Evidentemente, referir-se a “tempo perdido” não é algo que nos permita fazer uma exposição científica detalhada, ou que nos permita oferecer muitos dados concretos, tal e como agora se usa. Há que estabelecer a diferença, e penso enfocar o tema com singeleza, como se me encontrasse naquelas classes mais reduzidas de discípulos. E como às vezes é difícil falar simplesmente, falar desde o coração, não deveríamos medir tanto os números que devem ser lembrados e, em vez disso, deixar correr um pouco mais essa inspiração interna que todos levamos dentro.
Penso que falar do “tempo perdido” é referir-se a um tema que diz respeito, de maneira direta à nossa filosofia prática. Como filósofos, como seres ansiosos de saber um pouco mais, interessa-nos descobrir o valor que se encontra dentro de todas as coisas.
Indubitavelmente, o tempo assume um valor muito importante e é sobre isso que devemos falar. Como filósofos não estamos apenas interessados em referirmo-nos aos valores que encerram as coisas, senão que queremos recuperar esses valores. Então, também queremos recuperar esse “tempo” que singelamente sabemos e sentimos que temos perdido…
Falar do tempo, do tempo perdido, do que ficou para trás – isto que se confunde com memória, com as recordações – é um pouco ir contra a corrente, neste momento em que tudo o que é referente à recordação, à memória, à história, está tão sobradamente posto em estado de crítica.
Hoje tem-se suscitado uma grande quantidade de problemas ao redor do tempo, ao redor da história. Encontramo-nos, cada vez com maior frequência, com uma desmistificação da história. Pretende-se – de uma forma ou de outra – distanciarmo-nos dos tempos passados, fazer-nos ver esses tempos passados como maus. Essa atitude negativa é frequentemente encontrada nos nossos dias.
Mas os problemas não acabam aqui; existe algo como um desprezo por todas as experiências passadas, por tudo o que foi deixado atrás de nós; é certo que se – como afirmam os antigos filósofos, e os novos também – se estamos todos crescendo e evolucionando, por lógica, as experiências que ficam para trás de nós, são aquelas coisas que nos ajudaram a crescer: erros, equívocos, acertos também, desde logo, mas em geral vamo-nos encontrar com aquelas coisas que nos tocaram mais fundo, que nos doeram mais fundo. Incita-se de alguma maneira a despreciar tudo, e há além disso, uma ansiedade pela burla e pelo desprezo do conhecimento.
Geralmente enfoca-se o mundo passado com uma atitude mais ou menos marcada de sarcasmo. Assim, considera-se que todos os homens que viveram antes, têm defeitos terríveis e cometeram erros terríveis, dos quais nós estamos hoje, “a salvo”. Assim, também, se consideramos o tempo da História, seguimos encontrando mais problemas, estes são os que nos tocam mais de perto.
O presente, o futuro, sempre nos mostram como melhores do que o passado, e perguntamo-nos a respeito: este futuro e este presente que esperamos devem ser melhores, em que se apoiam para serem bons, para serem firmes? Onde se assentam? Com o quê comparamos o presente para saber o que é melhor? Forçosamente com o passado, e se quisermos ser sinceros com nós mesmos, daremos conta de que, nem todo o tempo passado foi melhor, nem tão pouco foi pior; nem o presente é melhor por força do que qualquer outra coisa, nem o futuro nos depara glórias ininterruptas.
Quando analisamos tudo isso, quando olhamos para tudo, mesmo que seja brevemente, comprovamos que efetivamente levamos detrás de nós, uma grande quantidade de tempo perdido. Para uns, este tempo foi perdido porque não temos sabido aproveitá-lo; para outros, é um tempo que oxalá, não tivessem vivido, porque lhes trouxe problemas, mas não têm sabido assimilar a experiência.
