“Devia mudar o objecto dos meus desejos

Não me contentar com pequenas alegrias quotidianas”

(E Venho-te Buscar)

A Itália Desconhecida

Há uma Itália que conhecemos e uma Itália profundamente desconhecida entre nós, em Portugal. Por quanto o inglês seja a língua universal hoje em dia, há uma magia muito própria em conhecer outros idiomas, pois estes abrem-nos novos horizontes para toda uma vida… e dão-nos possibilidades de enriquecimento da alma que talvez nem suspeitássemos. Podemos traduzir poesia, mas nunca teremos a mesma música; podemos ver a tradução de uma letra, mas nunca terá o mesmo impacto de sabermos os contornos de uma palavra precisa numa dada língua e cultura – e assim perdemos os picos de Beleza de um outro país.

A língua é acima de tudo uma enormíssima possibilidade de entrar num mundo completamente diferente – uma forma de pensar, o som, as palavras, a cultura[1]. Devemos agradecer a todos os tradutores, mas quem poderia passar para português a atmosfera mágica de Chim Chenney que se ouve em Mary Poppins, por exemplo? Não é possível, simplesmente.

Hoje, infelizmente, somos essencialmente americanos. As nossas salas de cinema, salvo formidáveis excepções, projectam-nos conteúdos em inglês. A nossa psique é bombardeada com música inglesa por praticamente todas as rádios (embora se notem cada vez mais sinais contrários)[2]. Uma das consequências de tudo isto é que grandes nomes de outras culturas, não anglófonas, acabam por nunca virem ao nosso conhecimento. Em Portugal o estado geral chega a ser tal, que mesmo os próprios nomes da nossa música são menos conhecidos em geral do que as modas e referências internacionais. É curioso verificar como noutros países, como em França ou em Itália, há uma maior ligação da juventude e da população em geral à sua própria realização cultural. Podem não ouvir, mas uma grande maioria conhece Jacques Brel, George Brassens, De André, etc.

É evidente que alguns nomes italianos são bastante conhecidos entre nós, mas no nosso caso específico estamos a falar sobretudo da Itália dos cantautori (os poetas que musicam e cantam, se quisermos explicar o termo, ou os compositores das chamadas canções de autor, mesmo se Battiato foge ainda assim a esta etiqueta no seu sentido mais estrito). No geral, nunca ouvimos um acorde ou a voz de um Fabrizio de André, Rino Gaetano ou de um Franco Battiato em Portugal[3]. Há mais ainda, claro, como um Piero Ciampi, Roberto Murolo, Gabriella Ferri, entre tantos outros… e é uma pena para nós, uma verdadeira perda – a Beleza de que estamos a falar encontra poucos paralelos. São picos altíssimos (a poesia, música e voz de De André merecerá bem outros desenvolvimentos – sublime, magnífico, uma pérola de graça por conhecer entre nós, ainda) e Battiato deixou-nos um legado musico-espiritual muito, muito singular – e é dele que se ocupará este artigo.

Basílica de São Pedro, Iona (lugar de nascimento de Franco Battiato). Domínio Público

Não se trata de enaltecer toda a sua obra ou de, por escrever sobre ele, aceitar por isso tudo o que fez e disse, os caminhos que seguiu – cada um sabe de si e de todos sabe Deus. Porém, à bela maneira das orações fúnebres em que se olha e se enaltecem as partes positivas de quem partiu, procuraremos transmitir as alturas que nos deixou, pois o nosso místico contemporâneo partiu para o bardo no passado dia 18 de Maio de 2021 e, agora, é hora de o recordar.

Início e Ruptura

Estamos perante uma figura muito singular que se expressou sobretudo através da música, mas também da pintura e do cinema, através das entrevistas e conferências que deu. É um legado vasto e diverso ao qual cada um terá, se assim o quiser, que se aproximar e se conectar de forma muito própria. A sua música, a parte mais conhecida da sua obra, passou de facto por fases muito distintas, num diálogo contínuo entre experimentalismo e um tom mais popular, passando pelos registos mais eruditos e, talvez o que mais marque, por canções que são autênticas preces sinceras que viriam a despertar vocações profundas, como mais adiante se verá. No geral, as sonoridades não costumam ser imediatamente aprazíveis aos ouvidos… como qualquer coisa valiosa, há que haver um período de conquista. Mas depois de convivermos com ele de forma contínua, poderá acontecer-nos desatar em lágrimas ao contemplarmos uma árvore com o vento e um pássaro, enquanto somos envolvidos pela sua voz que ergue a sua oração ao Inviolado.

