(Doutrina Secreta, Helena Petrovna Blavatsky. Vo. II- Seção II)

Este tema desenvolvido por Helena Blavatsky demonstra a sua profunda sabedoria intuitiva, alicerçada na prevalência do conhecimento arcaico. Naturalmente, a autora argumenta em defesa de um sistema ou linguagem universal que é a raiz de todos os dogmas e rituais absorvidos pelas diferentes religiões, através de um processo contínuo, de transferência de uma sabedoria esotérica orientalista, muito ancestral. A transferência do conhecimento sagrado, não deve induzir alterações substanciais ao longo do tempo, porque esta sabedoria é um cunho, um selo, uma marca intemporal. A intuição, a clarividência e a competência de Blavatsky são atributos evidentes na sua obra, nos seus argumentos, na sua dialética. Poderíamos então concluir que a sua magnificente sabedoria seria autossuficiente para a comprovação da verdade, o que contrasta com a metodologia assumida pela autora, na explanação da presente temática. Blavatsky tem a plena noção da valorização do método científico, concretamente no que concerne à confrontação das fontes, tão sistematizadas neste seu capítulo, para validação ou reforço da sua tese, em torno da existência de uma linguagem de mistério. Relembramos que o século XIX foi enriquecendo o debate do conhecimento, partilhado pelas visões do ocultismo, da espiritualidade e de um positivismo muito arraigado. Blavatsky inicia este seu texto, muito interessante na perspetiva da dialética das fontes, com as descobertas feitas ao tempo, por matemáticos e cabalistas eminentes, ou seja, a profícua autora da teosofia moderna, revela a necessidade de colocar frente a frente, as visões dos atores da ciência e a sabedoria ocultista. É neste contexto que fazemos emergir este considerável diálogo das fontes blavatskyanas para contextualização da linguagem dos mistérios.

Uma das fontes privilegiadas de Blavatsky, sem quaisquer dúvidas, é a obra de James Ralston Skinner (1830-1893), «The Source of Measures», que influenciou o seu pensamento respeitante aos princípios geométricos e dos números associados à Grande Pirâmide de Gizé, citando várias vezes este autor nos seus livros. James Skinner foi um cabalista e maçónico, cujos trabalhos influenciaram bastante os primeiros teosofistas. Blavatsky defende que a sua interpretação esotérica da Bíblia, não deixa de ser correta, porque se apoia em métodos cabalísticos, independentemente de concordarem ou não com as medidas do Templo de Salomão ou com a Arca de Noé. Porém, Blavatsky não deixa de considerar que as medidas da Grande Pirâmide, trazidas pelos egiptólogos bíblicos, não são isentas de qualquer dúvida, mas são os ocultistas e os cabalistas os verdadeiros detentores da Sabedoria Secreta da Bíblia, que poderão dissipar tais incongruências.

Outra fonte reconhecida, de certa forma, por Blavatsky, é a de Jean-Marie Ragon (1781-1862), o qual foi iniciado na maçonaria em Bruges, em 1804. Foi considerado um dos mais influentes maçons do seu tempo, tendo fundado a célebre Sociedade dos Trinósofos e integrou o supremo conselho do Summum Supremum Sanctuarium, do Sagrado Círculo de Thelema. Especula-se sobre a possibilidade de o conde de Saint-Germain lhe ter presenteado alguns dos seus documentos secretos, e assim teria adquirido notáveis conhecimentos, a respeito da maçonaria antiga. Blavatsky cita a entrevista dada por Jean-Marie Ragon, onde afirma que o grande sistema arcaico, conhecido como Ciência Sagrada da Sabedoria, existe em todas as religiões, cujos traços possuem uma linguagem universal. A propósito desta linguagem universal, Blavatsky refere os estudos linguísticos de George Dalgarno (1626-1687), John Wilkins (1614-1672), Gottfried Leibniz 1646-1716) e Joseph de Maimieux (1753-1820). Delgarme é um erro de escrita no próprio texto, uma vez que se trata de George Dalgarno, especialista linguista que colaborou com John Wilkins, no desenvolvimento de um sistema linguístico para ser utilizado pelos surdos. John Wilkins foi um polímata, filósofo natural, que propôs uma linguagem universal para facilitar a comunicação internacional entre os diversos académicos e estudiosos, no seu livro «Um ensaio para um personagem real e uma linguagem filosófica». Gottfried Leibniz idealizou a criação de uma linguagem universal baseada em ideias simples, com um sistema de signos lógicos capazes de estabelecer ideias mais complexas, que designou por gramática universal. E finalmente, Joseph de Maimieux que inventou um sistema de linguagem universal que pudesse ser entendido por todas as línguas sem tradução, constante na sua obra a «Pasigrafia». Blavatsky considerou que este trabalho foi o mais prolífico nesta área, afirmando que as palavras da língua do Mistério têm o mesmo significado em todas as civilizações. A transferência de saberes esotéricos nem sempre foi devidamente interpretada, tendo-se perdido, modificado, adaptado ou mesmo transfigurado, como por exemplo, o processo do gnosticismo no plano do cristianismo primitivo e a sua transformação nos primeiros concílios da Igreja.

