No Ashmolean Museum de Oxford há uma curiosa peça de 4000 anos de antiguidade, conhecida como o «prisma de Weld-Blundell». Foi descoberta num local arqueológico da antiga cidade de Nippur, pelo investigador germano-americano Hermann Hilprecht e, desde a publicação do seu conteúdo em 1906 é, possivelmente, um dos descobrimentos que mais tem dado que falar aos estudiosos, uma vez que contém, escrita em língua suméria e caracteres cuneiformes, uma detalhada lista dos reis sumérios desde os tempos anteriores ao dilúvio até aos reis da dinastia Isin, a última a que faz referência, datada do século XVIII a.C..
Esta não é a única lista de reis sumérios que existe, mas é a mais completa de todas as que foram descobertas até à data. Segundo esta lista, antes do dilúvio houve oito grandes reis, alguns dos quais ficaram na história como parte dos relatos míticos sumérios, protagonizando as epopeias que constituem o rico imaginário sumério. Um desses reis foi Etana.
O rei, o mito
Para conhecer a história de Etana, rei de Kish, há que recorrer a fontes alheias às listas reais sumérias. Até ao momento encontraram-se várias versões deste mito através de distintas placas encontradas em Susa e Tell Harmal (versão paleobabilónica), Assur (versão de Assíria) e Nínive (versão neoassíria). Sabe-se que a história deste rei é bastante anterior às placas que se encontraram. Na realidade, existem marcas cilíndricas, as mais antigas datadas de 2300 a.C., onde se representa graficamente a história de Etana.
A narração, enquanto tal, da vida de Etana atribui-se a Lu-Nanna, uma personagem que se perde, como o próprio rei, na mitologia e simbologia suméria. Segundo algumas fontes, Lu-Nanna era um Apakallu ou Abgal, que se traduz como «grande homem peixe» ou «barqueiro». Os Apkallu eram, segundo as tradições, espíritos sábios criados pelo deus Ea em pessoa, que atuavam como assessores dos grandes reis desde os tempos anteriores ao dilúvio. O primeiro deles foi Oannes e o último, possivelmente, Lu-Nanna. Depois de o último Apkallu redigir a história do mítico rei de Kish, o relato difundiu-se amplamente por quase toda a Mesopotâmia.
Lu-Nanna teria vivido depois da inundação sob o reinado de Shulgi, pertencente à terceira dinastia suméria de Ur (2094-2047 a.C.). Sobre o rei Shulgi há textos que narram como, um dia, decidiu ir a correr desde a cidade de Nippur à de Ur, separadas por 160km. Ao chegar a Ur tomou banho, comeu algo, deitou-se a dormir e, no dia seguinte, fez o mesmo trajeto, mas em sentido inverso. No total, 320km. Embora a fama de Shulgi como grande rei não tenha tanto que ver com aquele percurso como com algumas das construções que mandou edificar. Curiosamente, existem representações do rei levando na cabeça materiais de construção, participando na edificação como mais um obreiro.
Voltando à lista real suméria, situa-se no reinado de Etana sobre os séculos XXIX ou XXVII a.C., e menciona-se que o seu reinado durou mais de 1500 anos. Outras versões mostram-se algo mais «realistas» no que respeita à duração do seu mandato, dando-lhe apenas 635 anos. Etana teria sido um dos reis do período protodinástico II. A lista situa esse período e descreve-o do seguinte modo: «Depois de o dilúvio ter terminado, e a realeza ter descendido do céu, a realeza passou a Kish.» De Etana, como rei, lê-se na lista: «Etana de Kish, o pastor, que ascendeu ao céu e consolidou todos os reinos estrangeiros». E acontece que, além do mito, Etana seria reconhecido como um grande rei, justamente por ter dado estabilidade às terras do sul da Mesopotâmia, unindo-as sob a cultura suméria, submetendo a vassalagem as cidades de Súmer e Elam, entre outras.