E como filósofos, prefiro inclinar-me para esta outra versão: o tempo que temos perdido, sim, mas é porque não temos sabido aproveitar; prefiro apresentar essa outra versão, segundo a qual o passado de cada um de nós, o passado em geral que chamamos de história, apresenta-se diante dos nossos olhos, da maneira como os romanos o concebiam: como “mestres da vida”, com motores que nos impulsionam a seguir caminhando, e a seguir atuando. Prefiro ver esse tempo que temos deixado para trás, como uma acumulação válida de experiências que devíamos ter sempre ao alcance da mão, como se fosse um guia para todos nós, para aprender a viver. Por isso diziam os romanos precisamente: “A História é a Mestra da Vida”.
Esta é a versão que hoje prefiro que se tome nesta conversa, porque, perguntemo-nos sinceramente, um homem sem passado, o que fará no presente? O que seria de nós se não tivéssemos um passado mais ou menos consciente? Seríamos seres humanos sem memória, perdidos…. Acordaríamos todas as manhãs tentando aprender aquelas coisas que se supõem termos aprendido ontem e anteontem, para recomeçar todos os dias, outra vez, desde o mesmo ponto. Assim também, um povo sem a sua história, como seria na atualidade? Como explicariam a sua existência, as suas ideias, as suas ambições, o seu futuro? Necessitam deste passado que, como muitas vezes nos diz o professor Livraga, não é um peso, é um pedestal, algo onde podermo-nos apoiar.
Este é o valor que devemos dar ao tempo, e quando falamos do tempo perdido, vamo-nos referir àquele passado, que como homens não soubemos aproveitar, aquela história que, como povos, não sofremos faz mil anos.
E vamos fazer uma pequena análise que me ocorre agora mesmo; vamos ver como se manifesta nos povos, como nos homens, este tempo desaproveitado que se esfuma e se vai. E gostaria de falar um pouco dos seres humanos, por aquilo que ninguém nos quer mais a nós próprios, que nós próprios.
Um homem que tem perdido o tempo, encontra-se geralmente como um homem angustiado perante a vida, com perguntas que o martelam por dentro: Quem sou? De onde venho? Para onde vou? O que posso fazer no mundo? Em que posso trabalhar ou estudar? Como posso ser mais útil? Como posso orientar estes anos de vida que me restam pela frente?
Geralmente, aquele que perdeu o seu tempo, aquele que o negligenciou, tem uma enorme angústia quando enfoca a vida que se lhe apresenta por diante. E há outra angústia mais: é a dos sentimentos, porque geralmente não sabe o que quer, tão pouco sabe se quer exatamente, a alguém como pessoa; é incapaz de reconhecer quando o querem de verdade. E diante dessa incapacidade de situar-se no mundo dos sentimentos, e diante da importância que os mesmos têm para nós, o sentimento torna-se cada vez maior.
O homem que perdeu o seu tempo tem muito pouca memória, é muito fácil reconhecê-lo, e não estou a referir-me agora à memória do tipo “enciclopédia”, que geralmente nos é exigida; tem pouca memória para coisas importantes, não quer recordá-las, a sua consciência geralmente dispersa-se. Custa-lhe muitíssimo fixar-se num trabalho, numa ideia, tem enormes dificuldades para concentrar-se, porque está acostumado que as coisas lhe escapam por entre os dedos.
O homem que perdeu o seu tempo apresenta-se-nos com pouca capacidade de ação, e este é um mal infelizmente tão generalizado que me permitiria deduzir, sem ser demasiado rigorosa, que todos temos perdido demasiado tempo, temos pouca capacidade de ação.
Costumo estar muito em contacto com os jovens, com pessoas com muitas aspirações, com muitos sonhos, e deparo-me com este típico problema: por um lado, com o que se pode fazer, por outro lado, o que realmente se pode fazer.
Tenho observado que na hora de atuar, a sonolência ocorre com frequência; é como um cansaço interior, um cansaço mais psicológico do que biológico, é uma lentidão que não nos permite fazer as coisas, e é também uma total falta de confiança nas coisas que podemos fazer, é como sentir-se “porque o vou fazer, se o que faço é igual e não serve para nada”. E nesta situação nos encontramos, com este cansaço a que nos referíamos: abulia, sono interior. Não se notam os olhos vivos, não há olhares ativos, mas um grande peso.
