A cada 22 de abril celebra-se o Dia Internacional da Mãe Terra. Este ano fará quase meio século que se comemora, no entanto, são poucas as mudanças conseguidas para tornar a nossa relação com o nosso planeta sustentável. Algumas destas mudanças deverão ser tão profundas que poderemos não estar dispostos a adotá-las, indo contra a nossa vontade de manter uma forma de vida e um ideal de felicidade e de desenvolvimento baseados no consumo, no conforto, na ganância, na necessidade de ter cada vez mais e mais de tudo, em lugar de explorar outras formas de ser e de estar na Terra.
Neste artigo pretendo compartilhar algumas reflexões em torno do pensamento dominante fundamentalmente nos séculos XIX e XX, e nas ideias emergentes que vão ao encontro de muitas das abordagens às necessidades tradicionais de grande parte dos povos da Terra.
A ecologia, como ramo da biologia que estuda as relações dos seres vivos entre si e com o meio envolvente, é relativamente jovem como ciência. Nasceu em 1869, no entanto, o termo engloba algo de crucial importância: as relações do ser humano com a natureza, das ideias e atitudes que deram origem a essa relação e as consequências que decorrem do nosso comportamento face aos outros seres vivos e ao próprio planeta. Esta é a proposta filosófica: proporcionar diferentes formas de compreender e de nos relacionar com a Terra, tanto nas culturas ancestrais como atuais.
As raízes da crise ecológica
A grande crise ecológica que a vida da Mãe Terra atravessa é devida a uma destas formas de pensar. A saída desta crise, se ainda vamos a tempo, só é possível através da mudança de paradigma. Para mudar as consequências, há que mudar os comportamentos e para mudar os comportamentos é necessário mudar a forma de pensar, de compreender a Terra e a nossa interação com ela.
Se aprofundarmos as causas do desequilíbrio provocado pelo ser humano, veremos que não há maior fraude que o nosso sistema de consumo que é o mesmo do crescimento económico baseado na dívida pública. Exploramos recursos e produzimos resíduos hipotecando o futuro das gerações vindouras. O que provocou a crise ecológica? Foi a ideia de um progresso sem fim baseado no crescente aumento de bens de consumo extraídos da natureza que provocou o colapso do sistema. Uma ideia de progresso baseada apenas em bens e meios materiais, com os quais se definiu a chamada sociedade do bem-estar, que, evidentemente, têm de ser extraídos da natureza. Assim, estamos perante uma relação com a natureza de explorador e proprietário e de ignorância, pois estamos longe de conhecer as consequências.
O termo ecologia foi cunhado pelo estudioso Ernst Haeckel, no ano de 1869, que entendia como o estudo da relação dos seres vivos com o meio ambiente que os rodeia. Atualmente, a definição foi ampliada: assim, a definição de ecologia engloba não só a relação que os seres vivos estabelecem com o meio ambiente, mas também as relações estabelecidas entre eles. O conceito deriva etimologicamente do grego oikos, que significa “casa” e logos, “ciência”, “estudo”, pelo que a definição seria, o estudo da nossa casa, entendendo que a natureza é o nosso lar e que nós fazemos parte dela.
Mas a relação com o nosso lar admite diferentes formas de ser entendida. Outro termo muito relacionado com a ecologia é o ecossistema. Um ecossistema é considerado o conjunto das diferentes espécies de seres vivos de um determinado local, que interajam entre eles e com o meio abiótico, sem vida. Estas abordagens, certamente, permitiram dar um grande impulso no conhecimento da complexidade da natureza e do seu equilíbrio para que se possa produzir vida, mas fundamentou-se muito na teoria evolucionista, que interpreta o processo da vida no planeta como uma luta de seleção natural entre indivíduos, e não tanto na capacidade de adaptação, cooperação e integração dos grupos. Por outro lado, interpreta a Terra e quase toda a natureza como o meio que nos rodeia, um espaço abiótico e sem vida em que desenvolvemos nossa existência, longe de visões muito mais integradoras.
Na maioria dos casos, só se consideram as partes que vivem em conjunto, mas não o todo como uma realidade em si mesma, esquecendo que todo não é simplesmente a soma das partes. Todos já terão ouvido falar da teoria de Gaia. Foi nos princípios dos anos 70 quando Lovelock tornou pública a sua teoria, agitando os meios científicos daquela época. James Ephraim Lovelock foi um cientista independente, que faleceu aos 103 anos de idade, em 2022.