A águia e a serpente
Uma das características dos mitos é que recorrem aos símbolos para transmitir ideias e realidades de caráter psicológico. Desse modo, ainda que o tempo e a introdução noutras culturas modifiquem a história, os elementos simbólicos permanecem, embora se percam as chaves para os interpretar em toda a sua amplitude.
Podemos dizer que o mito de Etana se divide em duas partes: a primeira, na qual se fala de um conflito entre uma serpente e uma águia, e a segunda, em que na sequência do ocorrido anteriormente, a águia ajuda Etana a encontrar a planta do nascimento.
Na primeira parte, apresenta-se a história da águia e da serpente. Ambas vivem numa árvore que cresceu no santuário de Adad: a águia nos ramos e a serpente entre as raízes. Dado que são dois animais tradicionalmente inimigos, a águia propõe à serpente um pacto de amizade e de ajuda mútua perante Shamash, o deus do Sol. No início, a serpente nega-se, desconfiando da águia, a quem a serpente avisa: «Um malvado é o que rompe a amizade perante Shamash. Se te comportas de forma malvada, afligirás o seu coração, serás uma abominação para os deuses e terias cometido um sacrilégio», após o que ambas selam o pacto sobre a montanha onde se encontra o santuário.
Durante um tempo, ambas convivem sem problemas e partilham as presas com que alimentam as suas respetivas crias. No entanto, um dia a águia decide devorar as crias da serpente, rompendo, assim, o pacto estabelecido perante Shamash. Quando a serpente descobre a morte das suas crias, exige vingança pelo sacrilégio.
O deus Shamash escuta a súplica da serpente e conta-lhe o que fazer para obter a sua vingança. Disse-lhe que tinha deixado para ela um touro selvagem no prado: «Abre o seu interior, rasga a sua barriga, estabelece a tua morada no seu ventre. Todas as classes de pássaros do céu descenderão para comer a sua carne. A águia descerá com eles. Ela não se alertará para o seu infortúnio, procurará ansiosamente a parte tenra da carne, irá de um lado para o outro, acercar-se-á da gordura que cobre os intestinos. Quando penetrar no interior, molesta-a tu pelas suas asas, corta as suas asas, as suas garras, despluma-a e atira-a para uma fossa obscura para que morra com uma morte de fome e sede.»
Tudo acontece como anunciou Shamash, e a águia acaba depenada, sem garras e sem asas no fundo de um profundo fosso. A águia, ao ver-se perante uma morte tão terrível, suplica a Shamash, que a recrimina pelo sacrilégio cometido. Não obstante, embora o deus se nege a aproximar-se dela, vaticina-lhe que lhe enviará um homem, e que será ele quem lhe prestará ajuda.
A eterna luta
Como dizíamos antes, os símbolos que se usam nos mitos requerem uma chave para os interpretar adequadamente, já que a narração simples dos «factos» míticos não basta para chegar a compreender a profundidade do ensinamento.
A águia representa a altura, o celeste, o espírito identificado com o Sol. Associa-se também aos deuses do poder e da guerra em relação como raio, o fogo, a luz e o ar. É também, ocasionalmente, uma mensageira dos deuses ou do divino.
Por seu lado, a serpente representa a energia e a força pura, pelo que uma das características mais interessantes deste símbolo é que é ambivalente, já que a força e a energia não são más nem boas em si, senão segundo o uso que delas se faça. Por isso, é fácil encontrar, às vezes, a serpente representando a maldade e a destruição, mas também a sabedoria e a cura, como acontece no simbolismo associado a Esculápio ou Serápis, capaz ao mesmo tempo de curar e de matar. É, também, símbolo das águas, da ressurreição, do eterno retorno e do tempo (como espiral sobre o corpo do Zurvan iraniano).
