“Um inesperado vírus mortal acaba com a humanidade tal como a conhecemos: já não existem comboios que unam os lugares, nem internet que nos permita conhecer o mundo, nem sequer cidades nas quais viver, ficam somente assentamentos hostis ao visitante ocasional. Neste desolador panorama um pequeno grupo de atores e músicos têm uma iniciativa surpreendente: criar a Sinfonia Viajante, com a finalidade de manter vivo um resquício de humanidade. Mas neste livro nada é fácil e rapidamente este resto de civilização também se vê ameaçado por um violento profeta. Este romance vai mais além do seu argumento e do que está escrito, original e ambicioso; submerge-nos num mundo distinto e obriga-nos a refletir sobre o presente, sobre o que temos e que valor lhe damos. Em definitivo, uma homenagem inteligente e sóbria aos pequenos prazeres da vida. Um livro difícil de deixar e, ainda, de esquecer.” 

Quando lemos o Apocalipse (o de São João, que é o mais conhecido, pois há vários outros apócrifos) a nossa imaginação fica vivamente impressionada pelas cenas de devastação, como a dos quatro cavaleiros da fome, da peste, da guerra e da morte. Não sabemos, tal é a nossa pequenez, se nos chega a consolar a descrição de Jerusalém Celeste e da pedrinha branca com o nome secreto de cada um, entregue aos vencedores. Pois sem entender que nas grandes tragédias da natureza ou das sociedades vive o grande poder renovador da vida mesma, deixamo-nos aturdir somente pela visão da dor, do terrível, sem capacidade de ver mais além.

Os quatro cavaleiros (Apocalipse VI) / Wikipedia

Todas as gerações humanas viveram, de um modo ou de outros, a pressão psicológica de um apocalipse temido, especialmente as modeladas pelo pensamento cristão, para quem é um “dogma” (o do Fim dos Tempos), como o da Encarnação. Talvez forme parte de um sentimento de culpa, uma espécie de “pecado de Adão” da condição humana; talvez uma sensação íntima de que aquilo que não é perfeito deve, mais tarde ou mais cedo, ser destruído para dar espaço a novas oportunidades. E como dizia Chuang Tzu, o caminho da perfeição é infinito e a vida – na distância que medeia entre o nascimento e a morte – não.

O nosso recém-estreado séc. XX – talvez o último desta numeração – é ávido de todo o tipo de violências, sensualismos extremos, e a sua imaginação enfermiça e convulsiva gera todo o tipo de monstros e é seduzida por todo o tipo de “vampiros”, tal como vemos expressados na literatura e no cinema. A pornografia, talvez o pior cancro de todas as sociedades decadentes, ensenhoreia as suas bandeiras e quer inclusive ser considerada arte, como se o culto ao abismo pudesse fazer encarnar a verdadeira Beleza: mais uma tática de penetração no organismo doente, até consumir o tutano dos seus ossos morais. Isto multiplica exponencialmente as mil e uma visões de apocalipse, desde os literários e próprios do cinema, até aqueles proféticos – com data de validade incluída – nos quais creem os mais incautos, como nos sucedeu com o anunciado (?) em 2012 pelos maias e outros, que rapidamente se esquecem. Na nossa insensata corrida para um futuro temido mais que sonhado.

Alguns destes apocalipses da Literatura, e portanto, da imaginação humana, podem chegar a ser tão verosímeis, e bem tratados, que agitem os nossos terrores inconscientes, armazenando-os com a certeza do possível. Este é por exemplo o que encontramos no genial romance “The Road” de Cormac McCarthy, que ganhou o prémio Pulitzer no ano de 2006, e com uma formidável adaptação ao cinema em 2009.

