A busca por algum elo que possa ligar o maior artista sacro da História à maior das relíquias sagradas tem todo o potencial para ser vista como uma necessidade ainda por se concretizar na ciência da Biografia. Contudo, esta é uma matéria desprezada nos meios acadêmicos – e fora deles – por razões diversas. Mas, por quê? Provavelmente, a carência de materialidade seja a principal destas razões. Mas, seria mesmo uma natural associação entre Michelangelo Buonarroti e o Santo Sudário algo tão fora de questão? Assim como com Da Vinci, talvez a total falta de provas documentais que o associe à mortalha seja em razão de algo justificável (cuja razão nos seja oculta) ou, tão-somente, por uma mera casualidade – quando a “ausência de prova” não deve ser confundida com “prova de ausência”. Aliás, também não existem provas pessoais documentadas de que Michelangelo tenha sido um homossexual, ou de que Leonardo tenha pintado a “Mona Lisa”.

Devemos considerar que, não apenas para com ambos, mas com qualquer outro artista na Renascença, nunca veio às claras qualquer relação deste com o Sudário de Turim – como se, naturalmente, o assunto “Síndone” fosse algo sigiloso. Teria sido por, simplesmente, tais conhecimentos ou contatos nunca terem ocorrido? Difícil acreditar, pois a fama desta relíquia na Europa (e na Itália, especificamente) era gigantesca, e o estreito acercamento das altas rodas eclesiásticas e autoridades políticas com vários destes grandes artistas era uma constante, consequência natural da importância de suas atividades – um exemplo é que, da arte de Michelangelo, 96% foi produzida para cardeais e papas. Uma razão óbvia para tanta mudez deve ser o fato de que, caso um contato entre artista e o lençol fosse revelado, se poderia lançar suspeitas se a relíquia, na verdade, não era uma falsificação deste. Evidentemente, aquela sociedade não toleraria fraudes assim e, ainda que houvesse as cópias “oficiais” em exibição do Sudário, estas, já eram reconhecidamente declaradas como réplicas – com direito a portar um selo da Igreja.

Sendo um intelectual, um grande interessado pelo simbolismo religioso e pelas questões científicas da anatomia humana, teria sido extremamente improvável a existência do Sudário ter passado em branco para Michelangelo – alguém que se acercava das rodas mais pensantes entre Roma e Florença, ávido por compreender a Criação e como a evolução esculpiu as formas e volumes da “máquina humana”. Aprender a partir da própria nudez do Filho de Deus deveria ter sido para ele uma viagem ao divino, ao transcendental. Foi com estas noções em mente que decidi empreender uma pesquisa com todo o material que dispomos, desenterrar outros e tentar responder à pergunta: Enfim, se de fato houve tal conexão, onde estariam gravadas as evidências que corroborariam o evento? São evidências estas, como que testemunhas silenciosas, espalhadas pela arte daquele que costuma ser tratado de “O divino”. Uma análise sobre suas ideias, codificadas na produção artística que o imortalizou, e em seus escritos, talvez nos possa oferecer indícios capazes de revelar uma nova percepção a respeito do Sagrado interior do gênio. A fim de melhor organizar os resultados desta busca, resolvi enumerar seis pontos nevrálgicos para esta “dissecação”, a seguir. Ainda quero observar que o presente estudo foi chancelado pela maior autoridade mundial do Santo Sudário, o autor e conferencista Barrie Schwortz. Este renomado especialista é fundador do www.shroud.com, além de ter atuado entre 1978 e 1981 como fotógrafo oficial no histórico projeto STURP (Shroud of Turin Research Project).

“A Deposição da Cruz” com o Sudário: Versões “sombrias” em pintura, por Marcello Venusti e Jacopino del Conte – a partir de desenho original de Michelangelo.


1) O SUDÁRIO É O CENTRO DA PIETÀ. Não nos pode passar despercebido que a inclusão da Sagrada Mortalha – de forma mais ou menos explícita – acabou sendo uma constante na obra de Michelangelo, tendo em vista o nível de atenção que o artista dera à temática do Cristo moribundo. Assim, na icônica “Pietà Vaticana” (1499), o lençol se faz presente justamente no meio da composição, entre as coxas de Maria e Seu desfalecido Filho sobre seu colo. O Sudário também está representado em desenhos preparatórios, como aquele para uma variante da temática da “Deposição da Cruz”. O desenho em questão acabou por se tornar uma pintura (de aspecto mais sombrio que o planejado) apenas por meio de alguns de seus seguidores, como Jacopino del Conte e Marcello Venusti.

