Para nós a filosofia consiste, fundamentalmente, em fazermo-nos uma série de perguntas e em procurar encontrar, se possível, a resposta. Neste sentido, a busca é o começo de algo. É o princípio de um caminho que nos leva a abrir os olhos em direção ao nosso interior e em direção ao nosso exterior; é uma espécie de iniciação no mundo do pensamento, da observação contínua.
A figura do filósofo que aqui defendemos é a de um buscador. E onde estará o final de toda esta busca? Não sei se há final. O que sei é que cada vez que encontramos algo que é válido para nós, por sua vez, isto ajuda-nos a continuarmos a perguntar-nos e continuarmos a procurar. Daí que o filósofo, tal como nós o entendemos, nunca será uma pessoa que diga que possui a verdade sobre as coisas. E como também é tradicional em nós, os filósofos acropolitanos, vamos abordar este tema baseando-nos num estudo comparado de filosofias e de filósofos do Oriente e do Ocidente.
Por que escolhemos o tema que hoje nos reúne? Porquê falar da Dignidade? A resposta é que num momento histórico onde há tanto conflito, tanta dor, tanto sofrimento, tanta desorientação em termos de fins e princípios… Num momento tão tecnológico, em que nos estamos a desumanizar, estamo-nos a enterrar debaixo de muitas cifras e da importância dos balanços, e da oferta, e da procura, e de melhorar o rendimento, e de ampliar os campos de exploração e de tantas outras coisas. Um momento no qual a educação é incapaz de formar seres humanos que possam dar resposta aos problemas que todos temos. Por isso queremos falar da dignidade; sem dogmas, sem preconceitos.
1 – A filosofia e os filósofos de todos os tempos consideraram que era uma das facetas mais importantes do ser humano. E permitir-me-ão que, brevemente, comece por aquilo que todos nos vão dizer que não é a dignidade. Embora utilizemos certos termos no vocabulário e certas palavras como falar de “os dignitários”, os dignitários do regime, por exemplo, no campo da política…, a dignidade não tem nada a ver com o que é externo a um ser humano. Não tem a ver com as honras, com o reconhecimento social dos outros, com ocupar uma posição mais ou menos privilegiada. Não tem nada a ver com nada disso. Teria antes a ver com a parte interna do ser humano. Seria bom recordar, por exemplo, que a palavra vem do latim dignus, que significa o valioso. Aquilo que realmente é valioso para um ser humano e que se encontraria no interior de cada um de nós: os valores humanos.
2 – Vamo-nos encontrar com grandes filósofos do Ocidente, representativos de diferentes épocas, como pode ser Platão, Pico della Mirandola e Kant, que têm uma série de elementos em comum quando falam da dignidade. Falam-nos da sabedoria, ou seja, de que há algo no ser humano que é capaz de estar a aprender continuamente. Algo que é capaz de ir mais além do lógico no sentido materialista da palavra; uns falam da razão, outros falam da verdadeira inteligência, mas todos outorgam aos seres humanos uma capacidade de nos tornarmos muito mais sábios do que somos e muito menos ignorantes. Todos falam de conhecimento, de procurarmos conhecermo-nos a nós mesmos; o que implica também o domínio sobre a parte mais inferior e instintiva do ser humano.
3 – Todos falam por sua vez da liberdade, a liberdade que temos quando somos capazes de dominar, de conhecer e de controlar essa parte inferior, muito relacionada com o mundo animal. E o saber usar essa grande capacidade que temos de escolha, saber usar a liberdade para nos melhorarmos, para tomar decisões adequadas, tem muito a ver com a dignidade.
4 – E por último, há um quarto elemento a ter em conta. Todos estes filósofos vão dizer-nos que a liberdade e a dignidade estão muito relacionadas com o desenvolvimento de poderes latentes nos seres humanos. Todos irão coincidir em que o ser humano tem uma série de forças interiores, de valores internos, de poderes latentes, de virtudes, e que procurar desenvolver isto outorga-nos dignidade.Aí encerrámos o ciclo. Começámos pelos valores e pela necessidade de ter mais conhecimento do que temos, pela necessidade de saber um pouco mais acerca de nós mesmos e acerca da vida, e o círculo completa-se ao pôr em prática o que vamos descobrindo. A aplicação do conhecimento torna-nos menos ignorantes e é o que nos faz desenvolver esses poderes latentes que, por sua vez, nos vão outorgar dignidade.