Serpente e águia estão associados à árvore, já que a águia necessita dos seus ramos para pousar neste mundo, e a serpente precisa dela para se elevar percorrendo verticalmente o seu tronco. A árvore é, portanto, o símbolo que conecta o céu com a terra.
Simbolicamente, a inimizade entre a águia e a serpente representa a luta entre duas forças opostas: a matéria e o espírito; o terrestre e o celeste. Não é raro encontrar imagens nas quais se mostra a águia dominando ou devorando a serpente. Assim, ainda que ambos os animais disponham de uma simbologia própria, juntos representam o necessário domínio do espírito uno sobre a multiplicidade da matéria: um domínio impossível de conseguir sem luta e sem o sacrifício de cada um.
Assim, encontramos a águia que devora uma serpente sobre o nopal (figo da índia), na antiga Tenochtitlán; a ave Garuda da Índia como inimigo agressivo das serpentes ou a visão que têm os gregos na Ilíada, da águia devorando uma serpente, interpretado por Calcante como um sinal da vitória grega.
Na América Central, os nauatles adoraram a serpente emplumada Quetzalcoatl, simbolizando a capacidade do celeste para sublimar o terrestre, ou do espiritual para elevar o material.
A representação desta luta é versátil, e nem sempre vemos os mesmos símbolos, mas sim os mesmos elementos simbólicos. No Egipto não é uma águia, mas um Horus, o deus falcão, o qual às vezes aparece a lançar a serpente Apófis. No entanto, a representação mais frequente é a de Ra, o deus Sol, transformado no «grande gato de Heliópolis» Miuty, o que fere Apófis, representante das forças maléficas do submundo. Igualmente, encontramos Apolo e Héracles, ambas divindades solares, que no início das suas «aventuras» devem enfrentar uma serpente e matá-la. Na Mesoamérica, os nauatles adoraram a serpente emplumada Quetzalcoatl, simbolizando a capacidade de o celeste sublimar o terrestre, ou de o espiritual elevar o material.
A planta do nascimento
Regressemos ao mito. Enquanto a águia se consumia de fome e sede no mais profundo do fosso, Etana, rei de Kish, suplicava ajuda a Shamash para um problema não menos grave do que o da águia: não conseguia ter descendência: essencial para dar continuidade ao trono e cumprir adequadamente com os seus deveres como soberano. Etana reza para que o deus do Sol lhe mostre onde encontrar a planta dos nascimentos, que lhe permitirá finalmente gerar um filho.
Por esta ocasião, Shamash nem sequer intervém diretamente, apenas diz ao rei que encontrará uma águia num fosso, e que será ela quem o conduzirá até à planta dos nascimentos. Etana começa a percorrer os caminhos até que encontra a águia, totalmente desfeita e a ponto de morrer de fome e de sede.
O rei começa a alimentá-la. Pouco-a-pouco vai lhe devolvendo as forças. Incansavelmente leva-lhe alimentos e ajuda-a a mover-se e a exercitar-se no fosso. As asas voltam a crescer-lhe, bem como as penas e as garras. Etana ensina a águia de novo a voar e assim, ao oitavo mês, a águia consegue sair do seu castigo e oferece a Etana ajuda para o que ele necessite. O rei só quer uma coisa: a plantas dos nascimentos, e então a águia sobe o rei para o seu dorso e dirige-se com ele ao mais alto dos céus, em busca de Ishtar, a senhora do amor, da vida e dos nascimentos. Depois de uma série de vicissitudes, e através de uma série de sonhos proféticos nos quais Etana e a sua esposa vêm prestando homenagem aos deuses, a águia interpreta que, para conseguir um filho, Etana deve ir até ao céu do deus Anu (justamente, deus do céu e rei dos deuses). De novo, montado sobre o dorso da águia, o rei empreende voo até aos céus, chega à porta dos deuses Anu, Enlil, Ea, Sin, Shamash, Adad e Ishtar, abre a porta e passa através dela.