Lovelock foi meteorólogo, escritor, inventor, químico e ambientalista, imaginou a Terra como um sistema autorregulador, que geria os seus próprios processos e controlava os equilíbrios necessários à manutenção da vida. Comprovou como a temperatura e a composição química da atmosfera permaneceram estáveis durante 3.500 milhões de anos. Foi esta estabilidade e esta composição que permitiu o desenvolvimento tão maravilhoso da diversidade de vida, tal como a conhecemos.
3.500 milhões de anos é muito tempo, mas um tempo tão longo induz-nos a pensar que esta ordem e autorregulação obedecem a um propósito prévio. Isto, tanto para a ciência determinista e cartesiana, como para a biologia evolutiva, não é aceitável porque suportaria não só entender a Terra como um grande ser vivo, mas também como um ser com um objetivo, com uma razão de ser.
Perante esta ordem e processo perfeitos que se manifestam em todos os aspetos da vida na Terra, a questão que se coloca é simples: A ordem é fruto da casualidade? E se não é assim, o que está por detrás dessa ordem? Pode ser que realmente haja uma finalidade? Uma vontade? Existe uma inteligência?
A Teoria de Gaia levou a que, do lado da ciência, voltassem a surgir velhas formas de entender o nosso planeta, formas que o definem como um grande ser vivo, onde todas as partes estão envolvidas nesse processo a que poderíamos chamar a grande vida. A ecologia como ciência demonstrou de forma irrefutável como os seres vivos se relacionam uns com os outros e com o seu meio envolvente, de tal forma que o que acontece com o todo afeta cada uma das partes, e cada uma das partes afeta o equilíbrio do todo; um equilíbrio muito frágil quando os parâmetros que o sustentam se rompem. Tudo isto levou a duas grandes conceções que, além disso, produziram atitudes muito distintas perante a vida da Terra e a nossa relação com ela; o que podemos chamar por um lado de paradigma mecanicista cartesiano e, por outro, o paradigma animista.
O paradigma mecanicista cartesiano começa com o filósofo René Descartes que, no século XVII, concebeu a Terra e o mundo material como uma grande máquina desprovida de alma, quer dizer, de sentimentos ou de inteligência, uma máquina ao nosso serviço para ser dominada e explorada.
Esta abordagem acentua-se com a revolução industrial e com o distanciamento das paisagens naturais em benefício das cidades, onde os seres humanos vivem rodeados por um ambiente em que quase a totalidade dos elementos que o constituem foram criados por ele mesmo, o qual foi conduzindo inexoravelmente a um grande antropocentrismo. A abordagem ecológica parte deste paradigma mecanicista que defende que devemos preservar os equilíbrios da natureza que nos permitem manter o nosso estado de bem-estar. É uma ecologia do verde, na medida em que continua a considerar a natureza como um elemento a explorar e completamente ao nosso dispor. Já estamos a sofrer as consequências de continuarmos a atuar como se os recursos naturais fossem inesgotáveis, ou em qualquer caso, como pudessem ser substituídos por outros, dando por garantido que a ciência conseguirá arrancar segredos a esta grande máquina que é a natureza.
Por outro lado, mencionamos o paradigma animista. Esta forma de pensar parte da ideia que a natureza está verdadeiramente viva, e que cada entidade que alberga está dotada de inteligência e vontade. O que nos rodeia não são coisas, mas seres com um espírito, com uma entidade, com uma alma e, além disso, todo o vivente no nosso planeta forma parte da mesma natureza, da Terra, que considera um grande ser vivo que transcende as diversas entidades vivas que nela se desenvolvem. Cada um desses seres é uma expressão dessa grande vida, e, portanto, valiosa por si mesma. Tudo está dotado de inteligência e de vida que se integra em seres maiores, os quais por sua vez têm o seu próprio desenvolvimento.
Cuidar da Terra é cuidar da vida da qual fazemos parte. A abordagem ecológica que parte deste paradigma não têm uma visão utilitária da natureza, mas sim o seu respeito pelo equilíbrio natural no respeito pela própria vida, que se manifesta em todos os seres. Não está fundamentada tanto na luta pela sobrevivência material como no desenvolvimento do potencial de consciência que está armazenado em cada ser, incluindo nós próprios, em perfeita harmonia com o desenvolvimento evolutivo da Terra. Esta abordagem interpreta a Terra como uma inteligência capaz de gerir o seu próprio destino evolutivo e dos seus seres, mesmo que por vezes à custa de grande sofrimento.