Diagrama clásico do Conhecimento. Creative Commons
A chave de tudo isto, como dissemos há pouco, não reside fora de nós, mas sim está dentro do ser humano.
Por isso gostamos de sublinhar que somos uma escola de filosofia com um marcado caráter humanista. Interessa-nos o ser humano e tudo o que diz respeito ao ser humano. E por isso mesmo pensamos que o problema atual do nosso mundo não é a ciência; os cientistas descobriram coisas muito interessantes e conseguiram que o nosso mundo e a nossa sociedade avancem muito numa série de campos. O problema é o uso que outros tipos de seres humanos estão a fazer desses avanços científicos. O problema atual não é a política; os políticos chegaram a acordos decisivos para melhorar a sociedade que eram impensáveis há alguns séculos porque estávamos muito atrasados a nível social. O problema é que depende dos seres humanos o cumprir ou não esses acordos, mas não é um problema de política. A psicologia avançou muitíssimo; a amostra está em que consumimos mais do que nunca, porque os grandes psicólogos estão ao serviço do sistema: através da publicidade perpetua a monstruosa cadeia de produzir e consumir. Mas o problema não é da psicologia, o problema é dos seres humanos. O que vamos dizer sobre a medicina? A medicina avançou de maneira incrível. O grande problema são os laboratórios farmacêuticos e a sua voracidade económica, claro. Segundo alguns investigadores, as indústrias farmacêuticas são especialistas em criar dependentes. Há estudos neste sentido que nos indicam que quando alguém tem uma doença, o mais normal é que a tenha para toda a vida e vai depender de uma série de medicamentos toda a vida. Os nossos medicamentos estão muito bem escolhidos e pensados para que sejamos adictos. Toda a vida seremos adictos a certos medicamentos porque seremos doentes crónicos e, portanto, consumidores fiéis. No entanto, temos uma certa carência de resultados porque não tratamos a causa, a raiz da doença, e conformamo-nos em minimizar os efeitos. Pelo que temos de dar-nos conta de que o problema é o ser humano. E o que pensa a filosofia do ser humano?
Bom, pensamos muitas coisas, mas vamos resumir. No mundo clássico havia uma máxima, um ensinamento que partilhavam todas as escolas de filosofia, que dizia algo como que o ser humano era uma espécie de mistério muito difícil de descobrir. Na verdade, o que é um ser humano? O que é em essência? O que é no mais profundo do seu ser? O que é aquilo que cada um de nós tem, que nos diferencia dos outros? O que é aquilo que nos faz pensar, meditar, refletir? O que é aquilo que talvez nos traz e nos leva da vida? O que é um ser humano? Possivelmente, na sua essência, seja um grande mistério. E nisso estavam todos de acordo.
Mas também estavam de acordo em que o ser humano podia melhorar, que não era um produto acabado dentro da evolução e dentro da vida, que não tínhamos chegado ao final de nada, mas que era um “ser humano”, ou seja, um ser com uma mente, e que continuamente podia estar a melhorar. Podia ser melhor do que era, e para isso havia uma condição: eles explicavam que a força interior, o desenvolvimento dos poderes latentes, alcançar a virtude, era o que fazia melhorar o ser humano. Se então, nos perguntarmos “como pode melhorar um ser humano?” aparece a dignidade muito relacionada com esta pergunta, porque dir-nos-iam que o desenvolvimento das nossas forças internas é o desenvolvimento das nossas dignidades. Não estamos a falar de qualquer coisa quando falamos de dignidade, mas desde o ponto de vista filosófico estamos a falar daquilo que pode converter-nos em melhores seres humanos. Voltemos a fazer-nos outra pergunta: quando falamos do ser humano, na verdade de que estamos a falar? O que somos? O que há dentro de nós? Ao longo da história do pensamento, muitas vezes se disse que o ser humano está composto de corpo e alma. Também se fala de corpo, alma e espírito. Noutros lugares do planeta explicam-no através de um sistema um pouco mais complexo, dividindo o ser humano em sete escalas de consciência, sete escalas de vibração. E as teorias mais modernas, na sequência do darwinismo, como já sabeis, dizem que só há um corpo, um corpo com um cérebro que evolui e nada