Versão “iluminada” de “A Deposição de Cristo” e a nudez do Messias: Uma constante na representação michelangelesca.

2) A “TECNOLOGIA SAGRADA”: I.A. E NUDEZ DIVINA. É possível que o simples fato de o Filho de Deus estar completamente nu no Santo Sudário possa ter acendido um alerta em Michelangelo. A união da pura divindade de Cristo com sua dimensão corpórea humana e masculina seria um evento perfeito em termos de sintetizar os valores e maiores interesses espirituais de sua mente e alma: um milagre materializado diante de si. Na verdade, em praticamente todas as vezes que o artista decidira representar um Cristo adulto, Este se apresenta em estado de semi ou plena nudez – fosse em desenhos, pinturas ou esculturas. A mais célebre destas imagens é a pintura original do Messias-Apolo ao centro de “O Juízo Final” (1535–1541), na Capela Sistina. Posteriormente, o mesmo foi coberto (junto aos demais personagens despidos) com uma tira de pano pelos pincéis de Daniele da Volterra, seu maior discípulo. Também digno de nota é o “Crucifixo do Espírito Santo”, que esculpira em 1492, aos 17 anos, para o convento de mesmo nome em Florença. A propósito, o gosto de Buonarroti pelo corpo do Messias era tão grande que, no esquema preparatório para uma “Pietà Colonna”, segue um fato curioso, descrito a seguir.

Este desenho (hoje no Museu Isabella Stewart Gardner, Boston) foi executado em 1538 pelo mestre para presentear sua musa platônica e grande companheira intelectual, a poetisa Vittoria Colonna, Marquesa de Pescara. Entretanto, há uma calorosa discussão sobre se a respectiva pintura teria chegado a nós. Ocorre que, em 2010, a mídia surge com uma história dando conta de uma forte candidata a “original perdida”, localizada numa propriedade privada em Nova York. Já em 2023, tive a oportunidade de realizar análises com uso de uma Inteligência Artificial particular, em parte desenvolvida por mim, sobre algumas boas reproduções desta pintura. Esta metodologia própria – denominada “Luminari” – incluiu uma série de testes realizados com engenharia “Machine Learning”, seguindo rigidamente normas acadêmicas. Essencialmente, é um sistema com arquitetura de rede neural convolucional, especificamente adequado para realizar tarefas preditivas no campo das obras de arte. 

Deste modo, somando-se os percentuais em duas etapas de depurações, curiosamente, verifiquei sobre esta derivada de “Colonna”, que o corpo seminu de Cristo é autoral de Michelangelo com 77% de compatibilidades – já que se concorda 75% ser o mínimo para quaisquer testes de autenticidade. Já o provável co-autor seria Marco Pino (Marco di Giovan Battista), um discípulo de Michelangelo, também conhecido como “Marco da Siena” (1521-1583), com robustos 98% de chances sobre o restante da obra. Ao que parece, o polivalente artista fizera questão de cuidar, ele mesmo, da “cereja do bolo” – ou seja, o corpo de Cristo.

“Cristo em oração no Getsêmani” de Marcello Venusti: Rosto frontal e olhos cerrados em pintura a partir de desenho original de Michelangelo. É interessante que Jesus reapareça logo ao lado, num instante subsequente, quando repreende seus incautos discípulos.

3) O CRISTO ORANTE. É notória a assombrosa similaridade entre o rosto do Messias em um muito desgastado desenho original de Michelangelo, “Cristo orando no Horto das Oliveiras” (mantido nos Uffizi de Florença), e subsequentes versões pictóricas de seus seguidores, como Marcello Venusti – vale dizer, também um amigo muito próximo de Michelangelo. 

A outra metade (no topo): De forma curiosa, a ponta do dedo indicador esquerdo do Messias “toca” precisamente a linha do decote, como a dizer: “olhe aqui” -em outras palavras, “este é ‘o limite'”. A altíssima correspondência é também confirmada em outras versões a partir de Venusti (meio e acima).

Vale dizer que, sendo entusiasta de uma imagética contorcionista, dinâmica e vibrante, era bem incomum o artista optar por representar um rosto estático, em estado absolutamente frontal, protocolar. Chamo ainda a atenção para a raridade que era, ao longo da arte renascentista, se apresentar um Cristo orante de olhos fechados – tal qual no Sudário – no episódio neotestamentário da agonia no Getsêmani. Planejar, conscientemente, uma inspiração no rosto sindônico parece fazer sentido e explicar tal escolha. 