O homem que perdeu o seu tempo, encontra-se muito preso, quando se trata de tomar grandes decisões, não sabe como fazê-lo, está terrivelmente assustado com qualquer compromisso, qualquer promessa formal, qualquer coisa que exija algo distinto da sua parte. Quando se decide, encontra-se ante uma verdadeira tortura porque vê as decisões como algo tão tremendo, tão definitivo, tão absoluto, que pensa que a sua vida está em jogo. E, claro está faltando esse pedestal do tempo, é muito difícil tomar decisões e, sobretudo, é muito difícil sentir-se tomando determinações, sem muito risco de nos equivocarmos. Por isto faltam decisões, ninguém quer empenhar a palavra “de verdade”; a palavra empenha-se todos os dias, muitas vezes ao dia. As palavras mais comuns, agora são: “Garanto-te, prometo-te, juro-te que é a verdade, digo-te acredita, não vais duvidar de mim…”, não obstante vamos colocar aqui muitos pontos suspensivos. Uma coisa é a maneira de falar, e outra coisa é tudo o que colocamos em jogo de verdade, quando a alma está nas nossas palavras – se é que colocamos a alma nas nossas palavras.
Outra das angústias do nosso homem fá-lo perguntar-se: Vim de algum lugar, vou para algum lugar? O que me espera? Estarei desperto? Darei conta ou não me darei conta? Seguirei sendo eu ou serei outra coisa? Sofrerei, não sofrerei? O que está por trás da vida? A morte é dolorosa?
Assim, há uma angústia diante da morte, sobretudo quando não temos sabido aceitar o tempo que nos foi concedido.
Em geral, se tivéssemos que resumir essas características, falaríamos de uma grande falta de confiança em si mesmo, de encontrarmo-nos com seres humanos que não têm fé no que podem fazer; que não fazem grandes coisas, precisamente porque se sentem incapazes de realizá-las.
E vamos falar um pouco dos seres humanos e dos povos que haviam perdido o tempo. Reconheço que não sou uma especialista em sociopolítica, e que falar dos povos e da sua história supõe-me um esforço singelo, de deixar sair o que penso ou sinto. Penso que com os povos deve acontecer o mesmo com os homens, só que em outras proporções. Os povos que perderam o seu tempo são, indubitavelmente, aqueles que tratam de livrar-se da sua história, deixá-la atrás, esquecê-la. São estes povos donde aparecem com cada vez mais assiduidade, uma enorme controvérsia de dados.
Hoje em dia, ocorre que na exposição dos acontecimentos passados, há uma infinidade de versões diferentes, que asseguram a pés juntos que têm a verdade absoluta sobre uma determinada questão. E nós que estamos no meio, pensamos que, se todos estes “historiadores” não concordam entre si, o que podemos nós pensar a respeito? Com qual das versões vamos ficar? Assim, encontramos uma crescente falta de ecletismo para expor os feitos passados.
Os feitos passados são expostos com engano, com desprezo, perdeu-se o sentido do “mistério” do histórico… Agora, o passado da humanidade não é analisado historicamente, mas “criticamente”, e eu volto a perguntar-me, em que fundamentamos o critério crítico, se ninguém concorda com o que realmente tenha sucedido.
Vemos nos povos que perderam o seu tempo, uma grande falta de definição; ao não haver apoio, ao não haver projeção, é difícil definir-se, trata-se de se dar bem com todos, adotando-se uma postura aquosa, intermédia. E na ânsia de parecer bem para todos, acabamos por ficar mal ante todos, porque ninguém está satisfeito. Esse descontentamento geral é produzido porque não há uma única coisa que se diga com claridade, e porque na hora das verdades, encontramo-nos ante as mesmas perguntas: “Bom, mas o que é isto? O que significa? Como devo interpretá-lo?”
