“A diferença entre um jardim e um deserto não é a água, mas o homem.”

 

Provérbio dos Tuaregues

Vivemos numa sociedade laica, positivista e racionalista, com fundamentos niilista e progressista, alicerçada na ideia de uma felicidade programada pelos avanços da ciência e da tecnologia e, forçosamente, pouco dada a qualquer tipo de revivalismo religioso. Todavia surge um novo fenómeno social, produto da profunda crise de valores e do vazio existencial que assombra a civilização pós-moderna: a persistente busca espiritual.

Entre as muitas questões que assombram o nosso tempo, o retorno do espiritual está particularmente no centro das atenções. Tal manifesta-se na forma densa de “fundamentalismos” de todas as matizes, muitas vezes intimamente entrelaçadas com reivindicações de identidade, ou apresentando-se em aspectos mais difusos de pertença a várias seitas ou, então, a movimentos com tendências para o sincretismo, alguns dos quais propagam a necessidade de espiritualidade em nome do desempenho individual e do bem-estar (New Age), capazes de responder a inúmeras crises e buscas de significado. 

Jean-Pierre Dozon- la cause des prophètes

O termo “secularização” é utilizado desde o século XVIII e XIX para assinalar o processo através do qual algumas religiões perdem a influência sobre as variadas esferas da vida social.

Inicialmente (séculos XVIII e XIX), a secularização marcara a ruptura irremediável entre a política e a religião, o fim das grandes transcendências e o triunfo da razão. A entrada nesta nova era positivista assemelha-se a um movimento pela emancipação do homem dos assuntos religiosos, alguns indo tão longe a ponto de prever o completo desaparecimento da religião (Marx). Numa segunda fase (século XX), o significado da secularização não muda fundamentalmente, mas opera uma alteração subtil: os recursos religiosos, não se esgotando, são transferidos para o campo laico em geral e para o campo político em particular. Esta é a era das “religiões políticas” (Aron): a revolução ocupa o lugar da esperança, enquanto a ideologia se encarrega da salvação da humanidade. Numa terceira fase (séculos XX e XXI), a secularização tornou-se muito mais ambivalente, pois continua a descrever a desintegração de grandes instituições religiosas, enquanto aponta para um processo complexo e multifacetado de recomposição religiosa. Em vez do desaparecimento das religiões, assistimos a uma ruptura e disseminação da religião na forma de religiosidades múltiplas.

David Bisson La spiritualité au miroir de l’ultramodernité

Então, o que explica esta perda progressiva de religiosidade?  Uma das causas é o facto de que as religiões alicerçadas no credo da salvação pela intervenção do exemplo dos seus avatares se preocuparam mais em sobrevalorizar a dimensão divina, subestimando a precariedade da existência humana, consequência natural da sua queda na materialidade.  

Durante muito séculos, as religiões detiveram a autoridade sobre os assuntos do Espírito, único propósito duradouro para a salvação do mundo, acabando por separar a vida material da vida espiritual, criando assim um fosso intransponível entre o Céu e a Terra e, consecutivamente, uma desvalorização da vida humana.

Com o desenvolvimento do saber científico irão ser desmitificados os muitos mistérios do mundo natural, oferecendo assim uma nova visão objetiva para o devir do homem, da qual nasce a ideia do progresso interminável movido pela soberania do génio humano. 

Praticante de um ritual na Montanha Inwangsan, Seul, Coreia do Sul. Creative Commons

Daí, estabelece-se que nos primórdios da nossa evolução predominava uma visão mágica do mundo e que, por medo e instinto de sobrevivência, a humanidade procurava venerar e pactuar com as forças vivas dos elementos da natureza. 

Depois surge uma visão religiosa que procura apropriar-se e hierarquizar estas forças consideradas sobrenaturais atribuindo-lhe nomes divinos e, através delas, estabelecer a própria ordem piramidal da comunidade humana. Em seguida, na sequência do progressivo despertar intelectual da nossa humanidade, passamos a ter uma visão filosófica da realidade capaz de analisar e questionar os porquês das causas naturais. 