Outra fonte destacada por Blavatsky é Gaston Maspero (1846-1916), que foi um «grande egiptólogo francês», assim designado pela autora, muito referenciado e que escreveu um importante trabalho sobre a Antiga Religião do Egito. Este especialista seguiu a tradição de Auguste Mariette (1821-1881), um arqueólogo e egiptólogo francês que fundou o Departamento de Antiguidades Egípcias. Blavatsky refere Gaston Maspero, numa longa citação, referindo que foi longe demais, na sua visão sobre a diferenciação da transferência de saberes exotéricos e esotéricos, ou seja, a imutabilidade divina versus a sua interiorização da parte das elites civilizacionais.

A entrada original da Grande Pirâmide (canto superior esquerdo), Túnel dos Ladrões (centro à direita). Creative Commons

Segue-se um outro conjunto de fontes relativamente à problemática inerente à Grande Pirâmide, nomeadamente, as suas origens, significado, relações astronómicas, segredos e mistérios, numa comunicação partilhada entre antropólogos, egiptólogos e astrónomos. Blavatsky confronta-os com as diversas posições e incertezas relativas, referindo-se a Charles Staniland Wake (1835-1910), a Charles Piazzi Smith (1819-1900), a Flinders Petrie (1853-1942) e a Richard A. Proctor (1837-1888). Charles Wake foi um antropólogo e diretor do Instituto de Antropologia da Grã-Bretanha e Irlanda, sendo a sua obra mais conhecida «As origens e o significado da Grande Pirâmide», um clássico nesta área, onde o autor procura responder às perguntas: quem construiu realmente as pirâmides e porquê? Staniland Wake não aprovou a teoria convencional de que as pirâmides eram apenas túmulos, explorando os argumentos astronómicos e religiosos para fundamentar a sua construção. Charles Wake não era teósofo, mas diz Blavatsky que se o fosse, teria acrescentado mais do que disse, apesar de considerar que «a passagem estreita na pirâmide era uma preparação para a fase final dos Mistérios». Blavatsky analisou as obras científicas, ou melhor, aquelas que foram escritas pelos atores da ciência, privilegiando sempre o saber esotérico. Charles Piazzi Smith foi um astrónomo conhecido pelos seus estudos métricos sobre a pirâmide de Gizé. Publicou o livro «A nossa herança na Grande Pirâmide de Gizé», de 1864, que foi sempre enriquecendo ao longo dos anos, reajustando o título para «A Grande Pirâmide: os seus segredos e mistérios revelados». Teve muitos adversários da área da ciência que contestaram as suas teorias, como foram os casos de Flinders Petrie e Richard A. Proctor. Este último foi um astrónomo famoso, autor de «A Grande Pirâmide-Observatório, Tumba e Templo», tendo sido o primeiro a produzir o mapa de Marte, em 1867, com 27 desenhos do astrónomo inglês, William Rutter Dawes (1799-1868). Flinders Petrie foi um egiptólogo britânico que escavou muitos locais no Egito, destacando-se na descoberta da Estela de Merneptá. O seu pai, William Petrie, correspondeu-se com Piazzi Smith sobre algumas teorias a respeito da pirâmide. Flinders Petrie autor da obra «As Pirâmides e os Templos de Gizé», classificou os cálculos de outros autores como «tendenciosos». Blavatsky anota estas divergências de posições entre um astrónomo, Piazzi Smith e um egiptólogo, F. Petrie, como se pretendesse sublinhar a discordância entre dois atores da ciência. Mas simultaneamente discorda de Piazzi Smith, no que diz respeito ao sarcófago de pórfiro, utilizado para a celebração dos mistérios de Osíris. Este período foi muito rico em debates sobre astronomia e outros, porém, Blavatsky sempre manifestou um espírito crítico quanto às especulações materialistas da ciência.

