No seu artigo, Os animais têm almas? [1] Helena Petrovna Blavatsky, uma das maiores filósofas ocultistas que o Ocidente criou, começa com a seguinte citação de Joseph de Maistre: Continuamente encharcada de sangue toda a terra, hoje é apenas um imenso altar sobre o qual tudo o que vive deve ser imolado sem cessar.

A eleição desta frase assinala a opinião que tinha esta grande filósofa sobre o sacrifício animal, assim como a falta de respeito que os humanos demonstram com os seres mais próximos de nós evolutivamente, e sobre os quais não temos direitos, mas sim o dever de cuidar, como com o resto da natureza, e ajudar no seu desenvolvimento, evitando sofrimentos desnecessários.

Muitas pessoas afirmam amar os animais, mas pagam diariamente para que sejam explorados e sacrificados em seu nome; o seu comportamento não é coerente com os seus sentimentos.

Há quem se torne vegetariano buscando melhor saúde, mas esse é um pensamento egoísta, em que o nosso comportamento é inclinado apenas para o nosso benefício, além do facto de que pode causar um déficit de vitamina B12, e para ter uma saúde correta devemos vigiar algumas coisas. O pensamento de H. P. Blavatsky está mais próximo daqueles que deixam de consumir produtos de origem animal, por respeito a eles.

  1. H.P.B. escreve no seu artigo: Nós, europeus, somos bárbaros civilizados, com apenas alguns milhares de anos entre nós e os nossos antepassados habitantes das cavernas, que sugavam o sangue e o tutano, sem serem cozidos. Hoje, portanto, é natural que aqueles que dão tão pouca importância à vida humana nas suas frequentes guerras e muitas vezes iníquas, desprezem por completo as agonias mortais da criação bruta, sacrifiquem diariamente milhões de vidas inocentes e inofensivas; e se bem que somos demasiado epicuristas para devorar postas de tigre ou costeletas de crocodilo, não nos faltam tenros cordeiros ou faisões com plumagem dourada… E não é coisa que deve causar grande maravilha, que o duro europeu graceje do doce hindu, que estremece ante a mera ideia de matar uma vaca, ou se negue a simpatizar com o budista e o jainista, no seu respeito pela vida de todas as criaturas sensíveis, desde o elefante ao mosquito. Mas, se comer carne, se converteu numa necessidade vital, quer dizer, a defesa do tirano entre as nações ocidentais; se é necessário que em cada cidade, vila e aldeia do mundo civilizado, comer uma multidão de vítimas e seja diariamente sacrificada em templos dedicados à divindade denunciada por São Paulo, e «adorada por homens cujo Deus é o seu ventre»; se tudo isto e muito mais, não pode ser evitado na nossa idade de ferro, quem pode apresentar a mesma escusa em favor do sacrifício de animais por desporto? A pesca e a caça, a mais fascinante de todas as diversões da vida civilizada, são certamente, a mais fascinante de todas as diversões da vida civilizada, são certamente, as mais censuráveis desde o ponto de vista da filosofia oculta; as mais pecaminosas, aos olhos dos fiéis pertencentes àqueles sistemas religiosos que são o produto direto da doutrina esotérica: o bramanismo e o budismo. Estará por acaso fora de toda a razão, que os seguidores destas duas religiões, as mais antigas que existem hoje, considerem o mundo animal, desde o enorme quadrúpede até ao inseto infinitamente pequeno, como irmãos mais jovens, por mais ridícula que a ideia possa parecer a um europeu?