Por fim, o espírito científico torna-se o único detentor da verdade, negando qualquer intromissão de causas alheias ao determinismo da razão humana. Evidentemente que esta visão simplista e linear da evolução não corresponde aos factos, pois a História da nossa humanidade é cíclica e, hoje, sabe-se, graças à arqueologia e à antropologia, que a História do mundo teve altos e baixos, avanços e retrocessos.  

Num dos exemplos mais próximos de nós, recuando à Grécia do século V a.C., vamos descobrir que, pouco a pouco, o pensamento filosófico foi substituindo a sabedoria anterior, profundamente vinculada à religião dos Mistérios, provavelmente  oriunda de civilizações muito avançadas do Extremo Oriente, Índia, Mesopotâmia, Babilónia e do Egipto. Este último foi o lugar de formação  de grandes sábios, como os cosmólogos pré-socráticos, assim como Pitágoras e Platão, duas figuras de proa do denominado Fogo Grego. 

Com a perda gradual de contacto com a sabedoria e o afastamento dos valores morais, a civilização grega entra em declínio e os conflitos sociais, políticos e morais acabarão por deixar um grande vazio existencial na vida quotidiana das populações. Os filósofos, aqueles que buscam e amam o saber, substituem os primeiros Sábios e procuram repostas para trazer soluções vivenciais para as grandes questões da existência, tais como o sofrimento, a doença e a morte.  Assim surgem numerosas correntes de pensamento que dão origem a várias escolas com tendências moralistas, mais preocupadas em transmitir de forma eficaz e imediata soluções práticas para eliminar os males da alma, deixando para trás as grandes especulações metafísicas, consideradas pouco acessíveis ao homem comum.  

A morte de Sócrates. Pixabay

Na Grécia do século V a.C., Sócrates é condenado à morte por desafiar os velhos Deuses do Olimpo, afirmando ser guiado na sua busca da Verdade pela voz do seu Daimon ou Deus interior. Na mesma altura, o sofista Protágoras afirmava que o Homem era a medida de todas as coisas, por conseguinte, nenhuma medida poderia ser igual para todos os homens. Deste modo, não existe uma verdade absoluta e a realidade é consecutivamente relativa e difere de indivíduo para indivíduo. Mais tarde o filósofo Epicuro afirmava.

“É estupidez pedir aos deuses aquilo que se pode conseguir sozinho”.

O chamado Pasmo da Sicília, de Rafael Sanzio. Domínio Público

A decadência do mundo antigo dá lugar a um novo rumo de salvação messiânico através da vinda e mensagem de Cristo, que irá substituir os ícones da sabedoria antiga, agora considerada inimiga da fé.  Pouco a pouco, a filosofia é destituída dos seus atributos vivenciais e torna-se uma disciplina académica, exclusivamente teórica, reservada as elites intelectuais.  Hoje em dia, a filosofia afastou-se das preocupações do homem comum e tornou-se uma mera cadeira no ensino, a maior parte das vezes submetida à obediência de um programa influenciado pela mentalidade da própria época. Pelo contrário, a filosofia antiga preocupava-se em educar, ou seja, fazer sair o melhor do ser humano, formá-lo, pois “formação” significa animar ou activar a “forma”, do Eidos grego (a Ideia), permitindo passar assim do subjetivo ao objetivo, da teoria à prática. 

Ser filósofo não é meramente ter pensamentos subtis, nem mesmo fundar uma escola…. É resolver alguns dos problemas da vida, não na teoria, mas na prática.

