ao enxofre do céu, remonta à similar ideia de ponte, de intermédio, de ligação para uma comunicação evolutiva, ascensional. Nesta ascensão, o medo e a dúvida/hesitação mostram-se como os maiores adversários, que congelam o herói. Por isso em tantos mitos e outros textos clássicos se aborda o benefício em superar, hábil e tenazmente, estes estados de ânimo.
Diz também o mito que Hermes conhece as trevas, por isso, pode transitar durante a noite. Enquanto Psicopompo conduz as almas, levando-as à sua verdadeira morada, ou, refazendo a justiça, resgata Perséfone e Eurídice do reino de Hades[27]. Hermes é também mensageiro da lei, do destino, do dharma. Há algo oculto a cumprir que Hermes proporciona activamente, revelando o desconhecido no momento certo. Mais uma vez vendo nas trevas, conhecendo os caminhos pode conduzir e velar para que alguma oportunidade (algum caminho obscurecido quer seja pela ignorância quer seja pela dúvida que são trevas interiores) não se perca gerando mais infortúnio e dor.
Enquanto condutor e revelador é o melhor amigo do Homem e, provavelmente, o que o ajuda a encontrar o seu destino-vocação. Hermes não substitui o Homem mas, face ao seu esforço e implicação, tende-lhe uma escada, uma âncora para subir através do interior.
Afirma Brandão (idem) que Hermes conhece os três níveis e, por isso, poderá, afirmamos, servir a Lei, que é transversal e una ao mundo da natureza, do Homem que aspira a ser herói[28]e dos Deuses. E, conforme acima nos indicava Platão, pela prática da justiça atingir a saúde da alma e do corpo.
Hermes será o terapeuta de Zeus, curando-o. Após a primeira luta com o monstro Tifão – pai de todos os grandes monstros, aterrador e incansável –, este vence Zeus e arranca-lhe os tendões. Num segundo encontro, Tifão é derrotado e, então, Zeus recupera a sua harmonia/ saúde física devido à intervenção de Hermes, bem como retoma a tranquilidade benéfica e salutar no Olimpo. Aqui, os deuses que tinham fugido do Olimpo para o Egipto, assumindo a forma de animais, regressam, reocupando os seus lugares. O retomar da lei-harmonia, do dever ser aparece associado à reconquista da saúde. Podendo aludir, a este nível, os tendões de Zeus, enquanto elementos de transição e ligação a um retomar da saúde/ harmonia não só físicas. Os tendões permitem a boa articulação, locomoção, são sinal de força e poder fazer, localizam-se muito proximamente às terminações nervosas que conectam com o Sistema Nervoso Central e aos vasos sanguíneos, signos de transmissão de informação, de ligação às ideias e de vida[29]. São, ao que parece, caminhos-poder (siddhis).
Num outro exemplo mitologico-poético, que Homero descreve na Odisseia (X, 281-329), Ulisses retoma a forma humana quando Hermes lhe entrega a erva moli. Ou seja, Hermes intervem na passagem de um ponto de consciência humano, afecto às necessidades básicas (similar ao animal em que Ulisses se transformaria), a um ponto de consciência e vida plenamente Humanas. Este último refere-se ao do Homem-Herói que chega vitorioso ao final da sua saga ou vida na Terra. No final, poderá receber o tributo do seu sacrifício, enquanto sagrado ofício, isto é, trabalho realizado como oferenda, como missão, logo, verdadeiramente libertador.
Exemplos práticos
Defendia o filósofo Pitágoras (570-495 a.C.), amante da harmonia da música, “Educai as crianças para não terdes de castigar os adultos”. A doença, a dor e o desequilíbrio, como nos fala Buda, assumem-se mais como uma forma de «castigo» benéfico[30], de purificação-consciencialização que permite ao Homem uma segunda oportunidade pedagógica, para poder voltar ao caminho certo, ao centro, à Lei, verificar as suas decisões, colocar os seus meios ajustados a objectivos que se querem para ele o mais claros possíveis. Se a sociedade em que vivemos não é a mais saudável em práticas, em alimentação, em imagens, em exemplos… a auto-educação, a nosso ver, surge, como própria do filósofo, como o caminho mais eficaz e célebre para esse bem eterno de que fala Sócrates, fonte de felicidade e saúde nas diversas dimensões individuais e mesmo colectivas do Humano. A este método também apela Platão na Republic.