E prossegue dizendo: No entanto, por mais exagerado que o assunto possa parecer, é certo que poucos de nós, somos capazes de nos representarmos, sem estremecermos, nas cenas que acontecem todas as manhãs de madrugada, nos inúmeros matadouros do chamado mundo civilizado, e mesmo aquelas que ocorrem durante a temporada de caça. Não despertou, todavia, o primeiro raio de sol para a natureza adormecida, quando em todas as partes se preparam miríades de hecatombes para saudar o astro do dia. Jamais o pagão Moloch, se regozijou tanto com o grito de agonia das suas vítimas como o lamentável gemido que em todos os países ocidentais soa como um hino prolongado de sofrimento através da natureza inteira, todos os dias, desde manhã até à noite. Na antiga Esparta, cujos austeros cidadãos, nenhum era insensível, por certo, insensível aos delicados sentimentos do coração humano, um rapaz, convicto por atormentar um animal por diversão, foi condenado à morte, por sua natureza ser demasiado vil para lhe ser permitida a vida. Mas na civilização europeia, que progride rapidamente em tudo, exceto nas virtudes cristãs, a força é agora sinónimo do direito. O costume, por completo inútil e cruel, de caçar por mera diversão, aves e animais de todas as espécies, em nenhuma parte é levada a efeito com mais fervor do que na atual Inglaterra protestante, onde os misericordiosos ensinamentos de Cristo abrandaram escassamente os corações humanos (…); infeliz e dura é a sorte dos pobres animais, convertida em fatalidade implacável pela mão do homem. A alma racional do ser humano parece ter nascido para se converter em assassina da alma irracional do animal; no pleno sentido da palavra, e desde o momento em que a doutrina cristã ensina que a «alma dos animais morre com o seu corpo»…Contemple-se aquela outra desgraça da nossa época culta: hoje os científicos matadouros, chamados de salas de vivissecção… Segundo Paul Bert: «Hoje a vivissecção é uma especialidade na qual a tortura, cientificamente economizada pelos nossos académicos carniceiros, é aplicada durante dias, semanas e até meses inteiros nas fibras de uma mesma vítima. Empregam-se todas e cada uma das variedades de armas; verificam-se as análises ante um auditório sem piedade» …

Ativista contra a vivissecção. Fred.th. Creative Commons.

Seguramente H.P.B. ficaria horrorizada ao ver como temos evoluído com as macro explorações agrícolas e como fazemos viver hoje em dia os animais: vivem as vacas em prados verdes? Criam-se os bezerros acompanhados de suas mães? Brincam os porcos na lama de uma exploração? A resposta é não. A realidade da indústria da carne é grotescamente distinta, a verdade que se esconde atrás dos muros das explorações e matadouros é um inferno difícil de digerir.

Em nome da ciência, os animais são maltratados, chegando aos limites da verdadeira tortura.

Glória aos nossos homens de ciência! Eles superaram todas as anteriores formas de tortura e são agora, e continuarão a ser, de um modo absoluto e incontestável, os reis da angústia artificial e do desespero (De la Resurrection et du Miracle).

  1. H.P.B. chama à reflexão quando disse: Porque deve o homicídio ser considerado o crime mais horrível contra Deus e a natureza, e o assassinato de milhões de seres vivos considerado apenas como diversão?

Longe da nossa vista, desvinculados da bandeja de carne picada que compramos no supermercado, a cada ano é morto no nosso país [Espanha]:

  • 3.500.000 vacas
  • 14.000.000 de ovelhas
  • 2.000.000 de cabras aproximadamente
  • 75.000.000 de porcos
  • 50.000 cavalos
  • 57.000.000 de coelhos
  • 1.340.000.000 de aves

Para criar todos esses milhões de seres, a indústria criou um sistema de produção em que os animais são tratados como coisas que não sentem nem sofrem, são mais uma peça dentro da engrenagem de uma monstruosa cadeia de uma indústria, onde nem a empatia nem a assistência veterinária individualizada têm lugar, e em que prevalece a rentabilidade sobre os interesses dos animais.

Assim que eclodem, os pintos passam por uma cinta transportadora, onde os machos são selecionados e lançados vivos numa trituradora, pelo único motivo de não serem úteis para a indústria dos ovos. São descartados como se o que passasse pela cinta, fossem tomates que não superam o controle de qualidade. Esses pequenos seres recém-nascidos sofrerão uma horrível morte perfeitamente regulada por lei: por meios mecânicos (esmagamento) ou com uma trituradora equipada com lâminas de rotação rápida.

Os frangos e galinhas são seres sensíveis, curiosos e muito sociáveis. Eles gostam de passar o dia cuidando das suas penas, cavando e bicando, tomando sol ou tomando banhos de areia. O seu comportamento natural será completamente negado. Nunca verão a luz do sol, nunca pisarão outra coisa além da grade metálica da jaula, não poderão mover-se no limitado espaço correspondente para cada um, equivalente a uma folha de papel. As galinhas mais fracas adoecerão e agonizarão lentamente sem assistência veterinária. As que sobreviverem, após um ano ou um ano e meio de confinamento, diminuirão o seu nível de produção de ovos e deixarão de ser rentáveis para o produtor, que as enviará para o matadouro. Igualmente, os frangos serão enviados ao matadouro após um rápido e artificial processo de engorda, apenas um mês e meio depois de nascerem.