Henry David Thoreau

Numa luta constante entre a razão e a fé, a ciência e a religião, a matéria e o Espírito, a Civilização Ocidental inclina-se irreversivelmente a favor da morte de Deus em prol da medida humana e, paulatinamente, a razão toma o poder sobre o determinismo humano.  Nietzsche, o grande responsável pelo surgimento do culto moderno da emancipação do Indivíduo, aquele que se pensa a si mesmo, e não em função da submissão da sua vontade a causas externas, anunciava aquilo que podemos chamar a busca da transcendência sem Deus ou o culto do Ego.  Na aurora do século XXI, as neurociências defendem que o Espírito é um “mito” uma criação neuronal do cérebro. Na base desta perspectiva, meramente materialista, investe-se na valorização das capacidades técnicas e intelectuais do ser humano em detrimento da sua formação moral e espiritual. Nesta atmosfera tribal, onde vai cada um por si, em que se é livre de se seguir as suas próprias convicções, encontramos uma fase de profundo vazio existencial com um futuro planetário incerto. Neste ambiente doentio, com sinais catastróficos e pandémicos que resultam do profundo desequilíbrio dos nossos modos de vida, como predadores insaciáveis e escravos do culto do Ego, viramo-nos para todos os lados para fugir do nosso mal de alma.

Celebração new age do solstício de Verão, Creative Commons

Linda Mercadante, doutora em Teologia e professora universitária em Ohio, caracterizou 4 grandes perfis da busca espiritual do nosso tempo: 

Os Ocasionais:  são consumistas temporais e seguidores de modas exóticas.

Os Exploradores: Indivíduos e grupos muito solicitados pelas novas correntes do turismo espiritual, em busca de novas experiências em retiros esporádicos tais como Druidismo, Xamanismo, Celticismo, Wicca, desenvolvimento pessoal, Yoga e meditação, entre outros.

Os Migrantes: Na grande maioria são indivíduos curiosos e sempre inconformados que vão passando de uma prática a outra, sem nunca se fixar, para manterem distância em relação a qualquer tipo de comprometimento. 

Os Buscadores: Em menor número, mais determinados e movidos por um autêntico chamamento interior, optam por fixar-se numa prática mais duradora.

A diferença entre um pseudo espiritualista e um verdadeiro buscador é que o primeiro escolhe o plano horizontal, querendo meramente ampliar os seus conhecimentos sem por isso abdicar da sua comodidade e liberdade. O verdadeiro buscador é aquele que escolhe cruzar a linha horizontal com a linha vertical, cavando no seu interior um poço, desalojando a lama que obstrui o seu caminho de autoconhecimento e aí encontrar a água da vida que abrirá a nascente da sua renovação.

Nero e Séneca, Creative Commons

Escava dentro de ti. É lá que está a fonte do bem, e esta pode jorrar continuamente, se a escavares sempre.

Marco Aurélio

O nosso primeiro exercício para o despertar espiritual reside em eliminar os obstáculos que obstruem a tomada de consciência daquilo que constitui a nossa verdadeira identidade. Sócrates ensinava que a verdadeira Sabedoria não é algo que se encontre no exterior e que se acrescente àquilo que se julga saber, pelo contrário, trata-se de desalojar tudo aquilo que temos a mais, ou seja, as falsas representações da realidade. Trata-se, pois, de tirar a máscara que, camada sobre camada, esconde a nossa verdadeira natureza. A arte da maiêutica socrática, ou a arte de dar à luz, assemelha-se à arte da escultura que lapida a pedra bruta para daí extrair a obra-prima, ou o resultado do modelo idealizado, captado pela mente livre de impurezas.

Devemos então ter cuidado com a inflamação do nosso ego ou o nosso eu pessoalista. Dizem os Mestres que a pseudo espiritualidade gera um exército de complexos emocionais e mentais, tais como a ânsia de perfeccionismo, a procura insaciável do bem-estar, a busca de falsos paraísos que servem de retiro para nos protegermos contra os nossos medos de sermos confrontados com a dor e a necessidade de mudança. As asas não crescem no corpo da lagarta, é preciso romper com o casulo para que a lagarta se transmute em borboleta, do mesmo modo que todo o caminho espiritual implica uma metamorfose. Não se trata de fugir dos problemas do nosso quotidiano, pois a coragem é desenvolvida na presença e não na ausência das dificuldades. Do mesmo modo, é através da superação das dificuldades que nos fortalecemos. Se desejamos desenvolver a nossa força muscular, vamos ter que exercitar os músculos, levantando pesos; se desejamos despertar o nosso poder interno, temos que contrariar a tendência centrípeta daquilo que nos arrasta para baixo e nos fragiliza.