Existem outras fontes que não são expressamente mencionadas no texto, mas Blavatsky referencia os seus autores de uma forma depreciativa, quando evoca Thomas Henry Huxley (1825-1895), John Tyndall (1820-1893) e Charles Lyell (1797-1875). De certa maneira, Blavatsky não concordava com as visões científicas destes autores. Thomas Henry Huxley foi um biólogo e antropólogo inglês, que se especializou em anatomia comparada. Ficou conhecido pelo «Bulldog de Darwin», por defender a teoria da evolução de Charles Darwin. Blavatsky aplaudiu de certa forma esta contribuição de Darwin para o progresso da ciência, mas não aceitou a ideia de uma evolução assente numa acumulação de incrementos positivos, através de processos naturais lentos e mecânicos. Entendeu esta evolução como um desdobramento em estágios progressivos, de capacidades internas, intrínsecas ao próprio processo. Segundo o «Collected Writings», vol. I, de 1875, Blavatsky foi muito versada no darwinismo, chegando a fazer traduções dos trabalhos de Charles Darwin, e acreditava firmemente no espiritualismo científico do naturalista e geógrafo, Alfred Russel Wallace (1823-1913). E para que não se pense que Blavatsky rejeitava liminarmente o esforço e conquista dos académicos, veio também enaltecer e reconhecer o químico e físico britânico William Crookes (1832-1919) e o astrónomo francês Camille Flammarion (1842-1925), no seu empenhamento e devoção à investigação sobre o espiritualismo. Não nutriu a mesma admiração por John Tyndall, um físico britânico que descobriu em 1871 o fenómeno de regelo, que consta na fusão do gelo por pressão e posterior solidificação, quando aquela é reduzida. Alguns físicos britânicos que foram contemporâneos de Tyndall, como são os casos de James Joule (1818-1889), James Clerk Maxwell (1831-1879) e William Thomson (1824-1907) foram considerados conservadores quanto à visão que tinham na estreita relação entre a metafísica e a ciência. Porém, não era o caso de Tyndall, que pertencendo ao grupo X-Club, acreditava numa total independência entre elas. Thomas Henry Huxley foi o promotor deste grupo X-Club, que contava com o apoio de outros nove académicos liberais, apoiantes da teoria da seleção natural de Charles Darwin. E Charles Lyell, também referido por Blavatsky, foi um geólogo escocês que estudou as potencialidades das causas naturais, tomando como referência a história da Terra. O seu pensamento é muito próximo do darwinismo, sendo bastante conhecido como o autor da obra «Principles of Geology (1830-33)». Esta obra argumenta a teoria da Terra moldada por intermédio dos mesmos processos geológicos, que operam ainda hoje. Blavatsky apelidou a postura científica de John Tyndall e de Henry Huxley, como a «loucura dos filósofos meramente materiais», afirmando que lhes restava o consolo de não terem de enfrentar a heresia da Igreja. Considerou ainda que a obra de Charles Lyell era perigosa, a par de outras, mas não deixou de concordar, que as conclusões da sua obra tinham um fundo de verdade, quanto à existência das raças pré-adamitas.

Selo da Sociedade Teosófica. Domínio Público

Neste texto de Helena Blavatsky é bem demonstrativo que a autora fomentou a conciliação entre a ciência e a espiritualidade, reconhecendo a necessidade de analisar, avaliar e confrontar as fontes, fossem favoráveis ou contraditórias ao seu próprio posicionamento. De forma alguma rejeitou o espírito científico, mas ciente dos argumentos positivistas, privilegiava a linguagem ancestral, a sabedoria dos mistérios, o conhecimento arcaico das antigas civilizações, o saber ocultado, passível de ser desvelado por meio de símbolos, códigos, correspondências e relações. Deixou-nos a esperança para uma ciência mais aberta, profunda, desmaterializada, sobretudo comprometida com a busca da verdade.

«Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és»

Adágio popular

Carlos Paiva Neves

Imagem de destaque: Elena Petrovna Gan (HP Blavatsky), fundadora da Sociedade Teosófica. Domínio Público