mais. Queiramos aceitar a proposta que quisermos, há algo que a filosofia jamais negou: há uma espécie de luta dentro do ser humano. Há uma parte inferior, composta pelo nosso corpo físico, os seus instintos e necessidades biológicas; também entrariam nessa parte inferior as nossas paixões e os nossos desejos, todo o nosso mundo emocional. Até mesmo os nossos pensamentos egocêntricos e egoístas sobre os nossos interesses, as nossas apetências, aspirações e ambições de caráter pessoal. Mas, ao mesmo tempo, também há dentro de nós uma parte superior que nos põe em contato com os grandes mistérios do universo. Há uma parte superior que nos põe em contato com o elevado, o brilhante, o luminoso, aquilo que está um pouco fora do tempo, que é atemporal, que serve para qualquer época e para qualquer lugar. Uma parte superior que, como diria Platão, é alada, e anseia aproximar-se das coisas eternas e das coisas imortais. Todos coincidirão em que essas duas partes, mais cedo ou mais tarde, se queremos alcançar um pouco mais de conhecimento, se queremos saber um pouco mais sobre o que é liberdade, se queremos conhecer-nos a nós mesmos, se queremos desenvolver-nos como seres humanos, mais cedo ou mais tarde essas duas partes vão entrar em conflito, vão entrar em luta e, a partir daí, podemos desenvolver a nossa dignidade.

Manuscrito ilustrado da batalha do Kurukshetra, Mahabarata . Domínio Público
Uma velha epopeia da Índia, o Mahabharata (a Grande Guerra) fala dessa luta entre as duas partes que há nos seres humanos. Vai falar-nos sobre essa luta e vai fazê-lo fazer lindamente. E vai explicar como não podemos evitar esse conflito, não podemos evitar que a nossa parte superior entre em conflito com a nossa parte inferior: é inevitável. Vai explicar-nos o porquê, a necessidade desse combate interno: é precisamente a necessidade de descobrir e desenvolver a dignidade que todos temos dentro de nós. Para nos convertermos realmente em algo valioso (dignus) precisamos desse combate interior. Pensemos por um momento que os gregos falavam muito da areté, a areté era a excelência, chegar à excelência. Para os gregos, nos homens essa areté residia no valor, e nas mulheres residia na beleza. E sempre com a ideia presente de que tudo pode melhorar, pois como dizia Schiller, “o belo tem de tornar-se sublime”. Uma mulher bela tinha areté, mas a beleza não deveria ser apenas física: tinha de falar corretamente, saber expressar-se, saber caminhar com graça e harmonia, uma mulher bela podia acalmar a dor dos que sofrem, podia pôr paz e concórdia onde havia discórdia, com a sua mera presença. A mais humilde das mulheres podia alcançar a areté: a excelência (daí vem o conceito de aristocracia que, como podemos comprovar, nada tem a ver com o volume da conta corrente nos bancos, mas falamos sim de uma aristocracia do espírito). No caso do varão, a areté residia no valor. Mas não só valor para enfrentar os problemas da vida, para lutar contra a adversidade. Também é preciso ser valente para viver virtuosamente, para dizer a alguém “enganei-me, sinto muito, peço-te perdão”. Há que ter muito valor para lutar contra si mesmo, contra a nossa parte obscura. É preciso ser muito valente para reconhecer que, no final, tudo é um mistério. O grande Mistério da Vida. Por vezes alguém me pergunta pela morte, a nível filosófico; mas descobrir o enigma da morte é uma questão de tempo. Mais cedo ou mais tarde todos vamos sabê-lo. Mas a morte faz parte da vida, e o grande mistério é a vida. A vida… o movimento… o que é tudo isto? O que é um Universo? Mil milhões de galáxias, cada galáxia com mil milhões de sóis e planetas, todos em movimento, como numa dança cósmica sempre ao redor de um centro. De que estamos a falar? O que é isto? Além disso, porquê tão grande? Para quê? O grande problema é a Vida. Por detrás dos grandes enigmas da Vida está o Mistério, e a filosofia sempre ensinou que podemos aproximar-nos desse Mistério através do conhecimento de nós mesmos. E a areté pode ajudar-nos neste sentido, porque areté vem da palavra Ares, e Ares era o deus da guerra interior. Vemos que já com esta palavra os gregos estavam a ensinar que essa excelência, esse extrair o melhor de dentro dos