Encontramo-nos com povos em “crise” e quero realçar mais uma vez, que o sentido em que quero expressar esta palavra, é o que lhe outorgavam os antigos gregos: o sentido de “mudança”. Assim, esses povos que perderam tempo, mudam constantemente. Têm que mudar porque esta mudança justifica algo, justifica um movimento; ocorre que há que demonstrar que se faz algo, e como não se sabe muito bem o que tem que se fazer, pois muda-se e muda-se… E aqui estamos, também nós, no meio da mudança; hoje uma coisa, amanhã outra, a de ontem já não serve, mas depois de amanhã pode voltar a servir…
Nesta mudança desnecessária faltam definições, como nos demonstra a própria história, pois conduz estes povos a frequentes tiranias, mas a uma “tirania” com o sentido que os antigos gregos davam a essa palavra. Sem aproveitar-se do governo, sem aproveitar-se do poder, não conduzir, não educar os povos, senão explorar esta situação em benefício daqueles que, momentaneamente, detêm o poder.
Estes povos, que perderam o tempo, geralmente perdem outra coisa muito interessante que agora parece fundamental: o prestígio internacional. Agora há que guardar o “prestígio internacional”, mas isso também se perde quando se desperdiça o tempo, porque visto de fora, parece muito mal diante daquele “espírito crítico”, que impera em todas as coisas. Evidentemente, muitas vezes, perde-se o prestígio, mas como ninguém se atreve a dizer nada, ocorre que se elogiam coisas que não existem e que são falsas…
Observando os povos que se encontram nesta situação, vemos que apresentam poucos factos concretos; as suas obras reduzem-se mais à destruição do que à construção. Trata-se de destruir de outro ponto de vista, seja adotando uma clara postura aceite no mundo atual, à sombra do “terrorismo”, seja adotando essa outra postura tão especial que nos faz dizer que tudo o que foi feito, por aqueles que nos precederam, está muito mal feito, e que tem de ser destruído.
Se tivéssemos que apontar mais uma característica destes povos, falaríamos de uma “falta de destino”, outra palavra que não interessa agora. Falta de destino, para onde vamos? O que queremos fazer? O que esperamos da vida? O que esperamos no tempo? O que queremos realizar? Que queremos construir? Que recordação queremos deixar para as outras gerações? Nota-se uma falta de destino e diz-se: “vive-se hoje, amanhã será amanhã, haverá outros homens que se encarregarão do amanhã…”
Como podemos ver, são muitos os problemas que nos afligem como seres humanos, como povos, se nos pomos a calcular o tempo que temos perdido, qual é o valor que podemos adjudicar ao tempo para nos convencermos de que, efetivamente, não temos a verdade?
Embora eu não seja especialista em definições, diríamos que o tempo é uma direção que nos permite medir, que nos permite assinalar a nossa própria evolução, a nossa velhice espiritual, o nosso assentamento de experiências. O tempo é precisamente o que nos mostra o que temos conseguido e como o conseguimos. E se perdemos tempo, se perdemos a possibilidade de nos conhecermos do ponto de vista da nossa própria evolução, evidentemente justifica-se saber em quê.
Suponhamos que perdemos o tempo e queremos saber se é recuperável; vejamos porquê. Hoje voltou a ser moda falar do tempo, como desta direção extraordinária que nos permite não nos ancorar no presente, mas lançar-nos para trás ou para frente. O tempo é móvel e podemos viajar nele, ou o tempo não é móvel e podemos ser nós que nos movemos atrás dele. Fala-se cada vez mais em retroceder no tempo ou avançar nesta dimensão. O primeiro é possível fazer, por que não? A nossa imaginação, o nosso poder mental é muito mais rico do que alcançamos suspeitar. Avançar no tempo é possível, mas penso que retroceder para o recuperar é muito mais fácil. O de trás já está escrito, já o temos vivido, é nosso e pertence-nos.