 

“O Juízo Final” era um rosto: Geometrias e outros elementos a unir dois grandes ícones da Ressurreição enquanto “Metamorfose”

4) “O JUÍZO FINAL” COMO O ROSTO DO SUDÁRIO. No ano de 2012 o agente especial aposentado do FBI, Philip Dayvault, publicou uma teoria surpreendente: toda a composição em “O Juízo Final” na Capela Sistina, na verdade, seria a representação do rosto do “homem do Sudário”. Ainda que a ideia do afresco como um rosto em si já tivesse sido apontada pela escritora Sue Binkley Tatem, foi Dayvault quem deu uma “identidade” à enigmática face ao traçar algumas analogias gráficas entre certas marcas no tecido e detalhes em “Juízo” – algo muito improvável de ser produzido apenas por mera coincidência. 

“O Juízo Final” era um rosto (2): Pontos de referência na obra colossal de Michelangelo a ancorar as marcas da Paixão.

Para qualquer um com um mínimo de razoabilidade, toda essa geometria e o conjunto de evidências juntadas por Dayvault parecem algo digno de certa atenção.

O Sudário em representação de Giulio Clovio: Pintura de seguidor de Michelangelo tornou-se ícone na História da devoção sudarista.

5) O NOTÁVEL “MICHELANGELESCO”. Curiosamente, um dos mais importantes dos seguidores de Michelangelo foi o croata Giulio Clovio (1498 -1578), cujo nome estará associado ao Sudário de forma irreversível para a eternidade. Afinal, ele é o autor de uma pintura datada de 1540 (e conservada na Galleria Sabauda, Turim) que vem a ser a mais famosa imagem iconográfica sobre o lençol – ficando atrás apenas da festejada fotografia obtida por Secondo Pia em 1898, e que nos revelou a imagem em negativo com uma riqueza de detalhes digna de um milagre. Como se não bastasse, provavelmente no fim da vida, este discípulo também foi o responsável pela criação de um “novo Sudário” ou de uma relíquia sindônica “de segunda geração”, ou seja: Através de técnicas de pintura, Clovio foi capaz de reproduzir a imagem do Sudário num outro lençol, previamente “imantado” (tocado) na relíquia original, a fim de que se obtivesse duas relíquias – e não mais apenas uma. Todo o processo, ou “ritualística”, que envolvia a produção de cópias adquiria um âmbito de alquimia – aliás, o verdadeiro poder e plano final do alquimista é a “renovação”, ou seja, uma “ressurreição”. Esta “segunda relíquia” de Clovio é considerada como uma das mais perfeitas réplicas do Sudário já produzidas, e está hoje resguardada no Convento de Santo Domingo em Santiago del Estero, Argentina. 

Michelangelo e a técnica de ocultar diversos elementos específicos dentro de um rico conjunto de formas. A Capela Sistina se converte num “Atlas da Anatomia”.

6) OCULTAR OS ELEMENTOS. A rivalidade entre a genialidade de Michelangelo e de Leonardo é célebre e, exatamente por esta razão, a briga foi capaz de presentear a humanidade com algumas obras-primas. Peço licença para que, a fim de que melhor se compreenda um dos mais reveladores elementos a embasar este meu discurso, me estenda sobre uma questão envolvendo a obra de Leonardo. 

Sabemos que um dos mais emblemáticos projetos deste, “A Última Ceia”, guarda um mar aparentemente infindável de interpretações religiosas e esotéricas. E foi seguindo esta pista que, recentemente, eu encontrei o que poderia ser o real sentido para tão misteriosa pintura. Objetivamente falando, em minhas pesquisas sobre “A Última Ceia”, pude identificar o grupo dos apóstolos com Jesus como a figura do Cristo morto – idêntica à do Santo Sudário. Ou seja, a Ceia é, na verdade, o próprio Sudário de Turim. O efeito visual fica mais evidente através de um embaçamento neste conjunto que une Jesus aos apóstolos, onde poderemos notar uma figura humanóide deitada sobre a mesa – exatamente nos mesmos moldes do homem estampado no Sudário. 

Razões para esta nova visão sobre a “A Última Ceia” não faltam: Já existe a identificação do rosto do Sudário nesta mesma pintura, na coluna à esquerda, acima e entre as cabeças de São Bartolomeu e São Tiago, o Menor – talvez servindo para se indicar em qual lado da mesa estaria a cabeça do corpo “codificado”. Mais um fator é a suspeita de décadas sobre a toalha que cobre a mesa na pintura ser, na verdade, a Sagrada Mortalha. Esta é uma tese defendida pela arqueóloga e crítica de arte Yasmin von Hohenstaufen, assim como pelo médico e autor Gabriele Montera. Este último chegou a apresentar uma compatibilidade virtualmente precisa de dimensões entre o verdadeiro Sudário e a toalha sobre a mesa na obra-prima de Da Vinci. 