O encontro da vocação seria esse restabelecer filosófico, ou seja, esse caminho em que a sabedoria interna e externa se conjugam numa unidade de sentido e direccção para a vida. A vocação liberta esses poderes adormecidos no Homem, permite-o ser exemplo para os demais e as novas gerações, contribuir para uma sociedade melhor e mais justa – em que cada um ocupe o seu devido lugar – e assim permite o crescimento harmónico de si e de todos em conjunto. Além de lhe possibilitar, por inerência, o deixar uma pegada, um legado construtivo para a História Humana, o que adquire um valor incalculável e de certa atmosfera eterna.
Na ópera de Wagner Der Fliegende Holländer(The Flying Dutchman), o navegador holandês, de natureza errante, afirma-se, no momento apoteótico, “curado”, quando Senta – a sua amada que tanto esperava – lhe jura fidelidade.
Assim a fidelidade como memória que trás consigo a recordação de um mundo perdido, o da alma que encontra o seu guia no mundo invisível, da morte e libertação, é a saúde eterna, aquela perene e inquebrantável que conduz à harmonia por superação, ou seja, à libertação.
Ainda, na prática clínica e profilática, muitos são os estudos realizados ao nível da psicologia ou de natureza transdisciplinar que apontam o estado de equilíbrio psíquico, em que esteja o doente, como um factor chave para a sua boa e mais rápida progressão terapêutica e mesmo cura. Aqui destacam-se os artigos sobre psico-neuro-imunologia. Nesta àrea, o médico Mario Alonso Puig (Madrid, 2010) afirma,em entrevista, explicando o cenceito e a forma de o entender e aplicar,
«A palavra é uma forma de energia vital.»; «A transformação do observador (nós) altera o processo observado. Não vemos o mundo que é, vemos o mundo que somos.»; «A aceitação [correcta, profunda e autónoma] é o núcleo da transformação.»
Hoje, ao nível dos serviços de oncologia por exemplo, é prática comum a prescrição de acompanhamento psicológico e mesmo psiquiátrico com vista a evitar a anedonia mais ou menos severa, ao longo do tratamento, o que é muito prejudicial e gera frequentemente depressões e episódios de ansiedade. Por isso, também há médicos que defendem a prescrição de medicamentos antidepressivos a partir do primeiro diagnóstico oncológico. A nosso ver esta medida parece-nos abusiva pois deveríamos antes considerar esse manancial de potencialidades adormecidas que o Ser Humano guarda e que através da filosofia e dos seus contributos práticos a par de apoio geral de amigos e família, a nível psicológico, mental e ainda físico e, no cumprimento de tarefas, o homem pode conquistar por reconexão interior a essa predisposição para a cura (videAeschylus, Prometheus Bound ,p.1). Hoje, faz falta o guia (hermético) que conheça esta terapia e a possa implementar adequadamente a cada caso e com reais benefícios para a pessoa. Para tal desenvolvimento, a inspiração nos textos antigos de filosofia prática que contribuam para a ética no trabalho – deontologia – e abram o coração e pensamento do profissional para uma nova síntese (estética) mostram-se essenciais, sem esquecer os estudos científicos tão amplamente postos em marcha hoje em dia. Com a união destas duas fontes de saber e, pela aplicação de uma crítica construtiva de resultados, provavelmente, conseguir-se-ía reais benefícios no desenvolvimento desta terapia de acompanhamento e cura. O alimento interior, o despertar e fortalecer as competências internas que representam Hermes como a ampla visão que alcança a intuição, a reflexão por comunicação de diferentes vias, podem mostrar-se e afirmar-se muito úteis e benéficas. Diria mais, insubstituíveis.
