Quando escrevo um artigo para esta revista, geralmente escolho um acontecimento do noticiário diário para comentar. Hoje não vou falhar neste hábito, mas optei por comentar não um acontecimento, mas uma experiência pessoal ocorrida numa aula, no Centro da Nova Acrópole, em Telavive.
Tivemos um seminário de um dia, com exercícios teóricos e práticos sobre filosofia e o caminho para a sabedoria, e durante esse seminário respondi a algumas perguntas. Uma das perguntas era: Qual é a diferença entre Filosofia e Religião?
Devo dizer que a princípio senti que a resposta devia ser óbvia… mas na verdade não foi. E quanto mais eu pensava nisso, mais achava que seria interessante desenvolver a resposta como um pequeno artigo… então aqui estamos.
O que é místico?
Primeiro temos de definir o Místico. A Mística pode estar na origem do sentimento religioso, mas na verdade não pertencem nem à Religião, nem à Filosofia: pertence a si mesma. A experiência mística é sempre uma experiência pessoal, é um despertar da consciência para “algo” que existe para além das aparências visíveis.

O Juízo Final, Michelangelo. Domínio Público

Nesse aspeto, o místico é o que realmente faz a diferença entre o homem e o animal. A maioria dos animais conseguem sentir um acontecimento – como um terramoto -ou um sentimento humano mais forte e melhor do que um ser humano. Mas não conseguem imaginar outro plano da realidade – aquele que chamamos de invisível, ou espiritual – e construir uma relação com ele. O Homem pode.

A experiência mística permite ao homem aceder a um quadro novo da realidade. E por curiosidade ou necessidade ele pode optar por explorá-lo através da Religião, da Filosofia… ou de ambas. 

O “Olho que tudo vê” ou “Olho da Providência” que aparece na torre da Catedral de Aachen, Trexer. Creative Commons.

Quando está presente nos sistemas religiosos, o místico traz a necessidade de desvendar uma verdade que está além, das instituições ortodoxas. É por isso que todas as religiões têm uma relação ambígua com os seus próprios místicos… eles são vistos com inveja e desconfiança ao mesmo tempo, como os hassidim no judaísmo, os sufis no islamismo ou os gnósticos no cristianismo.

A experiência mística permite a descoberta de um segredo, mas não o demonstra aos outros. Permite alcançar novos e mais elevados estados de consciência e experimentar uma gama mais ampla de experiências de vida baseados no desenvolvimento de novas funções, como a imaginação, a intuição, o discernimento puro, que existem em potencial em cada ser humano. A experiência mística é possível quando esse potencial se concretiza. Fernando Schwarz escreve: “Temos que conquistar esses estados de consciência, torná-los nossos, e só podemos vivê-los sem tentar compreendê-los”.

Mística e Religião

A experiência religiosa baseia-se fundamentalmente na fé, e não na aquisição de conhecimento. Reúne homens e mulheres em torno de uma mesma fé em princípios superiores, que podem ser Deuses ou Deusas, mas também ideias e virtudes, como um culto aos antepassados. “Isso explica por que é possível considerar que existiram religiões sem Deus” (Jacqueline Vallont, Le livre des Religions – 1989 – ed. Gallimard, França)

O místico está presente quando consideramos o aspeto “interno” – ou psicológico – da religião. Está em relação com a fé pessoal do crente, e só pode ser considerada, pelo observador externo, como algo subjetivo.

Mas para compreender a Religião, temos também de considerar um aspeto mais “externo”, ou sociológico, onde a religião se torna uma instituição cujo objetivo é venerar Deus – ou qualquer arquétipo superior aceite – através de rituais e cerimónias, e manter os Dogmas, reconhecidos pelos crentes.

Mais uma vez, quero enfatizar que uma religião pode existir sem a crença em Deus. Como escreveu Schwarz: “Uma religião não é definida pela noção de Deus, mas pelo conceito de Sagrado”. E o “sagrado” é o nível de consciência humana que nos permite estar em relação com os Arquétipos.

Assim, podemos dizer que uma religião – qualquer que seja – não tem exclusividade sobre o Sagrado, nem monopólio sobre a sua relação com o homem. Uma religião administra a experiência mística e proporciona uma estrutura, um ambiente onde esta experiência mística pode ocorrer e ser repetida. Mas não permite uma reflexão sobre esta experiência.

Mística, Religião… e Filosofia

Bertrand Vergely, filósofo francês escreveu: “A filosofia não é uma ciência, nem uma religião, nem a própria vida, mas é indispensável “ser”. Esta relação paradoxal retoma o significado etimológico da palavra: Amor à Sabedoria. Ser sábio é saber lutar contra a ignorância. Ser sábio é também ser capaz de controlar as próprias paixões (…) Quando um homem atinge tal controle sobre si mesmo, ele permite que surja o homem real que está escondido dentro de si, que é o homem livre da ignorância e da violência”. (La Philosophie”, Ed. Les Essentiells, França)

Continuando as palavras de Vergely, direi que ser sábio é também ser capaz de orientar todas as atividades humanas: a ciência para a Verdade, a arte para a Beleza, e a Mística – ou a experiência do Sagrado -para o “Justo”, o “Bom” ou o “Ético”.