The Road, Cormac McCarthy / Flickr

Outro, também genial, e não tão terrível como o anterior, mais esperançado, é o romance “Estação Onze”, escrito em 2014 pela jovem canadiana (nascida em 1979) Emily St. John Mandel, e que em poucos anos vai chegar às nossas telas de cinema. Um vírus, semelhante à gripe, mas de efeitos devastadores arrasa com grande parte da humanidade. Impossível de ser sustentada a maquinaria do mundo pela dezmilésima parte que resta dos seres humanos, os sobreviventes agrupam-se em novos núcleos habitacionais, aproveitando os edifícios em pé, em lugares relativamente isolados. No romance não se dão detalhes dos primeiros quinze anos deste tempo novo (pois evidentemente a nova cronologia começa com o Ano Zero da devastação) e na realidade pouco sabemos da sociedade (bem podemos chamar assim a este novo tecido de relações humanas) e insinua-se que em cada lugar pode ter evoluído de forma diferente, ainda que semelhante. As sociedades humanas são como os coloides na química. Na sua dinâmica de sorte ou das escolhas humanas imprevisíveis, vão tendendo misteriosamente numa direção ou noutra. O estudo do pêndulo duplo como uma função permitiu-nos entrar na matemática do caos, e com esta nos fractais que governam harmonicamente os processos dinâmicos da vida. Aprendemos o “efeito borboleta” pelo qual, teoricamente, o bater de asas de uma borboleta num lugar do mundo pode provocar como efeito um tornado no outro. Mínimas variações no código genético produzidas pelos raios cósmicos podem gerar um monstro. As sociedades vão evoluindo como os diferentes ramos da Árvore da Vida, todas à procura da luz das suas necessidades internas e externas, mas cada uma com uma vontade própria, e ao mesmo tempo com sentido unitário, pois a natureza humana não deixa de ser a mesma.

Há um ponto zero, um caos inicial, mas é o que sobrevive desse caos inicial que vai determinar, juntamente com a “chamada do Cosmos externo e interno”, em que direção avançam os grupos humanos. O ponto zero é determinante e claro em relação ao que já não pode ser, mas não em relação às potencialidades futuras.

Uma das páginas deste livro é contundente, sacode a alma, não sabemos se com uma intuição de futuro, ou com o anseio e esperança de que são possíveis outras formas de viver completamente diferentes da nossa, e ainda assim mantendo no alto a chama da dignidade humana, firme o esqueleto moral do indivíduo.

“UMA lista incompleta:
Acabou o atirar-se de cabeça a piscinas de água com cloro com luzes verdes ao fundo. Acabaram as partidas de basebol que se jugavam sob os focos. Acabaram as luzes na varanda com mariposas que vibram ao redor nas noites de verão. Acabaram os comboios que avançavam sob a superfície das cidades graças à chispante energia de um terceiro rail elétrico. Acabaram-se as cidades. Acabaram-se os filmes, exceto muito de vez em quando com um gerador cujo ruído abafava metade do diálogo, e ainda assim só durante um tempo muito breve, até que se acabou o combustível para os geradores quando a gasolina dos automóveis se consumiu passados dois ou três anos. O combustível da aviação durava mais, mas era difícil de conseguir.
Acabaram-se os ecrãs que se viam na obscuridade quando as pessoas levantavam os seus telefones por cima da multidão para tirar fotografias aos cenários dos concertos. Acabaram-se os cenários de concertos iluminados com halogéneos de cores das gomas, acabou-se a música eletrónica, o punk, as guitarras elétricas.
Acabaram-se os medicamentos. Acabou-se a segurança de que ias sobreviver a um arranhão numa mão, a um corte num dedo ao cortar os legumes para o jantar ou a uma mordidela de um cão.
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Acabaram-se os voos. Acabaram-se as cidades que se distinguiam desde o céu através das janelas do avião, cheias de pontinhos resplandecentes; acabou-se o olhar para baixo desde trinta mil pés e imaginar as vidas que estariam iluminando essas luzes nesse momento. Acabaram-se os aviões, acabou-se o manter a mesa dobrada… ainda que não, isso não era exato, ainda havia aviões aqui e ali. Estavam imóveis nas pistas e nos hangares. A neve acumulava-se sobre as suas asas. Nos meses frios eram ideais para armazenar comida. No verão, os que estavam perto de alguma horta estavam cheios de bandejas de fruta a desidratar-se no calor interior. Os adolescentes escondiam-se no interior para fazer sexo. O óxido acumulava-se por toda a parte e ia apoderando-se de algumas faixas.