Ondas nas margens do Mar Mediterrâneo. Creative Commons

 

 

 

 

Que sejas como o promontório, contra o qual as ondas se quebram e voltam a quebrar na tempestade; ele mantém-se firme até que as águas tumultuosas se rendam à sua volta e vão descansar. Jamais digas ‘que infeliz sou pelo que me aconteceu! Pelo contrário, declara: que feliz eu sou por me ter mantido inabalado frente às adversidades do presente e sem medo do que há de vir no futuro.

 

 

Marco Aurélio

 

Cada virtude que desenvolvemos constitui uma alavanca para nos levantarmos de novo, pois as provas da vida engrandecem e purificam aquele que as supera. O pequeno eu ou ego, aquele que se julga o centro do mundo, vive numa mudança constante, é essencialmente reactivo: eu gosto ou não gosto, eu estou feliz ou infeliz. Todo o mundo gira à sua volta e não aceita que o contrariem, é prisioneiro e vítima das suas próprias representações mentais. Para evoluir é necessário distinguir aquilo que é realidade daquilo que é a projeção dos nossos anseios e expectativas. São as nossas fantasias ou representações mentaisque nos isolam.

 

 

A vida não tem sentido, nem sentido proibido nem obrigatório. E se não faz sentido é porque vai por toda a parte e transborda de sentido, inunda tudo. Dói enquanto se quiser impor um significado a isso, torcê-lo numa direção ou noutra. Se não tem sentido, é porque é esse o sentido.

 

 

Christiane Singer

 

As dificuldades podem ser encaradas como limites ou como motor de crescimento, porque todas as situações da vida podem ser úteis para progredir, mas para isso temos que desejar ser um pouco melhores e não unicamente querermos parecer melhores. Temos que saber se queremos unicamente um passatempo ou algo para durar. Ninguém se torna pianista tocando só de vez em quando, ninguém se torna maratonista correndo só uma hora ao domingo de manhã. Muitas pessoas confundem a busca espiritual com uma forma provisória de resolução dos seus problemas pessoais, confundindo bem-estar temporário com vida espiritual. Temos então que nos questionar acerca daquilo que estamos dispostos a dar para alcançar aquilo que verdadeiramente queremos. O eu é o maior tirano, ele tira-nos a possibilidade de chegar aos outros. Enquanto não formos capazes de eliminar o nosso egocentrismo, iremos construir divisão e sofrimento à nossa volta, sempre procurando tirar partido das circunstâncias a nosso favor para satisfazer os nossos próprios interesses. Os Mestres recordam que a Lei da vida é aquilo que beneficia a todos, a Lei é impessoal e justa, a Lei é Vontade, Amor e Inteligência. 

 

 

“Por um poder imortal, todas as coisas, perto ou distantes, estão ocultamente ligadas entre si. E tão ligadas estão, que não se pode colher uma flor sem perturbar as estrelas”.

 

 

Francis Thompson

 

 A acção verdadeira é aquela que está livre das falsas aspirações egóicas, serve a vida Una, livre do desejo de recompensa, porque a verdadeira recompensa de algo que está bem feito é a de a ter feito. A acção justa é um dever de restituição do Bem pelo Bem, da Vida pela Vida. O filósofo estóico Marco Aurélio dizia: “Nada esperar, nada evitar”. 

 

 

“Aquele cuja Mente não está perturbada no meio da tristeza e que entre os prazeres permanece livre de desejo, aquele que deixar a atracção, o medo e a cólera, é o Sábio cujo entendimento está firmemente estabelecido.”