seres humanos, não vem de caras; isso vem na sequência de um esforço, de uma luta, muitas vezes titânica, entre a nossa parte superior e a nossa parte inferior, e isso explica por que temos de viver, por que temos de agir, por que a vida nos traz situações nas quais temos de escolher, por que temos problemas, porquê…? Era a pergunta do nosso herói no Bhagavad Gita, no Mahabharata: por que tenho de lutar? Essa é a questão porque eu não quero, eu não quero lutar. Mas, claro, demo-nos conta de que dizer que não quero lutar é como dizer: “eu não quero viver”. Porque estar encarnado, estar aqui neste lado da vida, é ter de lutar todos os dias, a nossa parte superior contra a inferior; as nossas virtudes contra os nossos defeitos; as nossas tentações, as nossas debilidades, contra as nossas convicções. Todos os dias, à medida que tenhamos mais consciência de seres humanos, mais teremos de lutar. Porque o problema é ter consciência, e aí estaria explicado o porquê da ação. Não apenas agir para sermos melhores. Também agir para encontrar o sentido da vida. Porque os velhos filósofos dir-nos-iam que o sentido da vida – o sentido da nossa vida – não se encontra sem esforço, não se encontra a andar pela rua num belo dia e de repente tropeçamos com o nosso sentido da vida e olha! Nunca tínhamos procurado por ele e de repente encontramo-lo por acaso! Parece ser que não é tão simples assim. Trata-se de nos esforçarmos, de agir, de ir ao encontro desse conflito e lutar contra a nossa parte inferior. Encontrar o sentido da vida talvez seja o mais importante que pode conseguir um ser humano, ou seja, dar sentido ao porquê de estarmos aqui. Por que nos acontece o que acontece connosco? Que sentido tem? Para onde vai tudo o que se move? Para onde vai o universo, a vida e nós com ela? Já sabemos que estamos num mundo em eterno movimento, onde não há nada é que seja estático; neste plano da manifestação nada está quieto, tudo se move. Tudo marcha em direção a algum lugar e certamente por uma razão, por uma causa: esse é o Sentido da Vida.
Também nos dirão os antigos filósofos que o ser humano que consegue encontrar o sentido da sua vida está a um passo da felicidade, porque isto é o que realmente nos faz felizes: encontrar o sentido da vida. Para isso há que lutar, como vimos, e há que lutar bem. Como podemos lutar bem? Esses filósofos concordam que todos nós temos uma ferramenta fundamental: a mente. Gosto muito de etimologia: a palavra anthropos, em grego, é aplicada ao ser humano, e vem a significar: “Aquele que pode olhar em direção ao alto, contemplar e pensar, refletir sobre isso que está a contemplar”. Isso é um ser humano, anthropos. Isso significa a palavra humano: o que tem mente. E essa mente, temos de saber usá-la. Há um velho tratado tibetano que chegou até nós no Ocidente através de Helena Blavatsky: A Voz do Silêncio. É possivelmente o melhor que foi escrito sobre a mente, o seu desenvolvimento, o seu domínio. Fala-nos das suas potencialidades e dos seus perigos. Blavatsky, grande viajante, grande filósofa, valente mulher que enfrentou o seu tempo, a sua sociedade, o seu mundo do século XIX, legou-nos o património da sua obra que mudou a visão da filosofia. Essa mulher trouxe para o Ocidente A Voz do Silêncio, um livro tibetano muito antigo. Nele fala-nos da importância da mente em termos de concentração, introspeção e reflexão. Explica-nos como isso é necessário para o desenvolvimento dos nossos poderes internos, das nossas forças internas e, portanto, da nossa dignidade. Explica-nos como a mente pode ajudar-nos se encontrarmos a maneira de falar com o nosso ser interno, de dialogar com nós mesmos. Trata-se de saber realmente os motivos do que fazemos, reconhecer a natureza dos nossos pensamentos, experimentar com as nossas emoções, é um caminho que leva à realização interna. Nesse caminho de melhoramento precisamos da mente. Precisamos dela para dialogar com nós mesmos, para dialogar e nos relacionarmos com os outros, para resolver dúvidas e problemas, para evitar mal-entendidos, para solucionar conflitos. Uma mente treinada pode fazer tudo isto. Já agora, há algo anedótico, se quiserem. Sabeis quem era viciado n’A Voz do Silêncio? Elvis Presley.