Aqui termina a história. Na realidade, não termina assim. Os textos que falam do mito estão escritos fundamentalmente em placas de argila que sofreram o passar do tempo. Geralmente, estão incompletas devido a que, fisicamente, lhes faltam fragmentos ou há linhas danificadas. Conforme os investigadores vão encontrando e traduzindo placas, vão completando as partes da história que falta noutras. No entanto, o final não está. Não se sabe se finalmente o mito resolve o problema de sucessão de Etana, ainda que se possa presumir que sim, que uma vez que a águia e o rei atravessam as portas do céu, os deuses aceitaram a redenção da águia e o valor de Etana, e lhe concederam o dom por que tanto ansiava. E deve ter sido assim, já que a lista real suméria afirma que Etana foi sucedido no trono por Balih, seu filho.
Fátima Gordillo Santiago
Publicado na Revista Esfinge, em Junho de 2020
Bibliografia
Leyendas de la antigua Mesopotamia , de Federico Lara Peinado (Temas de hoy).
Therealsamizdat.com
Diccionario de Símbolos, de Juan Eduardo Cirlot (Ediciones Siruela).
Antepasadosnuestros.blogspot.com
Cuneiform Digital Library Initiative ( http://cdli.ox.ac.uk/wiki/doku.php?id=sumerian_kings_list )
Oxford Editions of Cuneiform Text ( http://www.etana.org/sites/default/files/coretexts/20340.pdf )
Interessante sua visão, porém eu tenho outra a este respeito. Entendo que muitas das fábulas míticas escritas são formas de encobrir informações codificadas para determinados ouvintes, que sabem do que se trata. Uma instrução de guerra deixada por um determinado deus, não poderia ser dito às claras, por questões de interferência no percurso da humanidade, então eram repassadas através de códigos, assim como aconteceu com Ziuzudra (Noé) para construção da Arca. Logo, estas informações se tornaram difíceis de interpretar em nossos dias atuais. Na minha visão a águia, a serpente e o boi representam tribos em determinadas cidades, a água ao norte, a serpente ao sul, ambas são adoradoras do mesmo deus, Shamash, logo, pertencem à mesma árvore. Os governantes das duas tribos concordaram em manter harmonia entre seus povos, realizando um pacto ao pé do santuário de suas divindades e desta forma começaram a compartilhar alimentos e utensílios através do livre comércio, contudo, a tribo do norte (águia) decidiu quebrar o pacto, provavelmente por dificuldades climáticas, para ajudar sua tribo e estabeleceu guerra contra o povo do sul (serpente). O povo do sul, que perdeu a batalha, recorreu ao deus, que não poderia falar diretamente o que fazer, primeiramente por não interferir nos assuntos humanos, segundo porque a outra tribo também continham seus discípulos, desta forma ele informa, através do texto de Etana, como ele deve proceder para se vingar do povo do norte. Para isso o povo do sul deve confrontar o povo do norte e atraí-lo para dentro da cidade que fica no prado (boi selvagem). Se escondendo em suas construções, eles devem aguardar para que o povo do norte se estabeleça dentro desta cidade. Então, quando o povo do norte menos esperar, o povo do sul deve atacá-los e subjugá-los. Depois devem cortar os suprimentos da sua cidade (norte) para que o povo pereça de fome, como se estivesse jogado em um foço em saída. Posteriormente, o deus Shamash enviaria um novo governante que uniria todas as tribos e ele seria escolhido e abençoado pelos outros deuses, que lhe concederia um filho que iria governar sobre todos os povos. Podemos interpretar também a águia como adoradores da família de Enlil e a serpente como povos adoradores da família de Enki, que estavam em guerra, mas seriam colocados sobre a proteção de Shamash, o deus sol, unido todos os povos. Neste caso, o texto é uma forma disfarçada de indicar ao povo estratégias de batalha e como o problema seria resolvido posteriormente, através das bênçãos dos deuses.