Às vezes perguntamo-nos o que a vida nos pode tirar… Já nos perguntámos alguma vez, se é possível arrancarmo-nos as memórias, arrancarmo-nos esse tempo que temos vivido… Não, não nos tiram isso, isso é a nossa bagagem, a nossa memória. É nossa sob vários pontos de vista: daquelas memórias concretas, claras e definidas que temos, daquelas que nos permitem contar o que fizemos ontem, na semana passada, no mês anterior, no ano anterior, ou há vários anos, quando éramos pequenos, etc. E depois há aquela outra forma tão subtil, tão impalpável que alguns filósofos como Platão, preferem chamar de “reminiscência”. Ou seja, é a contribuição que se levanta dentro de nós, que não tem formas concretas, mas nos permite recordar coisas, sentir coisas, viver coisas como próprias, como nossas.
Portanto, podemos dizer que não é difícil recuperar o tempo perdido, consiste apenas em trazer antigas experiências de volta à consciência e ao presente, aqui e agora. Não há tempo perdido; no máximo, há coisas que temos esquecidas e que não podemos recuperar. É por isso que quero insistir que, efetivamente, podemos sair em busca do tempo perdido, podemos recuperá-lo… Penso que podemos deixar de ser doentes e órfãos da História, sem pai, sem mãe, sem antecedentes, sem ninguém que tenha vivido antes de nós, que valha a pena, sem ninguém que jamais tenha deixado uma única experiência válida. Penso que podemos sair em busca do passado para recuperar a nossa verdadeira natureza humana, da qual nos temos afastado; e que podemos viajar para trás, tanto como homens, se nos quisermos considerar individualmente, ou como humanidade, se nos quisermos considerar em conjunto.
É uma longa aventura, mas é uma interessante aventura. Creio que todos recordamos essas histórias que nos emocionaram tanto sobre um pequeno que, tendo perdido o seu lar, teve que atravessar quilómetros e quilómetros em busca da sua mãe, em busca dos seus familiares, em busca daquilo que sentia ser seu, e que sabia que estava em alguma parte. Mas do querer à chegada, restava muito tempo… Assim, há que fazer uma viagem atrás, ao que temos esquecido, até aos tempos perdidos, mas não perdidos definitivamente…
Quando, na antiguidade, se falava daquelas famosas Escolas Iniciáticas que possibilitavam ao ser humano entrar em contato com verdades superiores, eram-lhes impostas múltiplas provas, como efetuar trajetos cheios de armadilhas e dificuldades, atravessar por situações limites, em que havia de pôr em jogo toda a inteligência, todos os sentimentos, toda a vontade. Tinham que realizar uma viagem… uma viagem para recuperar o que há dentro do homem, e algo assim, é o que estamos propondo hoje desde esta tribuna da Nova Acrópole.
Suponhamos que queremos viajar como seres humanos em busca do nosso, neste caso haveria que pôr-se a repassar todos os sonhos que tivemos: vamos recuperá-los! Quantas coisas temos sonhado? Quantas coisas temos ilusionado? De que parte do nosso ser brotaram essas ilusões, esses impulsos, esses anseios? Quais eram os nossos mais queridos, os nossos melhores sonhos, os mais nobres, os maiores? Recuperemo-los! Não há que sentir vergonha por isso. Temos que os extrair outra vez, vivê-los outra vez, resolver lutar por eles outra vez.
E, claro, é prudente repassar todos os medos que tivemos: de quantas coisas temos tido medo? Por que temos medo deles? Repassemos um pouco, afrontemos estas coisas com uma nova personalidade, mais firme, mais segura; sejamos conscientes de todo o tempo que efetivamente, nos saiu das mãos. Muitos, muitíssimos, com idas e vindas, com a cessação de viajar, recomeçar, voltar a caminhar…
E como se recupera esse tempo perdido? Propondo-se agora atos claros, definidos e pondo toda a vontade, deve ser eliminada a indecisão. Hoje estamos indecisos porque há medo de arriscar coisas, medo de arriscar dinheiro, medo de arriscar tempo, medo de arriscar prestígio, etc. Mas entre as muitas coisas que podemos arriscar, talvez a maior que estamos a arriscar seja o nosso próprio tempo.