O restabelecimento do equilíbrio é necessário, num esforço da nossa parte para evitar o sofrimento dos seres humanos e de todos os seres que partilham connosco o mistério da vida. Esta ideia está diretamente ligada a grande parte do pensamento mítico das culturas ancestrais, mas é hoje partilhada por muitos cientistas naturalistas e ecologistas, como resultado das suas investigações e experiências.
A Terra viva desde a antiguidade
Aldo Leopold, ecologista da primeira metade do século XX escreveu: «no mínimo, não é impossível considerar as partes da Terra, o solo, as montanhas, os rios, a atmosfera, etc., como órgãos ou partes de órgãos de um todo coordenado, cada parte com a sua função definida. E se pudermos ver tudo isto como um todo durante um período prolongado, perceberemos não apenas órgãos com funções coordenadas, mas possivelmente também um processo de reposição que em biologia chamamos de metabolismo, crescimento. Nesse caso, teríamos todos os atributos visíveis de um ser vivo, algo que não nos apercebemos porque é demasiado grande e seus processos vitais demasiados lentos».
E daí poderia resultar esse atributo invisível, uma alma ou consciência que muitos filósofos de todas as épocas atribuem aos seres vivos e aos seus agregados, incluindo a Terra que acreditamos estar «morta».
De Stephan Harding, biólogo, autor de um maravilhoso livro chamado Animate Earth: Science, Intuition and Gaia, podemos ler: «A natureza está realmente viva e cada uma das entidades que a compõe é dotada de livre-arbítrio, inteligência e sabedoria, qualidades que no ocidente, se são reconhecidas, são geralmente designadas por almas.»
Mas vejamos algumas crenças e ideias sobre a Mãe Terra que existiram em culturas antigas e ancestrais. Todos os povos falam da Mãe Terra. Não se trata apenas de uma metáfora dos povos agrícolas e pastorícios, mas talvez de uma ideia mítica cunhada ao longo de milénios de relação e experiência com a própria vida. Cabe perguntar-nos o porquê das culturas representarem a natureza como uma deusa através do pensamento simbólico. Certamente, os mitos tentam elevar-nos ao incompreensível e os deuses representam no imaginário coletivo as realidades que são intuídas e compreendidas como «sobre-humanas».
A Terra era entendida como um grande ser. Comecemos por uma breve panorâmica de algumas dessas antigas tradições e mitos.
Começaremos por Gaia, também conhecida por Gea. Na mitologia Grega, Gea é a personificação desta deusa mãe, uma deidade primordial ancestral que deu origem a toda existência.
Esse mito explica-nos que Gea nasceu do Caos primordial, da vasta escuridão primária, e depois de gerar o céu com a sua multitude de estrelas – Uranos, e a Ponto – os mares e oceanos, da sua união com Uranos, com o céu, nasceram todos os seres vivos, incluindo os seres humanos. Os romanos a adotaram como Tellus Mater ou Terra Mater, mas foi mais conhecida como Gaia.
Algo semelhante encontramos na mitologia egípcia com Geb, a Terra. Geb era filha de Shu e Tefnut, as forças vitais masculina e feminina que animam o universo. Com ele nasceu a sua irmã gémea Nut, a deusa do céu. Geb era genericamente representado com pele verde para exprimir a fertilidade da Terra. Era representado deitado por baixo da sua irmã Nut, que descreve um círculo por cima dele. Normalmente está apoiado sobre um cotovelo e com um joelho dobrado, para simbolizar os vales e as montanhas da Terra. Da união do Céu e da Terra surge a vida.
Entre as culturas Incas, inclusive as suas antecessoras, encontramos o culto a Pachamama, mãe terra, deusa da fertilidade que preside a sementeira e a colheita, sempre presente e independente, que tem o seu próprio poder criativo para manter a vida nesta terra.
Prithi Vainiá, na antiga Índia, é segundo uma tradição, a personificação do planeta Terra. Diz a lenda que o rei Prithu, uma encarnação de Vishnu, concebeu Prithuí em forma de vaca para conseguir alimentar o mundo inteiro. Sabemos que, na antiga Índia, uma das representações da grande mãe do cosmo nutritivo é justamente uma vaca. É também na índia que encontramos textos sagrados que nos alertam para a heresia da separatividade, que conduz o ser humano a crer que é distinto e separado do resto do universo. Para estas tradições, o ser humano faz parte da grande extensão de vida. É uma manifestação da primeira divindade, como tudo o que se manifesta, numa espécie de grande panteísmo.