Franco Battiato nasceu na Sicília, em 1945. Aos seis anos, ao entrar numa igreja num Domingo de Ramos, pergunta a um padre que “música é esta que está a tocar”? Era a Paixão segundo S.Mateus, de Bach, que considerava ser inalcançável. Estudou piano em casa duma tia e praticamente não frequentou a Universidade de Catânia, de onde saiu de forma prematura (no seu filme Niente è come sembra, a uma mesa onde se tiram cartas de tarot, coloca uma personagem a perguntar se deveria investir em mais estudos na Universidade. A resposta é que não vale a pena, pois esta é uma instituição medieval e decadente – curiosa perspectiva). Aos 19 anos, está em Milão, à procura de trabalhar em qualquer coisa mas olhando sempre para a música. Apresenta-se a uma audição num cabaret e é logo aceite – e aqui começa a nascer para o legado que nos viria a deixar.

Giorgio Gaber. Domínio Público

Foi apadrinhado por outro nome maior da cena musical italiana, Giorgio Gaber[4], que lhe disse que ele não se poderia chamar Francesco (na realidade o seu verdadeiro nome), porque já despontava Francesco Guccini… assim passou a ser Franco, o nome que até a sua mãe acabaria por lhe chamar doravante. Teve um grande sucesso popular com canções ligeiras no final dos anos 60 (È l’amore), mas logo veria que o seu caminho não era esse – era fácil ganhar dinheiro, o sucesso comercial estava à mercê… Ao invés, envereda por um caminho experimental, com sonoridades muito peculiares, (electrónica, rock progressivo), ao qual junta textos surpreendentes e originais, muitas vezes com samples de música clássica (Bach, Smetana, Verdi…), que tanto ouvia e apreciava. Estamos no domínio daquilo que se costuma chamar música de vanguarda. Em 1972, no álbum Pollution, encontramos misturados em O Silêncio do Ruído, Geschichten aus dem Wienerwald op.325, de Johann Strauss II. Uma parte do texto diz quanto segue[5]:

[…] Non hai forza per tentare di cambiare il tuo avvenire […] Não tens força para tentar mudar o teu futuro
Per paura di scoprire libertà che non vuoi avere  Pelo medo de descobrires uma liberdade que não queres ter
Ti sei mai chiesto quale funzione hai? Nunca te perguntaste qual a função que tens?
Quale funzione hai ti sei mai chiesto? […] Que função tens, nunca te perguntaste? […]

Este período cobre essencialmente os anos 70, onde chega mesmo a ganhar o prémio de composição Karlheinz Stockhausen, com quem acabaria por se encontrar. Em várias conversas, costumava recordar o encontro com o compositor alemão, que lhe pediu para ele cantar uma partitura e ficou surpreendido ao perceber que Franco não sabia ler a notação musical… que passou a estudar depois desse encontro marcante.  Este foi o período do uso dos sintetizadores, dos concertos para 1500/3000 pessoas, onde a música era estranha, onde as pessoas partiam as cadeiras e pareciam entrar em catarse, onde os sons eram novos e impressionavam grandemente o público desse tempo. Battiato conta como em Londres conseguiu comprar ao próprio produtor um sintetizador seis meses antes que este saísse no mercado. Estava a trabalhar no álbum Fetus (1972), e diz ter passado três noites sem dormir, num estado como que onírico em que se sentia a viajar no tempo, em que se sentia greco, latino… Nas suas palavras: “Então, devo dizê-lo, não contive mais o meu frenesim[6]. Num concerto em Veneza ligou uma televisão que só fazia barulho, um gira-discos, o sintetizador numa só nota contínua… era a confusão total.