Eliminar as indecisões, diluir de uma vez por todas as dívidas através da ação, que é a melhor maneira de ganhar tempo; atuando temo-nos equivocado um montão de vezes, mas podemos corrigir porque nos acostumamos à ação, e porque tornamos a empreender uma nova ação. Não atuando é possível que não nos equivoquemos, mas também é seguro que não vamos lograr absolutamente nada, porque tão pouco, nada fazemos.
Penso que teríamos de recriar o otimismo, um sentido real do otimismo, um pouco de fé, um pouco de felicidade. Esta é a melhor maneira de ganhar tempo, e esse tempo recupera-se na medida em que descobrimos, até que ponto as nossas próprias ações são válidas para melhorar tudo o que hoje achamos mau, pobre, feio, injusto, desajeitado. É muito fácil criticar o mundo, e muito mais ainda, sentar-se num canto e dizer: “Para que vou acreditar em qualquer coisa, se o que posso fazer é tão insignificante, tão pequeno? Quem vai apreciar, quem vai notar?” Mas comecemos, senhores! Comecemos, façamos algo pequeno ou algo minúsculo, mas façamos algo! E se descobrimos que isso que fazemos tem valor, renascerá o otimismo dentro de nós. E então, o tempo valorizar-se-á completamente de outra forma.
Há um poema antigo que todos conhecemos e que em inglês começa por dizer: “If”, se eu pudesse” …se eu houvesse…” E se pudéssemos eliminar esse “Se…” das nossas vidas? Se em vez de olhar para um determinado momento e dizer: “Oh, o que houvesse podido fazer…”, “o que houvesse sido de mim, se as coisas houvessem sido diferentes…” Se esse “Se” desaparecesse do nosso vocabulário, começaríamos a amar o tempo presente. E, efetivamente, sonharíamos com tudo o que não fomos capazes de realizar, mas teríamos a certeza de que há tempo nas nossas mãos para realizá-lo.
De um ponto de vista geral, penso que, como humanidade, como um conjunto de seres humanos afetados pela mesma maneira de ser, de viver, de crescer, deveríamos dar-nos conta que há uma História, um longo passado, um conjunto de antigas civilizações que esperam por nós.
Reconheço que é difícil recorrer à História porque hoje, quando não é escrita num festejo, descreve-se uma história “crítica”, ou uma história “desmistificante”. Mas, não obstante, penso que no meio de tanto emaranhado, algo vamos poder encontrar. E, acima de tudo, temos que nos voltar para as antigas civilizações, advertindo que não nos vão dar como única lição, os problemas económicos que tiveram e como conseguiram prosperar desse ponto de vista.
Existe, todavia, uma grande quantidade de mensagens morais, religiosas, artísticas e científicas que seria absurdo desconsiderar. Há uma grande quantidade de material que é nosso, que é para nós, que é nosso património. Hoje assusta-nos quando, ao descobrirmos elementos científicos, andando para trás, encontramos que já havia povos que manejavam estas coisas que nos parecem portentosas.
Encontramo-nos, pois, com muitos antigos povos que nos ensinam grandes coisas do ponto de vista moral; velhos ensinamentos, preceitos, escritos, etc. que, todavia, nos fazem estremecer.