Mas o maior desenvolvimento da ideia da Terra como um grande ser vivo, com alma, encontramos em Platão. No diálogo de Timeu, ele fala num conceito que ainda hoje tem enorme repercussão, o anima mundi, a alma do mundo. Disse Platão: «O mundo é, de facto, um ser vivente dotado de alma e inteligência, uma entidade visível que contém todas as outras entidades». Nos seus diálogos, vemos também como Platão fala de um cosmos ordenado, onde tudo está interligado. A alma humana, portanto, está também conectada com a alma dos animais e das plantas através desse anima mundi.
Uma ideia muito semelhante encontramos também nos estóicos romanos. O universo, a natureza e Gaia estão dotados de um logos, uma inteligência que anima e impulsiona todas as coisas. A força primordial que contém o universo e a Terra comporta-se como uma semente para desenvolver todo o seu potencial, e este processo de desenvolvimento evolutivo é guiado por um logos.
Seguindo este mesmo fio, mencionaremos como algumas tradições herméticas e teosóficas entendem o planeta Terra como parte de um ser maior, que é o nosso próprio sistema solar, e que por sua vez está integrado noutro grande ser vivo maior, o próprio cosmos, que longe de ser uma máquina sem alma, é a própria divindade manifestada. Tudo seria uma expressão da Vida-Una que se manifesta em todo o universo.
Quero terminar esta referência às tradições e mitos da terra recordando um texto que se converteu num dos manifestos ecologistas mais relevantes do século XX: a carta do chefe índio Seattle ao presidente dos Estados Unidos, onde diz:
“Nós somos parte da Terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs. O veado, o cavalo e a majestosa águia são nossos irmãos. Os prados, o calor corporal do potro e o homem, todos eles pertencem à mesma família. Sabemos que o homem branco não compreende a nossa maneira de ser. Para ele um quinhão de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega de noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga. Quando a tiver conquistada, a abandona e segue o seu caminho, indiferente, deixa atrás dele as sepulturas de seus pais sem que lhe importe. Despoja da Terra os seus filhos sem que lhe importe. Esquece a sepultura de seu pai e os direitos de seus filhos. Trata a sua mãe (terra) e o seu irmão, o céu, como coisas que podem ser compradas, saqueadas e vendidas como ovelhas e contas de vidro. A sua voracidade devorará a Terra e deixará atrás de si apenas um deserto. Deveis ensinar os vossos filhos o que temos ensinado aos nossos: que a Terra é nossa mãe. Tudo o que fere a Terra, fere os filhos da Terra. Quando os homens cospem no chão, cospem a si mesmos. Isto sabemos: a Terra não pertence ao homem, é o homem que pertence à Terra. Não foi o homem que teceu a teia da vida, ele é meramente um fio dessa teia. Tudo o que ele fizer à teia, a si próprio fará. O que sucede à Terra sucederá aos filhos da Terra. Disso temos certeza: todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família”.
O ser humano e a natureza
Poderíamos perguntar-nos: para que servem todos estes mitos e teorias antigas se a ciência já desvendou os segredos da natureza? Nada mais longe da verdade. Há muitas outras formas de conhecer e de se ligar a essa realidade para além da estrita razão. O meio para conhecer a realidade que nos rodeia e até para nos conhecermos a nós mesmos, foi durante séculos o pensamento racional, aquilo que poderíamos chamar científico. No entanto, a nossa forma de nos relacionarmos e de nos aproximarmos do mundo não é apenas racional, é algo mais amplo, e muitas coisas derivarão da forma como nos conhecemos e nos relacionamos uns com os outros. O físico Warner Heisenberg afirmou, no século XX, que o que observamos não é a natureza em si, mas a natureza exposta ao nosso método de investigação. Stephen Harding, no magnífico livro que mencionei Animate Earth: Science, Intuition and Gaia, recorda o psicólogo Jung e as quatro funções psicológicas que descreveu. Quatro grandes vias que devem ser integradas pelo ser humano para se aproximar do mistério da natureza: o pensamento, mas também, o sentimento, a sensação e a intuição. Pensamento, sentimento, sensação e intuição.