 

 

Bagavad Gita

 

 Um dos grandes medos relacionados com a espiritualidade é o de a conceber como algo anorético, ou seja, implicando a perda de apetite para as coisas materiais. Em geral, vemos a espiritualidade como uma morte prematura para a realização da nossa felicidade. Desafortunadamente, a felicidade está condicionada ao apego, dependendo do exterior para a sua auto-satisfação e levando consecutivamente ao sofrimento e perda, porque nada deste mundo perdura para sempre. Os Mestres de Sabedoria são unânimes em reconhecer que a principal fonte da nossa infelicidade reside na influência das nossas paixões. 

 

Na maior parte das vezes, julgamos que viver sem paixões é sinónimo de renunciar à felicidade, pois a confundimos com prazer. Felicidade significa vida fecunda ou um estado de alma que perdura. Para os filósofos epicuristas e estóicos, uma vida feliz é uma vida vivida em Ataraxia, palavra grega que significa quietude absoluta da alma, sem perturbações, o apanágio dos deuses e o ideal do sábio. 

 

Por seu lado, paixão vem do grego Pathos e significa padecer, afeição. Os nossos desejos são o movimento da alma racional e emocional que, padecendo de algo, busca a satisfação no exterior por carência interior, existindo uma relação de atração ou desejo entre o sujeito e o objecto. O Mestre Buda ensinava que o sofrimento está relacionado com a natureza transitória do objeto dos nossos desejos, pois tudo aquilo que é de natureza material está sujeito a impermanência. Escrevia Marco Aurélio: 

 

Aquele que ama a glória coloca a sua própria felicidade nas emoções do outro. Aquele que ama o prazer coloca a sua felicidade nas suas próprias inclinações. Mas o homem inteligente coloca a sua felicidade na sua própria conduta.


O Fogo. Creative Commons

Os fenómenos materiais são estados transitórios da manifestação da vida, jogando esta com as formas para retornar à sua Essência. O Espírito é o sopro da vida que se liberta da morte da matéria, como a madeira que se transforma em fogo, o fogo em luz, a luz em Espírito. O Espírito é a verdade da vida, Ele é o motor imóvel da sua expansão e contracção, é o poder libertador de todos os limites, a finalidade última de todos os fenómenos visíveis e invisíveis. O destino é a atração amorosa que Ele exerce sobre todas as partes, porque o seu amor infinito é aquilo que traz a vida de volta. 

“A verdadeira aventura da vida, o mais alto e luminoso desafio, não é a fuga do compromisso, mas aquele que contemplou a verdadeira natureza do amor, os seus abismos, as suas ilusões, as suas feridas e comoções. Aquele que decida viver custe o que custar, esta odisseia, sem temor dos seus náufragos e do seu sagrado, de ser capaz de perder mais que aquilo que pode possuir para manter a sua promessa, nele habita a Vida.”

                                                                                                             Christiane Singer

A arte de bem viver, segundo a Filosofia Estóica, é uma caixa de primeiros socorros em tempos de Crise.

“O filósofo é um escravo em vias de libertação”

Epicteto

 Todas as escolas de filosofia antigas, fossem estas Orientais ou Ocidentais, tinham como objectivo principal a formação do ser humano como ser dotado de todos os poderes da Criação em estado potencial. A prática filosófica, ou seja, o amor ao saber, era uma via de acesso à Verdade, proporcionando o despertar dos poderes latentes que culminariam na realização daquilo a que os gregos chamavam Humanitas ou Homem integral, síntese do Universo. A filosofia constituía um caminho vivencial de autoconhecimento e superação de todos os limites impostos pela sua dimensão terrenal e temporal. A eterna luta entre o apego à vida e o medo à morte levou-o a desafiar a sua própria temporalidade, iniciando o seu próprio combate interior contra os inimigos da sua alma imortal. A felicidade do ser humano só podia ser assegurada por um bem que não dependesse do exterior, mas que despertasse da sua escolha consciente, eliminando progressivamente tudo aquilo que contribuísse para a desarmonia.