“A Última Ceia” de Leonardo e “O Cristo morto” do Museu de Arte Sacra, Belém: Esta compatibilidade significante poderia sugerir o maior segredo de Leonardo por trás do mais esotérico de seus trabalhos.

Pois bem, estranhando o fato de a toalha não apresentar nenhuma das marcas da Paixão, deduzi que estas deveriam estar na composição, em algum outro lugar. E foi aí que me dei conta de que o corpo poderia, simplesmente, estar em repouso sobre a própria toalha/mortalha. E, se minhas desconfianças estivessem corretas, nada mais coerente que o corpo espectral do Messias fazer parte e ser apresentado de maneira sutil e poética desta forma. A imagem fala por si: a formação dos personagens na ‘Última Ceia’ possui um nível de compatibilidade altíssimo com o que deva ter sido o corpo estampado no Sudário. Mesmo considerando que as reconstituições artístico-forenses sobre o corpo gravado na relíquia tragam pequenas variações, entre si (principalmente nos pés), o aspecto geral permite indicar uma imensa similaridade com a icônica pintura de Da Vinci – o que sugere fortemente que, não só o artista tinha conhecimento do lençol, como nutria grande interesse sobre o mesmo.

Se tanto Leonardo quanto Michelangelo – em razão de seus espíritos competitivos – buscavam se inteirar dos planos e obras do adversário, podemos considerar este último, após se deparar com tal temática sindônica, se valendo do primeiro para transferir a artimanha para suas obras (na Capela Sistina, por exemplo). Assim, com a mesma fórmula, Michelangelo poderia ter distribuído, aqui e ali, múltiplos volumes insinuantes de vários órgãos da anatomia humana. Uma descoberta incrível nesse sentido foi efetuada a partir de 1990 (ao longo de fases distintas) por quatro médicos – dois norte-americanos e dois brasileiros: o neurologista Frank Lynn Meshberger, o nefrologista Garabed Eknoyan, o cirurgião oncológico Gilson Barreto e o químico Marcelo Ganzarolli de Oliveira, respectivamente. Caso interconectarmos todos estes fatores, chega-se à conclusão lógica de que Michelangelo possa ter tido conhecimento do Sudário também por meio da caixa de surpresas de Leonardo.

Em sendo, mesmo, algo intencional da parte de Leonardo e Michelangelo, tal prática de ocultar referências em suas criações é um fato já bem considerado no meio acadêmico. Da Vinci, por exemplo, nos deixou estas palavras no “Tratado da Pintura” (1632). Dizia ele: “Não deveríamos desprezar quem olha atentamente para as manchas da parede, os carvões no fogo, as nuvens, a correnteza da água ou coisas similares que, se bem considerados, proporcionarão encontrar criações extraordinárias a despertar o espírito do pintor para novas e diversas composições: de batalhas, de animais e homens, paisagens, demônios e outras coisas fantásticas”.

Já para Michelangelo, isto tudo também poderia valer como um exercício de percepções ou de raciocínio. Um jogo com grande potencial de tornar qualquer obra mais rica e interessante – numa época onde dissecar corpos humanos era uma atividade muito arriscada; e cuja autorização, para fins científicos, Michelangelo conseguira negociar com a Igreja. No caso do Sudário, um discurso a respeito da superação da morte, da alquimia, da ressurreição, da desafiadora metamorfose onde a paixão vira regozijo e o fim se transforma em renascer. Um testemunho da Arte como instrumento de meditação sobre os mistérios da roda invisível da vida.

 

Prof. Átila Soares da Costa Filho

*Professor Átila Soares da Costa Filho é bacharel em Desenho Industrial e pós-graduado em Filosofia, Sociologia, História da Arte, Arqueologia, Patrimônio, História e Antropologia. Atualmente integra o Comitê Científico na “Fondazione Leonardo da Vinci” (Milão), na “Mona Lisa Foundation” (Zurique) e no projeto “L’invisibile nell’Arte” do “Comitato Nazionale per la Valorizzazione dei Beni Storici, Culturali e Ambientali” (Roma). 

Cf. https://professoratilasoares.weebly.com

Imagem de destaque: O rosto na Síndone e o de Cristo na obra de seguidor de Michelangelo. A perfeita correspondência da linha da gola com a da marca no tecido é impressionante: Pintura a partir de desenho original do mestre pode ser a chave para a revelação.