Estamos na fase da ruptura. Battiato aproxima-se do suicídio, tem distúrbios psíquicos – olha em volta e pensa, mas quem são estes seres humanos, de onde vêm? Não é o tema do presente artigo, mas terá a música um efeito muito específico na nossa psique? Serão inocentes e sem consequências as coisas que ouvimos, aquilo que fazemos com os sons? Será possível que determinadas músicas propiciem certos estados mentais, algumas tendências emocionais muito concretas? Para a alma, será a mesma coisa ouvir o hit musical em moda há 10 anos atrás e que ninguém mais lembra, muitas vezes somente cheio de ritmo e vulgaridade, e a 7ª Sinfonia de Beethoven? Acusam de snobismo e de intelectualismo quem diz que há de facto coisas belas, harmónicas, e o seu contrário – a contenda resolve-se pela experiência pessoal (e é muito portuguesa, aliás). Quem já ouviu determinadas músicas que hoje não suporta porque observa uma outra aproximação à Beleza, sabe como determinadas combinações de sons se tornam impossíveis à sua sensibilidade actual.

Seja como for, depois desta fase experimental, depois dos textos em que não se entendia muito bem a lógica ou a mensagem, nas suas próprias palavras diz-nos que[7]:

“Depois de algum tempo disse: eu não posso viver dentro deste inferno. Iniciei uma purificação, mas uma purificação total. Então, toda a imundície que eu tinha acumulado naquele período, abandonei-a completamente.

Tinha ouvido esta palavra: meditação. Em boa verdade, não sabia que coisa fosse e ninguém me tinha explicado. Disse-me então que o faria por minha conta. Metia-me no chão e comecei a viajar por dentro do meu corpo.

Uma vez saí do meu corpo e depois tive medo, sinceramente – e se fico daquele lado? E reentrei.”

Música, Elevação e Tradição

Quis aprender violino. Sugeriram-lhe um professor (Giusto Pio), que logo se lhe juntaria nos concertos. Pode a passagem para o violino ser um símbolo de uma subtilização? Certo é que a sua música mudou, passou de um experimentalismo a uma tentativa de aproximação com a música popular – nessa tentativa de equilíbrio, Battiato viria a afirmar que o seu objectivo era passar a mensagem a mais pessoas[8]. No fundo, a sua mensagem era a da necessidade de uma busca interna sincera, de que o Ser Humano precisa de despertar para realidades mais subtis, de que é necessário superar o nosso estado mais elementar de animalidade… de que é preciso voltar a lembrar que Deus existe, que o ateísmo é uma ignorância, que o corpo é uma casa temporária e que a morte não existe em si e que pode voltar para o nosso quotidiano. De facto, aquando do disco Up Patriots to Arms (1980), os concertos já tinham 20.000 pessoas, e a partir daqui os números dispararam. Mas voltemos um ano atrás, para 1979, ano do lançamento do álbum L’Era del Cinghiale Bianco (A Era do Javali Branco).

Vale do Nilo. Domínio Público

Numa entrevista muito peculiar que deu em sua casa – no fundo é uma conversa íntima entre duas pessoas, e ouvem-se as taças do chá a chegarem, a campainha a tocar, a mãe de Franco a chegar e a acabar a conversa…[9] – podemos conhecer um pouco mais o seu percurso interno. Diz que já ao longo desses anos 70 sentira uma forte necessidade interna de algo que a nossa sociedade não oferece, tão focada que está no status, no prestígio – e já está, a vida feita. Foi assim que se viu impelido a viajar para conhecer as culturas religiosas de outros povos, tendo viajado bastante sobretudo pela Turquia e pelo Egipto. Afirma que o seu percurso não foi provocado por livros mas antes por um apelo interior potentíssimo – os livros vieram depois de forma natural. No entanto, ao mesmo tempo que proclamava e mostrava de forma aberta a sua necessidade de espírito, entendeu ver com clareza os perigos da New Age, da espiritualidade mutilada e travestida de outra coisa qualquer, de toda a sua mercantilização. Assim, nas suas palavras, em Magic Shop:

[…] Vuoi vedere che l’Età dell’Oro […] Queres ver que a Idade do Ouro
Era appena l’ombra di Wall Street? Era apenas a sombra de Wall Street?
[…] E più si cresce e più mestieri nuovi […] E mais se cresce e mais novos trabalhos
Gli artisti pop, i manifesti ai muri Os artistas pop, os manifestos nos muros
I Mantra e gli Hare Hare a mille lire Os Mantras e os Hare Hare por mil liras
L’esoterismo di René Guénon O esoterismo de René Guénon
   