Buenos Aires / Wikimedia Commos

Acabaram-se os países; todas as fronteiras tinham ficado abandonadas.
Acabaram-se os bombeiros e a polícia. Acabou-se a manutenção das estradas e a recolha do lixo. Acabaram-se as naves espaciais que se dirigiam ao céu desde o Cabo Canaveral, desde o cosmódromo de Baikonur, ou desde Vandenberg, Plesetsk ou Tanegashima, deixando uma estrela de fogo no seu caminho através da atmosfera e até ao espaço.
 .
Acabou-se a internet. Acabaram-se as redes sociais, acabou-se o avançar com o rato por litanias dos sonhos, esperanças nervosas, fotografias de comida, gritos de ajuda e expressões de satisfação, atualizações de estado sentimental com ícones de corações inteiros ou partidos, planos para fazer depois, súplicas, queixas, desejos, fotos de bebés vestidos de urso ou de pimentos no Halloween. Acabou o ler e comentar as vidas dos outros e sentir-se um pouco menos só no mundo ao fazê-lo. Acabaram-se os avatares.”

Vários concertistas de música clássica, atores de teatro e outros que, casualmente se unem, formam a “Sinfonia Viajante”, e vão durante todo o ano percorrendo estas novas “cidades”. Vilas de não mais de cem habitantes, que se foram conformando. Este projeto, o da “Sinfonia Viajante”, além de assim fazer ganhar a vida aos doze ou quinze que a integravam – ou seja, além de serem alimentados ali onde estivessem – nasceu do imperativo moral de que a vida é algo mais que a sobrevivência física. Representam Shakespeare e tocam Bach e Vivaldi, e onde quer que vão, as lágrimas de reconhecimento e gratidão demonstram que a sua valentia e esforço (viajar é naquele momento um ato difícil e heróico) mereciam realmente a pena. Ouvir de novo os arpejos musicais da alma evocando um mundo belo e justo, serenamente por detrás dos véus da luta pela vida, evita a desumanização, uma grande tentação e prova nestes momentos pós-apocalípticos que descreve o romance.

E no entanto, como dizia o filósofo Sri Ram (m. em 1973), ali onde estão os que constroem as pirâmides, ali vão, como sombras, os que as destroem. Os que querem alimentar e proteger o fogo da civilização e os que querem que morra, no silêncio e na obscuridade do a-humano. No romance, um “profeta” aparece em cena, eletrizada a sua mente e emotividade pela leitura incessante do Apocalipse bíblico, e com um discurso que enfeitiça e anula as vontades e todos os valores que possam ser chamados puramente humanos: concórdia, liberdade interior, busca da beleza e da verdade, compreensão harmónica do mundo, instinto do que é justo e não (por oposição à arbitrariedade moral), etc., etc.

O livro está muito bem escrito e construído, não só o tema é de grande interesse. Como toda a boa literatura, suscita belamente elementos para pensar.