Os porcos são submetidos a dolorosas mutilações assim que nascem. A legislação permite que durante os primeiros sete dias de vida e sem o uso de anestesia, lhes recortem os caninos aos leitões, lhes amputem as suas caudas e se castrem os machos. As jaulas de gestação, onde as porcas passam o tempo da gravidez e do parto, mantêm-nas permanentemente imobilizadas, impedindo-as que elas sequer se virem. Quando dão à luz, as mães nem podem chegar perto dos seus leitões. Apesar de, em liberdade, uma mãe construiria um leito onde pudesse dar à luz comodamente os seus bebés, a lei é clara e categórica: as porcas devem dispor de tempo suficiente antes do parto, para se adaptarem ao sistema de confinamento.

Para que as vacas produzam leite, são inseminadas artificialmente repetidamente, num ciclo contínuo de gestações. Após o parto, os bezerros recém-nascidos são dolorosamente separados das suas mães, administrando-lhes produtos que substituem o leite materno. Após alguns meses de engorda, serão enviados para o matadouro para serem transformados em carne.

Santo Agostinho de Hipona. Philippe de Champaigne. Domínio Público.

Toda essa mentalidade deriva da ideia de que a alma do homem sobe para cima e a dos brutos cai para baixo…, embora muitas pessoas acreditem que o animal não tem alma, o que nos vem das reflexões de Santo Agostinho e depois defendidas por Descartes. Se vemos os animais como máquinas e não como seres vivos sencientes, é fácil utilizá-los e deixar de lado a nossa consciência sobre a dor que causamos e, como nos lembra H.P.B., o atraso que causamos na sua evolução com mortes precoces desnecessárias. A maioria dos cristãos esqueceu-se que os cristãos primitivos, durante os primeiros séculos, jamais tocaram na carne para se alimentarem, pois, o mandamento bíblico lhes disse claramente, referindo-se aos vegetais: para vós (homens) aquilo servirá para alimento (I, 29). Tertuliano, numa das suas cartas, escreve: A nós não é permitido presenciar, ou mesmo ouvir, o relato de um homicídio, nós cristãos, que nos recusamos a saborear pratos, nos quais possa ter sido misturado sangue animal.

Hoje em dia, que sabemos que geneticamente somos quase idênticos à maioria dos mamíferos superiores, em alguns casos até 98%, não é vaidade pensar que somos uma criação especial? Hoje é essa ideia e nenhuma outra que justifica o abuso indiscriminado dos animais.

A respeito da ideia cartesiana, H.P.B. observa: Não é necessário lembrar ao leitor que Descartes considerava o animal vivente apenas como um autómato, «um relógio bem construído, com a sua corda». Portanto, aquele que aceita a teoria cartesiana acerca do animal, tem que admitir, ao mesmo tempo, as opiniões dos materialistas modernos, porque, enquanto um autómato é capaz de sentimentos como o amor, a gratidão etc., e está dotado sem dúvidas de memória, todos estes atributos devem ser – como o materialismo ensina – propriedades da matéria. Mas se o animal é um autómato, porque não o é o homem? As ciências exatas, a anatomia, a fisiologia, etc., não encontram a menor diferença entre os corpos de ambos, e quem sabe – pergunta Salomão com justiça – se o espírito do homem subiu um pouco mais acima, do que foi o do animal? Assim, encontramos hoje, o metafísico Descartes tão inconsequente como qualquer um».

(…) O homem está dotado de razão; a criança, de instinto; e o animal jovem dá mais sinais do que a criança, de possuir ambas as coisas. Verdade seja dita, todos os que discutem este problema sabem tão bem como nós, que é assim. Se os materialistas se negam a confessá-lo, é por orgulho, negando a alma tanto ao homem como ao animal, não querem admitir que este último seja dotado de inteligência como eles mesmo, embora num grau infinitamente menor…

Não é a escritora destas linhas tão inocente a ponto de acreditar que todo um Museu Britânico, cheio de obras contra a alimentação carnívora, terá o efeito de impedir as nações civilizadas na construção de matadouros, ou as fará renunciar aos seus bifes e perus de Natal. Mas se estas linhas humildes podem fazer compreender a alguns leitores, o verdadeiro valor das nobres palavras de São Paulo e, com ele dirigir seriamente os seus pensamentos para todos os horrores da vivissecção, então a escritora se dará por contente. Pois, certamente, quando o mundo se sentir convencido – e não poderá evitar-se que chegue algum dia tal convicção – de que os animais são criaturas tão eternas como nós mesmo, a vivissecção e outras torturas permanentes, diariamente infligidas aos pobres animais, obrigarão todos os Governos, depois de dar lugar por parte da sociedade em geral, a uma explosão de condenações e ameaças, para pôr fim a estas práticas bárbaras e vergonhosas.