Una signora vende corpi astrali Uma senhora vende corpos astrais
I Budda vanno sopra i comodini […] Os Budas vão para cima das cabeceiras […]
Eterna è tutta l’arte dei musei Eterna é toda a arte dos museus
Carine le piramidi d’Egitto Engraçadas as pirâmides do Egipto
Un po’ naiv i lama tibetani Um pouco ingénuos os lamas tibetanos
Lucidi e geniali i giornalisti Lúcidos e geniais os jornalistas
   
Supermercati coi reparti sacri Supermercados com secções sagradas
Che vendono gli incensi di Dior […] Que vendem incensos da Dior […]

Ao longo das suas letras iremos encontrar várias referências que dariam para reflectir sobre muitos temas, desde realidades internas às nossas circunstâncias históricas. Nem por acaso, na sua canção La Cura (a quem se dirige verdadeiramente?), diz: “[…] irei-te proteger dos medos [….] / Das inquietações que doravante encontrarás no teu caminho / Das injustiças e dos enganos do teu tempo […]”. As injustiças e os enganos do nosso tempo – quais serão? Acaso não vivemos na Era do Iluminismo Iluminado? Era do progresso tecnológico interminável, onde finalmente a Humanidade se salvou do obscurantismo de todas as tradições antigas para ser agora sobretudo devota da matéria que vê e pesa, da técnica que tudo resolve, que oferece um sentido para o facto de termos uma vida para viver mesmo quando a tecnologia não nos consegue salvar das lágrimas que brotam dos nossos rostos e da ansiedade que leva aos ataques de pânico cada vez mais constantes?

Em Up Patriots to Arms, cuja entrada é a abertura do Tannhäuser de Wagner, talvez Battiato nos dê uma pista de um desses enganos do nosso tempo, daquilo que possa querer dizer com as suas canções que contêm estas ideias por vezes tão exóticas ao nosso quotidiano:

[…] Le barricate in piazza le fai per conto della borghesia […] Fazes as barricadas nas praças por conta da burguesia
Che crea falsi miti di progresso Que cria falsos mitos do progresso
[…] Up patriots to arms, engagez-vous [] Vamos patriotas às armas, comprometam-se
La musica contemporanea, mi butta giù A música contemporânea deixa-me em baixo

Tomemos esta ideia: o falso mito do progresso. Franco não era alguém que só falava em Deus, na necessidade da alma, sem qualquer ligação com o mundo concreto – esta imagem não corresponde à verdade. Era um amante da ciência, convidou para conferências físicos contemporâneos, nos seus filmes fala de biologia, etc. Na sua óptica, a ciência actual, e mais especificamente a física quântica, aproximam-se cada vez mais da Tradição; aquilo que ele denunciava abertamente era o dano causado pela ciência materialista à Humanidade[10]. Para ele o Ser Humano tinha ainda muito a descobrir sobre si próprio, e levava a sério os relatos que contam por exemplo que Santa Teresa de Ávila levitava, pois a existência de outras dimensões e de poderes inexplorados era para ele uma evidência e um interesse. É preciso recordar as palavras que citámos atrás, aquando da sua saída do corpo, para que nos possamos situar: Battiato teve experiências concretas que o levaram a proferir muito do que disse e tinha por isso uma posição muito clara acerca de temas que para muitos de nós são, senão ridículos, pelo menos muito longínquos e estranhos.

Os falsos mitos do progresso… o seu foco era o propósito humano, que em última instância é a elevação da sua consciência até à sapiência e à reunião. No entanto, dialogava com as outras visões, e praticamente todo o filme Niente è come sembra é um diálogo entre várias posições. A própria trama merece ser recordada brevemente. Tudo gira à volta de um antropólogo dividido entre a tentativa de elevação e as suas concepções ateias, que quer ir ver uma festividade pré-cristã e que se perde num bosque… ali encontra uma casa onde decorre um aniversário, e num quarto estão várias pessoas a conversarem e a oporem as suas visões e argumentos, desde o céptico materialista ateu até ao místico. Algumas das passagens permitem entrever a profunda compreensão de alguns temas filosóficos[11]:

“A dor, a ignorância, a matéria, são como as dissonâncias iniciais da scordatura de uma orquestra. Os agnósticos não reconhecem nem a causa nem o efeito. Os materialistas não reconhecem nem a existência nem a inexistência das coisas passadas e daquelas futuras. Outros defendem que cada coisa nasceu por acaso e cessa em definitivo. Estas, todas estas, são visões da ignorância. […]  O nada não se pode criar a si mesmo. Por outro lado, será alguma vez possível que uma força inconsciente possa criar um Universo ordenado, definido, calculável? Nós somos seres pensantes e dotados de uma certa liberdade. Será possível que uma força natural e inconsciente possa criar-nos livres e conscientes?

O movimento de perfeição é contínuo, do ser mais ínfimo àquele mais elevado. Também os minerais são animados por um movimento interior e têm sensações que lhes são próprias.”

A conversa continua. A determinado momento ouve-se: “Não há qualquer dúvida que o Universo seja uma projecção da mente.” … À saída do quarto, alguém diz: “Há ateus convencidos que o outro, que o crente, é um […] atrasado incapaz de entender o irreversível progresso tecnológico e científico.” Depois, enquanto alguém esgrima argumentos acerca da biologia, que o órgão cria a função (outro alguém lhe responde que continua a pensar com base em autores velhos já de dois séculos…), o seguinte diálogo acontece[12]:

(Místico) – Cada alma vem a este mundo reforçada pelas vitórias ou enfraquecida pelas derrotas das suas vidas anteriores.

(Biólogo) – Queres então dizer que eu deveria agora meter-me a rezar? Submeter-me, pedir perdão quem sabe a quem por todos os defeitos que tenho e que muito aprecio? Seguir modelos de perfeição quando eu me sinto livre de fazer aquilo que me dita o coração e o desejo? E depois não vos parece que o mundo esteja feliz na sua fealdade? 

(Outra personagem) – Permito-me a explicação de duas coisas. A primeira é que aquilo a que tu chamas submissão é uma disciplina, é uma extraordinária arte estratégica para defender-se […] dos apegos, e somente assim é possível alcançar uma liberdade de uma imensidão incomensurável. A segunda é que aquilo a que tu chamas liberdade é somente uma total e inconsciente escravidão.

A ideia das vidas passadas é outro dos temas que muito abordou. Numa entrevista, dizia que os políticos não têm consciência que pagarão tudo aquilo que estão a fazer, pois que o karma não perdoará[13]. Não é acaso aquilo que nos mostra Platão no Mito de Er? Porque acaba um tratado sobre o melhor governo – A República – com um conhecimento espiritual? Muito provavelmente porque Maquiavel não tem razão; muito provavelmente porque a ideia de que a política e a moral são coisas diferentes, visão triunfalista da modernidade político-filosófica que invade as Universidades e que será talvez um dos enganos do nosso tempo, desconhece o profundo efeito individual que está a engendrar nessas outras dimensões da vida hoje ridicularizadas e desconhecidas.

Para reforçarmos a ideia de que Battiato também tinha chão, é bom recordar que teve um compromisso cívico, que entrou na política no âmbito da cultura… e que cessou funções cinco meses depois[14]. Ao contrário de muitos artistas que se revoltam e escrevem em protesto no fulgor das suas juventudes, foi na sua maturidade que Franco escreveu sobre o estado lastimoso da política, sobre a corrupção e a falta de competência e valor, sobre a farsa das estruturas partidárias, sobre a decadência da moral. Além disso, é sempre importante recordar que a Itália é um país que viu o assassínio do Primeiro-Ministro Aldo Moro em 1978, o processo Mãos Limpas nos anos 90, assim como os assassinatos da Máfia muito recorrentes nalgumas cidades, etc. Perante o que via e o que experienciou de perto, deixou-nos a famosa canção Povera Patria (1991):

Povera patria Pobre pátria
Schiacciata dagli abusi del potere Esmagada pelos abusos de poder
Di gente infame, che non sa cos’è il pudore Por gente infame que não sabe o que é o pudor
Si credono potenti e gli va bene Acham-se potentes e está-lhes bem
Quello che fanno e tutto gli appartiene Aquilo que fazem e tudo lhes pertence
   
Tra i governanti Entre os governantes
Quanti perfetti e inutili buffoni Quantos bobos perfeitos e inúteis
Questo paese è devastato dal dolore Este país está devastado pela dor
Ma non vi danno un po’ di dispiacere Mas não vos causa um pouco de impressão
Quei corpi in terra senza più calore? Aqueles corpos que jazem no chão sem calor?
   