É interessante que, em pleno século XX, um século de profundas oposições até a nível humano, tenha resurgido uma forma de compreender o Homem de inspiração para-material. Viktor Frankl, o psiquiatra e neurologista judeu, austríaco, que esteve durante três anos nos campos de concentração nazis, reescreveu a sua chave terapêutica para a psique humana, após ser liberto em 1945, afirmando que o logos(a palavra que se associa a Hermes) é o meio de cura pelo qual o Homem toma ou retoma o sentido e pode viver. Viver para Frankl é levantar-se sobre si próprio, sobre as circunstâncias internas e externas, é o Homem conectar-se com o seu Nous, exercer a sua liberdade interior. O estabelecimento de comunicação e harmonia no verbo e vida, através dos três mundos, daria a felicidade ao Homem não porque o busca mas porque conquistou o porquê viver. Identifica, pela sua longa prática clínica e universitária, que esta razão/sentido é do que mais carece o Ser Humano hodiernamente. Ao processo de reconexão interior o psiquiatra-filósofo chamou logoterapia. Diz que não mais algum elemento de ordem externa ou de conforto pode satisfazer e fazer avançar o Homem, senão a sua necessidade/vontade de encontrar sentido e face a ele entregar-se preserverantemente. Cria, assim, a terceira escola de Viena sob o mote da Vontade de Sentido, após Freud que preconizava a Vontade de Prazer e Adler a Vontade de Poder. Este autor-buscador afirma-se[31], superando as teorias anteriores, e propondo uma teoria de sentido, de busca por Algo inteligível como afirmava Platão. Só esse Algo que é o Ser pode preencher a matéria viva. Tudo o resto, como afirma Frankl, ainda com compreensão e amor, sintetiza-se na expressão de Fernando Pessoa: «Cadáveres adiados que procriam» bem como o diz Platão no Fédon. Perde-se o sentido e fica o biorobot instintivo tão bem caracterizado pela agudeza de pena de C. Virgil Gheorghiu nas suas obras «A Casa de Petrodava» e «25ª hora». Frankl foi amigo de Oswald Schwarz que edita:
«En el año 1925 fué publicado en Viena un libro de indudable importancia en la historia de la medicina contemporánea. Al frente de sus páginas iba impreso un fragmento del Cármidesplatónico (156 d-157a), aquel en que Sócrates dice haber aprendido de un tracio, discípulo de Zamohds, que las dolencias del cuerpo no pueden ser curadas sin tratar, ante todo y sobre todo, el alma.»[32]
Apenas através da implicação sã do terapeuta a pessoa que busca uma orientação como cura pode entregar-se, confiar, aderir. Então, o tema hoje tão debatido da adesão terapêutica que não é mais do que a implicação do doente na cura, a confiança no terapeuta e em seguir as suas prescrições tomariam outra dimensão. Essa dimensão seria natural, inerente e assumiria maior segurança e durabilidade. Pois a autonomia, liberdade que apologiza Frankl seria a conquista que o terapeuta possibilitaria à pessoa que o procura e não a dependência de si, que é em si uma relação mais instável.
Elisabeth Kübler-Ross (1926-2004), psiquiatra suíça, veio clarificar, no âmbito dos cuidados àqueles que estavam a fazer a sua passagem – o que chamamos, comum e friamente morrer – no que toca sobremaneira à dignificação deste momento, à humanização do homem em que tanto insistiu Frankl. Dizia este humanista que o Homem não o é por existir mas por o aceitar e decidir agir como tal, Humanamente. Kübler-Ross funda, nessa área, estudos superiores (de carácter opcional), em Manhattan (EUA), à época muito rebatidos, tendo mesmo sido ostracizada pelos seus pares. Porém estes princípios que postulou e práticas que desenvolveu e supervisionou assumiram-se como indelével fonte de inspiração para as práticas multidisciplinares nos actuais cuidados paliativos, a nível internacional. Estas práticas consolidam-se mais activamente nos finais do século XX e início do XXI, nomeadamente no IPO em Coimbra (Portugal), assumindo-se como um exemplo nacional. A autora-fundadora desta visão vai mais longe e através das experiências de acompanhamento que relata e a algumas das quais possibilitou que os seus alunos assistissem discretamente[33], aborda o tema da vida após a morte, de que ela acabou por não duvidar, recolocando-o no quadro da ciência actual.
Só conhecendo bem a lei das analogias de Hermes, se pode produzir a cura. É necessário e imperativo conhecer e reconhecer os caminhos de causas e consequências primárias, secundárias…, de avanços e recuos reais e aparentes que os sintomas tomam. Esta é uma experência hermenêutica.
Em suma, podemos concluir que a cura produz-se pelo encadear e entrecruzar benéfico das ciências, pois no Homem (anthropos) está tudo, todo o saber em potência, todos os segredos da natureza. Assim o Homem é síntese, é símbolo real, que deve ir sendo despertado graças ao seu esforço e concedide-lha passagem graças ao seu mérito para que alcance a cura progressiva, a harmonia em movimento e aspire à Alquimia final a que nos inspiram Pico de la Mirandola e Paracelso.