Por exemplo, a ação salta do presente (ano 20º do Grande Desastre) para trás (o mundo que conhecemos) e vice-versa. Os primeiros dez anos devem ter sido terríveis – e de facto os jovens de agora não recordam quase nada – pois devem estar enterrados no inconsciente das cenas traumáticas. Mas, mais além desta terrível transição de uma forma de viver a outra, não estamos seguros de que foram mais felizes antes com todas as comodidades, que depois, sobrevivendo duramente, em harmonia com a natureza e com o que resta da civilização.  Mais nos parece o contrário, pelo menos assim nos insinua o livro. A vida antes, na nossa sociedade atual, é apresentada como fútil, absurda, incoerente, no meio de uma imensa solidão mesmo rodeada de gente por todas as partes, como todo o tipo de angústias inconsciente e sonhos feitos em pedaços, os sentidos estão em geral adormecidos pela quantidade de estímulos desnecessários e enervantes próprios de uma sociedade de consumo em seus estertores de morte. No entanto, agora a vida é dura, a morte espreita em qualquer sombra e ainda na mais mínima ferida; matar, defendendo a própria vida ou bens básicos, é uma necessidade tão certa como respirar e comer. Mas as relações humanas vibram de autenticidade, são sólidas e solidárias, verdadeiramente solidárias, não de palavras e à distância. Nada é inútil, tudo está perfeitamente medido, e a sobrevivência impõe uma vigilância contínua, muito saudável para a alma. Fazer música ou ouvi-la, representar Shakespeare ou vê-lo no cenário, estremece as fibras internas, alimenta e fortalece a alma no desafio renovado de viver. Não é um luxo cultural, um verniz, uma veste de vaidade, é uma garantia para não deixar de ser humanos, de manter intacta a Escada de Jacob que nos leva ao Céu.

Escada de jacob, William Blake / Wikimedia Commons

A sociedade fica simplificada até ao extremo e, como num barco, ou numa mansão senhorial, a hierarquia de funções e de comando torna-se nítida e cristalina. O que manda, pelo menos na “Sinfonia Viajante”, fá-lo porque demonstrou a sua inteireza e fortaleza moral em todo o tipo de desastres e porque encarna a vontade de proteger o conjunto e os indivíduos a qualquer preço. Não há intrigas pelo poder e ninguém questiona o valor de cada um, porque, como tudo é mais simples, este é evidente. Quem serve para algo, ou está especialmente dotado, contribui com o seu dom para o bem comum, e a dureza das circunstâncias faz que o que não é justo se desfaça em pedaços, pois é muito difícil por uma mascara ou assumir algum tipo de atitude fictícia. Os enganos demagógicos servem não quando há gente, mas uma massa desumanizada, ou seja, inconsciente Sábio Platão, que dizia que a única coisa que mantém a integridade de um núcleo humano é a justiça! A justiça faz a união, e esta a força, a resistência ante as adversidades.

A natureza não sabe de catástrofes humanas. Pelo contrário, ela limpa a face da terra do peso das pegadas ímpias, do insofrível peso da contaminação física e moral, esta, como espelho divino que é, manifesta uma vez mais a sua beleza imaculada. Há uma diferença em relação ao romance e filme “The Road”, no qual a Terra está morta, ou quase, é um depósito de cadáveres, ao não chegar a luz do Sol para fertilizar a nossa Grande Casa com os seus raios; aqui, a ausência quase total de seres humanos devolve os fatores naturais à harmonia. De novo o céu está limpo, e as águas são puras, e a Natureza descansa da atividade febril e histérica, viral, de apenas vinte anos antes. O desafio é agora saber o que guardar para o futuro, e poder fazê-lo. Um vento purificador arrasa com tudo o que já não é válido, e os best-sellers são os primeiros best-esquecidos, pois ninguém pede que se represente – estamos em terra anglófona – mas a Shakespeare. Tempos tão duros exigem joias de verdade e não futilidades de entretenimento. Quantos, arriscando a sua própria vida, copiariam as linhas inúteis de tantos livros de hoje? E no entanto, muitos as apostariam para perpetuar um livro como a Voz do Silêncio, O Mercador de Veneza, Conto de Inverno ou A Tempestade.

Sim, a joia da Esperança, que se quis ser arrancada do coração dos seres humanos, não nos abandonará. E quando caiam todos os falsos ídolos e os pesadelos, exaustos, não tenham sangue com que saciar a sua sede, de novo será este Gral de luz que guia nas trevas, íman que atraia tudo o que é de verdade válido e mereça a pena conservar por outros mil ou dez mil anos mais.

 

 

Artigo escrito em Almada, 29 de julio del 2016