[…] Ma come scusare […] Mas como desculpar
Le iene negli stadi e quelle dei giornali? As hienas dos estádios e aquelas dos jornais?
Nel fango affonda lo stivale dei maiali Na lama afunda a bota dos porcos
Me ne vergogno un poco e mi fa male Envergonho-me um pouco e faz-me mal
Vedere un uomo come un animale Ver um homem como um animal
Non cambierà, non cambierà Não mudará, não mudará
Sì che cambierà, vedrai che cambierà Sim que mudará, vais ver que mudará

Antony Capitão

[1] No fundo, as mesmas oportunidades internas aplicam-se a todo o tipo de linguagem nova e não somente à língua de um outro país. Pensemos por exemplo na linguagem matemática ou simbólica.

[2] A este respeito, recordo como há poucos anos atrás, numa viagem ao Gerês, mal se passou para a parte espanhola, a rádio tocava Adriano Celentano, Il Ragazzo della Via Gluck. Tudo indica que poucos quilómetros de distância podem já significar horizontes culturais bastante diferentes.

[3] Ele que, de facto, nunca abdicou de cantar na língua do seu país e até no seu próprio dialecto, o siciliano. Em O Rei do Mundo, diz: “Quanto mais se torna tudo inútil / Mais tu acreditas que é verdadeiro / No dia do fim / O inglês não te servirá para nada.”

[4] De Gaber, como sugestão, oiça-se a muito original “Io non mi sento italiano” e a muito bela “Non Insegnate ai Bambini”, onde canta: “Não ensineis às crianças a vossa moral / está tão cansada e doente, poderia fazer-lhes mal […] mas se quiserdes mesmo, ensinai-lhes então / a magia da vida”.

[5] Como qualquer texto traduzido ao longo deste artigo, trata-se de uma tradução própria.

[6] Estas histórias contadas pelo próprio compositor podem ser vistas no documentário Le Nostre Anime (As nossas Almas), disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9eR15MjqTXE&t=1113s. [m 14.30, consultado em 15.06.2021]

[7] Id, m 15.35.

[8] Ver livro “Tecnica mista su tappeto. Conversazioni autobiografiche con Franco Pulcini”.

[9] Esta entrevista, que se encontra no Youtube sob o nome “Entrevista de Battiato sobre o seu misticismo”, está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ldqlWUpUXRY&t=1698s [consultado em 01.06.2021].

[10] Numa conferência, aquando das perguntas e numa troca de ideias directamente com o público, esta ideia é expressa. Veja-se https://www.youtube.com/watch?v=O5Sn2TJ0mc4 [1h.30m.48s, consultado em 01.07.2021].

[11] O filme está inteiramente disponível em https://www.youtube.com/watch?v=G6XVPC0sjgg [m23, consultado em 18 de Junho de 2021).

[12] O nome dado às personagens é uma tentativa de situar o diálogo, pois no filme não estão identificados desta forma precisa.

[13] Disponível em https://www.jotdown.es/2016/08/franco-battiato-una-nariz-la-mia-la-aceptas-te-pegas-tiro/. Battiato consegue ainda dizer coisas mais espantosas e estranhas, como o ser a política mundial influenciada pela astrologia…

[14] Na entrevista apenas citada o tema é abordado. Veja-se o seu desconcerto quando ele propõe um director de orquestra que é rejeitado por alguém, a quem pede então que lhe dê uma outra sugestão e ouve a resposta: “Eu gosto de futebol”… Franco não consegue entender como pessoas desta índole têm um lugar na política e afirma o seu espanto de forma aberta, assim como a sua frustração por ver os destinos das comunidades entregues a seres sem valor para ocuparem os postos que ocupam. Felizmente, esta é uma realidade somente siciliana.

Imagem de destaque: Franco Battiato. Flickr