Elvis Presley, Rock da Prisão. Dominio Público
Sabemos disso pela biografia que escreveu a sua esposa Priscila. Lia-o todas as noites e refletia muito sobre ele. Deu ao seu grupo o nome de A Voz, em honra à Voz do Silêncio, e às vezes parava os ensaios para ler alguns trechos.
Esse magnífico texto tibetano d’A Voz do Silêncio explica-nos algumas orientações para que possamos encontrar essa voz interior, a voz do silêncio, que é um pouco a voz da nossa consciência e é a que nos permite manter esse diálogo tão importante com a nossa parte interna, com os outros e com Deus, com Deus! Hoje temos vergonha de falar de Deus, mas aqui haveria que esclarecer o conceito filosófico de Deus. Não é um conceito religioso, não está sujeito às épocas nem às modas, nem à pressão social. É um conceito muito abstrato, mas poderíamos relacioná-lo com uma espécie de Mente Cósmica ordenadora do Universo, e graças a essa Mente existe o Cosmos a funcionar como um Todo ordenado, organizado e sujeito a uma série de Leis Naturais que afetam tanto o maior quanto o menor. Por isso necessitamos conhecer e dominar a nossa pequena mente: para nos conectarmos com esse Mistério, ao que os povos sempre chamaram Deus, e nós (filosoficamente falando) relacionamos com a Mente do Universo. E também nesse livro previne-nos dos grandes perigos que dificultam o desenvolvimento da dignidade humana. Os grandes perigos são: o elogio e o medo. Por outras palavras, o ser humano pode ser comprado com dinheiro, com ouro, com cargos, com honras; a própria vida pode apresentar-nos um panorama brilhante, magnífico, belo, mas cuidado! Com a condição de que se venda e renuncie à sua dignidade se quiser viver nesse paraíso. O homem também pode ser assustado, coagido pelo medo, e então aí encontramo-nos com um ser humano que pode ser manejado e manipulado. Estes são os grandes perigos que atentam contra a dignidade humana. Cuidado para não colocar um preço ao que, como dizia Kant, não tem nenhum preço. A dignidade de um ser humano é uma daquelas poucas coisas que não podem ser compradas, que não tem preço porque não tem equivalente, porque não há nada que possa corresponder ao valioso que é – em cada um de nós – a dignidade.
Também todos os filósofos nos preveniram sobre algo que o Buda mais tarde desenvolveu; preveniram-nos sobre as crises e a dor. Disseram-nos que esse desenvolvimento das nossas potências internas, esse desenvolvimento da nossa dignidade, de alguma forma tem de ser posto à prova pelos problemas da vida. O que chamamos crise. As crises, como indica a sua palavra, são momentos de mudança; crise não significa nada de mau. Crise só significa transição, mudança, um momento de crise é um momento de mudança. Nesta última crise nesta parte do mundo, houve uma mudança na forma de viver, de trabalhar, de pensar… uma mudança. E as mudanças fazem parte da natureza da vida. Quando alguém deixa de ser criança e passa a ser adolescente, há um período de crise, de mudança. Quando alguém deixa de ser adolescente e se converte em adulto há um período de crise, de mudança. Mesmo ao nível mais inferior, o corpo físico também reage a esses momentos de crise, de mudança. Mas o problema não é a crise, o problema é a dor.
Porque todos esses momentos de crise, de mudança, produzem dor. E temos de aprender a lidar com a dor, principalmente nos momentos de crise, porque é outra das condições necessárias, segundo a filosofia, para desenvolver a dignidade e os poderes latentes. É justamente nesses momentos de crise, nesses momentos em que a vida nos traz verdadeira dor, onde se vê realmente, cada um de nós, de que material está feito. Se for um bom material, sempre sairemos das crises, saberemos superar os momentos de dor; depois de uma queda virá um pôr-se de pé, e se cairmos mil vezes levantar-nos-emos mil e uma. Isto é necessário para que a nossa dignidade ganhe brilho. Foi muito bem explicado por Sidharta Gautama, que passou por momentos de crises impressionantes e nos ensinou muitas coisas sobre isso.