Somente da união destas quatro vias se pode atingir a verdadeira compreensão; o ser humano pode chegar a uma verdadeira intuição que lhe permita ver a unidade para além dos fenómenos que a compõe. Muitas vezes, estudamos na natureza apenas os fenómenos que nos são mostrados, como se fossem letras de um grande texto, mas sem ver para além delas nem compreender a sua mensagem e o seu significado profundo. Para o compreender, pensemos como, para além do conhecimento científico e dos contributos que a ecologia nos dá hoje, milhões de seres humanos ao longo da nossa própria história sentiram a sua estreita relação com a natureza como uma necessidade vital, e não apenas utilitária, e sentiram a Grande Mãe Terra, algo que a ciência começa a vislumbrar.
Embora saibamos que o ser humano é um ser social e que, por isso, precisa de uma relação com outros seres humanos, sentimos que também precisamos de uma relação com aquilo a que poderíamos chamar mais do que humano, uma relação com a Terra, com a Grande Mãe, para sermos plenamente humanos. Stephan Harding propõe várias vezes que entremos em contacto com a natureza, deixando de lado, por um momento, o nosso pensamento racional. Contemplemos, por exemplo, uma floresta. Não como um espaço onde há pedras e árvores e animais, mas como um ser que vive e respira, e guardemos dentro de nós as sensações e intuições que podemos perceber. Todas elas formarão parte do que nos leva, em algum momento, a estabelecer contacto com essa relação, com essa realidade que forjamos para nós próprios na própria Terra.
O antropocentrismo, que nos colocou como seres com direito a explorar tudo o que existe e nos rodeia, instrumentalizando a vida no planeta, não nos permite ver para além da nossa própria dimensão, limitação e tamanho, acreditando que somos os seres mais desenvolvidos que existem. Levou-nos inclusive a dividir o mundo em conceitos como artificial e natural, sendo o artificial aquilo que é gerado pelo engenho do ser humano, sem nos apercebermos que a nossa própria engenharia não difere muito das maravilhas que muitos seres da natureza criam, como a teia de uma aranha ou um ninho de um pássaro, ou seja, com toda a arquitetura da vida.
O problema não está entre o artificial e o natural, mas entre o que respeita o equilíbrio da natureza ou o que o destrói. É a mesma atitude antropocêntrica que tenta desvendar os mistérios da natureza por meio da violência e da tortura, como propôs Francis Bacon, o fundador da ciência experimental moderna. O filósofo Goethe opor-se-ia a esta visão, propondo a atitude contemplativa, que escuta com amor a natureza e a deixa revelar os seus segredos.
Platão, como Séneca, dizia que o resultado, para o ser humano, desta contemplação da natureza é que produza em si uma grandeza de alma. Contemplar o universo com os olhos de um artista, dizia Berzon, e não com um olhar utilitário. Isto nos permitirá conhecer as coisas como elas realmente são, pelo prazer de as conhecer, e não condicionadas pelo interesse e pela utilidade.
O certo é que, na contemplação direta da natureza, se produzem experiências que activam os nossos sentidos e sensações, que despertam emoções e intuições, e que, apesar de muitas vezes colocarmos em primeiro lugar uma mente racionalista, nos permitem aceder a uma consciência da Vida Una que se manifesta na montanha, na paisagem, nos rios… e que nos pode levar a intuir a alma, a inteligência de Gaia.
Vida e inteligência
Em todos os níveis da vida vemos inteligência subjacente, não apenas uma ordem que é difícil de explicar como casualidade, mas sim uma capacidade contínua de adaptação e resposta para desenvolver um potencial, que se desenvolve através de um processo evolutivo que parece responder a um plano, a um propósito. Ninguém com senso comum pode pensar que a complexidade deste grande organismo que é a Terra, deste grande sistema de sistemas que mantém um equilíbrio tão complexo em todos os seus processos para que a vida se manifeste nos seus diferentes níveis – incluindo o desenvolvimento da consciência no ser humano – seja fruto do acaso. Nem tão pouco é o resultado de um sistema de marchas e contramarchas, de provas e erros, de uma seleção natural que exigiria um tempo quase infinito para chegar à vida tal como a conhecemos hoje.