Os filósofos da antiguidade falavam do homem como microcosmos, pois o seu conceito de Física integrava todos as vertentes da realidade. Para os Antigos, uma vida boa ou feliz não é o efeito do acaso ou circunstâncias simples, mas o resultado do trabalho sobre si mesmo e, deste ponto de vista, os exercícios filosóficos podem ser decisivos e constituírem uma arte de bem viver. 

“Mantenha-se simples, bom, puro, sério, livre de afectação, amigo da justiça, temente aos deuses, gentil, apaixonado, vigoroso em todas as suas atitudes. Lute para viver como a filosofia gostaria que vivesse. Reverencie os deuses e ajude os homens. A vida é curta.”

Marco Aurélio

Os exercícios espirituais

A palavra “exercício” tem dois significados: ascetismo e ginásio, Exercitium comportando a noção de trabalho, esforço a longo prazo, repetição. Espiritual, o que é “imaterial”, a obra da alma para efectuar uma conversão no ser interior, para alcançar paz de espírito, e plenitude da vida .

O objectivo dos exercícios espirituais é “uma prática, voluntária, pessoal, destinada a operar uma transformação de si mesmo” (P. Hadot)

A partir do momento em que o homem deixou de se ver e intuir como parte de um Todo Inteligível e solidário do Bem comum, abandonou-se ao acaso, raiz de todas as injustiças, desvios e alienações. Para aqueles que vivem exclusivamente para a matéria, a vida é um impulso cego que constrói e destrói, tudo é acidental e irracional, e o corpo não passa de uma máquina que, arrastada pela corrente da vida, tende a sobreviver e adaptar-se às mudanças com o único propósito de procurar o máximo prazer com o menor esforço. Desta forma abolimos a possibilidade de progredir, entregámos a nossa vontade a uma passiva resignação do nada vale a pena, deixando de haver Lei, Ordem, Inteligência, Autoridade, Modelos, Mestres e Deus para quê? Nas escolas com tradição espiritual existia uma corrente de formação em que o discípulo era aquele que escolhia de forma voluntária disciplinar-se, submetendo-se à orientação de Mestres na arte da vida e ao exame de si mesmo. Curiosamente hoje ninguém quer ser discípulo, mas todos querem ser mestres.

Para os filósofos estóicos, que viveram também num período de profunda crise moral, o importante é salvar o presente das preocupações de um futuro incerto e de um passado indigente. A infelicidade do homem provém da busca vã em procurar alcançar ou manter bens que nunca serão obtidos ou que são de natureza transitória, assim como sofrer por circunstâncias externas, alheias à sua própria vontade, tais como a fortuna, a glória, a doença, a velhice e a morte.

 Não desprezes a morte; dá-lhe boa acolhida, como a uma das coisas que a Natureza quer.

Marco Aurélio

Os exercícios espirituais dos sábios estóicos incluíam práticas de três naturezas: primeira a Física, para suportar com coragem os embates e influências nefastas do mundo sensível; a Ética, para reconhecer os valores essenciais da justa conduta ou dos deveres, em simpatia e contemplação com a ordem do Mundo; por último, a Lógica, para orientar a alma racional no sentido de uma justa introspecção, discernimento interior e exame de consciência em relação àquilo que depende de nós e àquilo que não depende de nós. 

Em resumo, temos como primeiro exercício a disciplina dos desejos, ou seja, renunciar a desejar aquilo que nos avilta e perturba. Não desejar aquilo que não depende de nós, mas apenas desejar a acção moral que serve o interesse do Todo e aceitar com alegria tudo aquilo que vem da alma do mundo como manifestação da divina Providência, que zela pela ordem universal. 

“O homem comum é exigente com os outros; o homem superior é exigente consigo mesmo.“

Marco Aurélio   

Em seguida buscar a disciplina da acção: Agir de forma justa, não fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam, fazer conduzir a nossa acção por aquilo que é bom para todos, cumprir com os nossos deveres, não fugir aos nossos compromissos de acção e contribuir para o bem comum. A resiliência passiva permite-nos resistir aos embates da vida, manter-nos firmes no meio das tormentas, mas precisamos também de transformar o passivo em activo, ser capaz de determinação, coragem e compromisso para mudar aquilo que depende de nós mudar.   