Podemos ver a clareza com que fala essa filósofa do século XIX, embora, como previu, não logrou produzir efeitos imediatos, já que hoje continuamos sacrificando pelo prazer dos nossos estômagos. Só em Espanha, 850 milhões de animais por ano são maltratados nas macro explorações, amontoados em espaços onde muitos deles não têm um único dia de movimento livre, até ao dia da sua execução, que em muitos casos é na sua mais precoce idade, como cordeiros em aleitamento, impedindo a sua evolução natural, numa espécie de tortura sem paralelo na história da humanidade. Não podemos olhar para o outro lado, é um dever do homem consciente lutar por causas justas e difíceis e isso, quiçá, seja uma das mais terríveis do nosso tempo.

Os matadouros são o último elo de um sistema que cria, explora e mata em tempo recorde, centenas de milhões de animais por ano. Frangos, bezerros, cordeiros, leitões… Nenhum deles chegou ao fim da sua esperança de vida. Pelo contrário, são todos tão jovens que a sua idade de sacrifício não é calculada em anos, mas em meses.

Estamos habituados a ouvir as ofertas do supermercado, sem pararmos para pensar que um cordeiro em aleitamento é um bebé lactante com poucos dias de vida, que um leitão é um porco lactante que foi sacrificado aos vinte e oito dias de idade, ou que o bezerro não é o nome de um tipo de carne, mas um animal recentemente separado da mãe, que foi levado para o matadouro, sem ter podido desfrutar da companhia da sua mãe, nem por um instante.

A morte é sistematizada em processos industriais nos quais prima a rapidez.

Inspeção de suínos. Domínio Público.

Na União Europeia são autorizados vários métodos de abate de animais, de acordo com a espécie, todos igualmente angustiantes e stressantes. Os frangos são eletrocutados ao serem imersos em tanques de água eletrificada, para posteriormente serem pendurados de boca para baixo, para se lhes cortarem as gargantas até sangrarem. Os ritmos de sacrifício são tão rápidos que nem sequer é feito de forma manual, existindo para isso cortadores de pescoço automáticos.

Os porcos podem ser gaseados com CO2 [dióxido de carbono] ou eletrocutados com pinças e, em seguida, pendurados e sangrados. Embora se tenha demonstrado que os sistemas de asfixia com gás inerte são angustiantes para os animais que os experimentam, a própria legislação também concluiu que é muito custoso para a indústria implementar novos métodos de morte.

Com as vacas é usada uma pistola de dardo cativo para ser disparada entre os olhos, até deixá-las inconscientes e posteriormente, pendurá-las num gancho por uma pata traseira para sangrarem e as desmembrarem. O Real Decreto que regula a matança de animais descreve a infinidade de métodos para matar cada animal, cada qual mais assustador, nenhum isento de angústia e sofrimento.

Há uma realidade, muitas vezes ignorada em campanhas e debates sobre pecuária, sendo que as explorações e matadouros existem porque há pessoas que consomem carne, então é necessária uma reflexão madura, honesta e sincera. Cabe a nós tomar decisões.

Não é uma questão de fazer alguém sentir-se mal, mas ser responsável: tu podes tomar decisões que contribuam para ser parte da solução. Podes ser consciente das consequências do consumo de carne e reduzi-lo paulatinamente. Todos nós começamos por dar um primeiro passo e, acabar formando parte de uma corrente crescente de pessoas que constituem a solução.

[1] Artigo contido em Escritos ocultistas, publicado por Nueva Acrópolis (Madrid, 1984) e, anteriormente, na revista Sophia, em 1894. Traduzido do volume III da Theosofic Publications Society.

Silvia BarqueroJuan Carlos Rodero

Publicado na revista Esfinge em 1-09-2023

Imagem de destaque: A criação de animais para consumo humano. Creative Commons.