O nosso senso comum diz-nos que, por detrás da ordem, há uma vontade e uma inteligência aplicadas para a produzir. Olhemos para a nossa vida quotidiana: o que acontece se a nossa vontade e a nossa capacidade de encontrar a ordem no tempo e no espaço em que nos movemos diminuírem? Não é por acaso que surge a disposição correta das coisas: pelo contrário, surge a fragmentação, surge a escuridão e o caos.
A nossa intuição, embora não a possamos exprimir em formulações científicas, diz-nos que a Terra é inteligente e que possui um forte impulso para a realização evolutiva. A inteligência está presente nos quatro reinos da natureza, não apenas no reino humano, mas existe uma forma de inteligência que pode ser percebida desde a célula, como descreve Bruce Lipton, através das árvores e das plantas ou dos insetos e outros animais.
E por que não pensar que o mesmo se aplica à vontade? Vontade como impulso para a realização, que vemos, por exemplo, nas sementes ou em todo o planeta; como evolução e desenvolvimento, como impulso para a realização de todas as potencialidades encerradas na vida e que se desdobram a cada passo. Sem esquecer que a vida é amor, a força que une e se manifesta em tudo, mantendo a coesão e a harmonia perante as forças de fragmentação e decomposição que conduzem à morte.
Talvez os mistérios antigos, se quiséssemos inquiri-los, nos revelariam segredos incríveis sobre a vontade, o amor e a inteligência que regem o universo. Certamente, novas formas de pensar estão a emergir no mundo, como a ecosofia, que propõe uma relação com a natureza que minimiza os danos ao equilíbrio, ao mesmo tempo que reforça os sentimentos de admiração e de pertença de cada um. Ou o movimento da ecologia profunda, que propõe um questionamento profundo dos pressupostos fundamentais da nossa cultura, e não uma reforma verde que se limita a manter a ideia de uma sociedade de consumo e de um sentido utilitário da natureza. Uma nova consciência holística com uma visão mais integradora e global pode aproximar os seres humanos da compreensão do seu lugar natural no nosso mundo, no universo. Pode dar-nos um sentido e um significado da nossa própria vida que se integre no significado da vida-una, que desenvolve o seu potencial evolutivo de consciência.
Atualmente, são muitas as ameaças ao equilíbrio por parte dos seres humanos. Estou convencido de que a inteligência, a vontade e o amor da Mãe Terra o restabelecerão, mesmo que tenha de o fazer de forma convulsiva. Mas também, como fruto do desenvolvimento desse potencial de vida, existe a nossa própria consciência e amor para tentar evitar o máximo de dor para todos os seres.
Finalmente, gostaria de dizer que não me agrada a ideia de que seja o medo que nos faz reagir. O medo nunca é amigo da cordura e da temperança. Por outro lado, o amor que desperta a beleza da vida e da natureza pode acabar por ser o motor mais importante da ecologia, mais do que a ciência, a crise económica ou as alterações climáticas. Porque a mudança que tem de ocorrer deve levar toda a humanidade a deixar de ser saqueadora e violadora da natureza para ser uma verdadeira amante da vida, amante da nossa Mãe Terra.
Miguel Ángel Padilla
Imagem de destaque: Uma abelha europeia (Apis mellifera) extrai néctar de uma flor usando sua tromba. Domínio Público
Muito ainda temos a aprender com as civilizações antigas, com os povos a que chamámos primitivos, que ridicularizámos e destruímos porque achavam que a montanha era um ser, que um rio era um ser,que o vento era um ser. Lentamente vamos descobrindo que os antigos eram mais sábios do que nós, neste e noutros muitos aspectos. Por isso , embora o artigo seja francamente bom, eu não diria que a ecologia nasceu em meados do século XIX,mas sim milhares de anos antes. Já no Zoroistrismo (ou mazdeísmo) se dizia que devíamos tratar os animais com justiça e, anos mais tarde, nos 10 mandamentos do maniqueísmo( outra religião da velha Pérsia) se dizia que “não devemos ferir, assustar ou maltratar os animais”. Repare-se a delicadeza da palavra “assustar”. Os índios iroquezes, da América do Norte, quando tomavam certas decisões, tinham em linha de conta os efeitos que elas poderiam produzir nas sete gerações seguintes. Daí que a ecologia que nós conhecemos como tendo “nascido” no séc XIX, é apenas muitas vezes uma caricatura materialista , mecanicista e até uma moda moderna , sem ter a grandeza e a elevação dos cultos antigos.