“Aplica-te a todo o instante com toda a atenção… para terminar o trabalho que tens nas tuas mãos… e liberta-te de todas as outras preocupações. Delas ficarás livre se executares cada acção da tua vida como se fosse a última.”

Marco Aurélio

Em terceiro lugar temos a disciplina no julgamento:  o bom uso das nossas representações ou juízo de valores, pois são elas que nos isolam e nos impedem de aceitar a realidade tal como ela é, e não como gostaríamos que fosse. Ser indiferente não significa desinteresse, mas sim não fazer diferença e aceitar com tranquilidade de alma tudo aquilo que nos acontece e que não podemos mudar. “Viverás a mais bela das vidas se fores indiferente às coisas indiferentes” (Marco Aurélio). Eliminar a mentira, o orgulho, a inveja, a presunção e tudo aquilo que contamina o nosso julgamento. Circunscrever o presente, pois os remorsos são a memória dos bens que omitimos e os rancores são os males que não conseguimos esquecer, temos que libertar a imaginação dos fantasmas do passado e das preocupações do futuro, procurando viver a oportunidade do nosso momento presente para fazer o Bem. 

“Pratica cada um dos teus actos como se fosse o último da tua vida “

“Se uma causa exterior te perturba, a tua aflição não vem dessa causa, mas sim do teu juízo a seu respeito. No teu poder está a possibilidade de diluir essa aflição. Se o teu desgosto decorre de uma disposição interior, quem te impede de corrigir o teu estado de espírito?”

                                                                                                                                            Marco Aurélio

Pierre Hadot, um dos maiores estudiosos e conhecedores da Filosofia antiga, analisa o pensamento do imperador e filósofo Marco Aurélio na obra “A Cidadela interior”, onde afirma que, ao longo das suas meditações diárias, o filósofo constrói dentro de si uma cidadela inacessível às perturbações provocadas pelas paixões e circunstâncias externas à sua vontade. Esta cidadela, onde reina a serenidade, não é uma torre de marfim na qual ele se refugia e se isola do mundo, pelo contrário, a sua cidadela é acima de tudo, um lugar alto, despojado de qualquer agitação interior e de onde se alcança um imenso campo de visão que permite à razão discernir, entre os muitos atalhos do erro, do egoísmo e da dispersão, o caminho da verdadeira liberdade que leva à plena realização de uma vida de plenitude, justa e útil.

 ⁠”Aquele que não transmite luz, cria a sua própria escuridão.”

Marco Aurélio

As meditações de Marco Aurélio constituem um guia prático, sempre actual para o homem que aspira à melhoria de si mesmo. Nesta obra, escrita no retiro da noite e iluminada pelos mais nobres ideais, sobressai a autenticidade da sua intenção de servir o Bem com coragem, serenidade e benevolência, que são as condições indispensáveis para a realização de uma vida bem vivida em harmonia com as Leis da Natureza e que, com certeza, continuam a inspirar-nos na construção de um mundo mais humano e, por que não dizê-lo, mais espiritual.

“Mas tudo isto revela uma grande simplicidade de espírito, porque podemos, sempre que assim o quisermos, encontrar retiro em nós mesmos. Em parte alguma se encontra lugar mais tranquilo, mais isento de ruídos, que na alma”.

Marco Aurélio. 

O estoicismo comove-nos pela beleza das suas intenções, a eficácia dos seus exercícios e a actualidade dos seus ensinamentos dirigidos a todas as mulheres e homens de boa vontade. Cientes da melhoria de nós mesmos, iremos contribuir para a construção de um mundo melhor que, irreversivelmente, servirá o verdadeiro propósito da Vida.

O homem é feito para o infinito, a sua verdadeira pátria, a sua verdadeira cidade é a imensidade do mundo.

Séneca

Françoise Terseur

Imagem de destaque: Marco Aurélio, Creative Commons