Sidharta Gautama, Museu Sarnath (Índia). Creative Commons
Talvez seja o que mais se aprofundou no que agora estamos a comentar: na natureza da dor, as causas da dor, como pode ser eliminada a dor, qual é o caminho que leva à eliminação da dor. A crua realidade é que não podemos afirmar que temos uma série de características positivas a não ser que passemos por momentos de crise pessoal e comprovemos que realmente temos essas características positivas. O problema é que não podemos comprovar quando tudo está a ir bem; vamos ter de comprová-lo quando as coisas não correrem tão bem para nós. E aí veremos quem é cada um. Como se diz em Espanha, nos momentos realmente maus veremos que forças internas temos e quem são verdadeiramente os nossos amigos, como cada um de nós reage e quem permanece ao nosso lado. Também comprovaremos tudo o que era decoração inútil dentro e ao nosso redor: fumo, aparência e conveniência.
Não quero terminar sem mencionar a filosofia chinesa, e especificamente Confúcio, que viveu por volta do século VI a.C. Filósofo que foi muito amado no princípio na sua própria terra, e depois perseguido e rejeitado. Confúcio dizia, entre outras coisas, que se dignificarmos o ser humano no nível individual, estamos a dignificar a sociedade. E seja Confúcio, seja o Buda, sejam os velhos livros orientais dos quais falámos, seja Platão, ou Kant, ou Pico…, todos vão coincidir em que os seres humanos têm uma série de compromissos relativos à sociedade. Que não podemos estar desligados do meio ambiente, não nos podemos evadir dos problemas sociais, não nos podemos evadir do que nos rodeia. Não podemos e não devemos. Estamos altamente relacionados com o nosso meio ambiente e temos a responsabilidade moral de fazer algo pelos outros. Kant dizia algo que é impressionante em termos de dignidade humana. Dizia que se tratarmos outro ser humano de uma forma e maneira que lhe tiramos a dignidade a esse outro ser humano, se o tratarmos de forma indigna, estamos a atentar contra a dignidade comum de toda a humanidade, e agir assim também nos tira a nós mesmos a nossa dignidade. E o contrário, obviamente: se tratarmos os outros de uma forma que os ajuda a promover e desenvolver a sua dignidade, ao mesmo tempo, não nos estamos apenas a ajudar a ter mais força, mas também estamos a ajudar toda a humanidade.

Templo de Apolo em Delfos, Grécia. Creative Commons
O Templo de Apolo em Delfos era um lugar de reunião para o mundo clássico, um ponto de peregrinação para todos os povos gregos. Em Delfos estavam gravadas uma série de máximas: a mais conhecida – certamente a todos nos soa familiar – era “Conhece-te a ti mesmo”; mas havia outras, por exemplo, “Nada em demasia”, e havia uma que era o seguinte: “Chegar a ser digno”. Todos aqueles que acudiam a consultar o oráculo de Apolo, a caminho dessa espécie de santuário, iam vendo as máximas que os lembravam da condição humana, que os lembravam do destino do ser humano na terra; que lhes lembrava o mais elevado, o mais brilhante, o mais valioso (a areté que cada um de nós tinha de alcançar). “Chegar a ser digno”, ou seja, trata de ser mais sábio do que és, trata de conhecer-te e dominar-te muito mais do que te dominas; esse esforço outorgar-te-á verdadeira liberdade, e se és capaz de te libertar do jugo da parte inferior, essa liberdade ajudar-te-á a escolher bem as ações que nos permitem fortalecer-nos e desenvolver a nossa parte interna, os nossos poderes latentes, os nossos valores internos. Temos, pois, de lutar, dia após dia, contra essa parte inferior em nós mesmos; temos de saber superar os momentos de crise, os momentos de dúvida, momentos de debilidade. E aprendendo a falar connosco, a escutar essa voz interna da qual falámos, a Voz do Silêncio, talvez pudéssemos chegar a ser um pouco mais dignos, como dizia a frase gravada em Delfos.
Carlos Adelantado
Presidente Internacional da Nova Acrópole
Publicado na Biblioteca Nova Acrópole em 15-11-2023
Imagem de destaque: O cilindro de Ciro, uma das primeiras declarações conhecidas dos direitos humanos. Creative Commons