Desta forma, a Filosofia preserva a Religião do Fanatismo e do Extremismo. Vamos ver por quê…

Em todas as religiões Deus é entendido como um Ser superior à humanidade, um ser sem começo nem fim, que pode ter uma relação direta com aqueles que lhe oferecem orações e sacrifícios. Nesta relação o papel do homem é obedecer à vontade divina – quer diretamente, quer através de um interlocutor especial, como um sacerdote, ou através de uma determinada revelação, como um livro divino como a Torá. Fazendo isso, ao respeitar os mandamentos de Deus, o homem se beneficiará da proteção de Deus. Assim, para o crente, a maneira boa e correta de viver consiste em obedecer a uma autoridade externa.

Altar, dedicado ao deus desconhecido, encontrado em 1820 no Monte Palatino, atualmente exposto no Museo Palatino, Sailko. Creative Commons

O Deus dos filósofos é diferente… aqui não encontraremos o conceito de “Deus pessoal”. De Deus de nação ou de Deus de tribo. Em vez de um “ser supremo” encontraremos aqui um conceito ligado à noção de Lei Universal, como Dharma na Índia, Theos na Grécia ou Maat no antigo Egito. Poderíamos dizer que o que mais importa para o filósofo é a Lei, e não tanto o criador da Lei.

Isto nos leva ao que pode ser a principal diferença entre Religião e Filosofia: as regras éticas e morais do filósofo não devem seguir uma obrigação externa, mas nascer de uma necessidade interna, ou “própria” , resultado da experiência – incluindo a experiência mística – e do desenvolvimento da consciência, amadurecida lentamente com o tempo. O filósofo tem de de seguir a voz da sua própria necessidade ética, a sua “Voz do Silêncio”, como às vezes é chamada no Oriente… e não a voz externa de um Deus.

Assim, o filósofo não precisa orar para venerar seu “Deus”… o único culto aceitável que ele pode seguir em todas as situações, em todos os lugares e em qualquer momento, de uma forma moral e ética em conformidade com o Dharma, Theos ou Maat – seja qual for o nome que escolhemos para nos referirmos ao que pode ser considerado a Lei da natureza.

Este é um caminho difícil. Um caminho onde o homem pode cair e subir novamente, e cair, e subir… fazer o esforço para encontrar a Verdade e vivê-la será sempre mais difícil do que “fazer o que nos mandam fazer”. Mas é um Caminho que conduz à Sabedoria, e aqueles que começaram a percorrê-lo estão lentamente a tornar-se o próprio Caminho, tornando impossível abandoná-lo.

Místico, Religião, Filosofia… e

A filosofia da Universalidade dá uma dimensão universal à consciência, que é a capacidade de não nos limitarmos a um aspeto da realidade – ou da Verdade – mas de integrar o todo. Assim, a Verdade do filósofo será sempre uma Verdade universal, uma lei geral válida em todos os seus aspetos formais, e não algo aplicável apenas a uma forma específica, como uma religião, uma cultura, uma tribo… 

Platão e Aristóteles, Rafael Sanzio. Domínio Público.

Na realidade, Filosofia e Religião não se opõem, mas pretendem completar-se. A Religião sem Filosofia encoraja o perigo que leva a uma verdade específica – isto é, não Universal – a verdade de um grupo, ou de uma experiência mística individual, que se oporá à Verdade de outros grupos ou indivíduos. Isto, em essência, só pode ser a sombra da Verdade. O fanatismo religioso surge da falta de consciência do Universal, que é trazida pela filosofia. A filosofia sem mística leva a uma limitação da realidade apenas ao visível, transformando o Amor à Sabedoria num exercício intelectual que não é capaz de abarcar a complexidade da realidade humana e universal: a harmonia entre o visível e o invisível, o temporal e o eterno.

Em síntese, não podemos comparar Filosofia e Religião. A experiência mística está presente no caminho filosófico, assim como na Religião. Mas o objetivo do filósofo é mais compreender a experiência mística para alcançar uma transformação de consciência, para se tornar um como o “divino” interior, em vez de encontrar um Deus externo.

Como escreveu Platão: “O homem é Deus…, mas ele se esqueceu disso”.

Pierre Poulain

Publicado na New Acropolis International Organization em 20-08- 2019.

Artigo publicado originalmente em hebraico na Revista Acrópole da Nova Acrópole Israel, outubro de 2009 

Imagem de destaque: Filósofo e Alunos, Willem van der Vliet. Domínio Público