Creio recomendável recolher aqueles elementos que geralmente nos servem para a nossa passagem pela vida. Quase todos os antigos contos têm feito um finca-pé essencial no problema da imortalidade. Trata-se de recuperar uma vez mais, o nosso sentido de “imortalidade”. Trata-se de recuperar uma vez mais, aquilo que os antigos ensinavam quando nos colocaram no caminho da existência, para recolher experiências e repeti-las, quantas vezes fosse necessário, até que a alma se tornasse dura, forte, perita nos caminhos da Vida. Isto deveríamos recuperá-lo; antes eramos imortais, agora vimos sendo homens, e isso estamos quase a esquecer ultimamente…
Recuperar aquele velho sentido de Justiça, quando encontramos nos antigos livros, aquele critério que hoje está sob a palavra sânscrita do “karma”, e que nos faz aparecer a História como um conjunto de feitos encadeados e acorrentados por uma série de causas e efeitos. Nada se produz porque sim, nada acontece casualmente, tudo está intimamente relacionado. Todas as coisas obedecem a outras que as precedem, e que são as suas causas. Recuperar aquele velho sentido da Beleza, da Estética, da Harmonia. Tremer outra vez diante da beleza, não colocar simplesmente um par de olhos que pouco entendem, e uma boca que pouco pode criticar.
Recuperar aquele velho sentido do Amor, como nos descreveram os antigos filósofos: aquele sentimento, aquela força da alma que é capaz de unir todas as coisas na Terra, acima de todas as barreiras…. Recuperar aquele sentido de evolução, de crescimento, de não nos sentirmos estancados, de não pensar que a vida é um novo vegetar; de ter aquela segurança interior de que estamos aqui por algo, e para algo, e que, efetivamente, nos espera um destino. E que o mais impressionante dos destinos, e o mais longo dos caminhos começa precisamente por dentro: começa ali, no lugar e no momento em que nos decidimos conhecermo-nos e a recorrermo-nos para nos tornarmos mais fortes, maiores.
Recuperar esse sentido geral da Natureza, essa visão global dela mesma, mediante a qual, o ser humano não está fora, não está sozinho, não está desamparado, não está à mercê de forças que não compreende, mas que forma parte desse maravilhoso conjunto e daquelas leis que tudo harmonizam. Quer dizer, que o Homem teria que voltar a mirar-se nessa Natureza, e que possa ver-se como era antes, há muito tempo… Que possa descobrir parte de si mesmo, na simplicidade de um animal ou na ternura de uma planta, ou ver-se e intuir como será dentro de algum tempo, se é que olha para as estrelas no céu noturno…
E, sobretudo, pensar na necessidade de rever a história dessas antigas civilizações, recordar o processo histórico da Humanidade. E recordar que essas antigas civilizações caíram justamente, quando caiu a integridade moral dos seus homens; quebraram-se não por problemas económicos, mas porque os seus homens perderam a força interior; quebraram-se quando, no lugar dos valores morais, apareceu a ambição, a desordem, os caprichos desenfreados, o ódio, a mentira, etc. Quando todas estas coisas estiveram presentes, as civilizações quebraram-se, e este é um ensinamento histórico que não podemos desprezar, de forma alguma.
Vamos, por isso, em busca do “tempo perdido”. Vamos recuperá-lo, a sentirmo-nos herdeiros de nós mesmos, do que temos vivido, como cada um de nós. E nos sentiremos herdeiros de todos os homens que viveram antes de nós. Não estamos sozinhos, não acabamos de “aparecer” no mundo; houve muitas coisas pela frente, muita experiência, muito tempo, muita história que nos precedeu e somos herdeiros dela.
Vamos recuperar o tempo perdido, estando ativamente presentes, vivendo o presente, sendo conscientes do que fazemos, do que dizemos, do que escrevemos, de como nos movemos. Estamos já cansados de as pessoas se expressarem dizendo: “Não sei se estou ou não estou… Hoje não me sinto, creio que estou mais além…”. Estamos cansados de enfrentar seres humanos que não sabemos se estão diante de nós ou em qualquer outro lugar, porque o presente também tem o seu valor.
E vamos lançarmo-nos no Futuro para recuperar o tempo perdido, mas tem que ser para um futuro lógico, real. Um futuro no qual cabem planos, isso sim, mas planos que se podem realizar. Não há nada que desencoraje mais o ser humano do que fazer enormes planos – esses planos extraordinários que são nomeados na mesa de um café, sentados na frente de um amigo – que na hora da verdade, quando alguém os quer aplicar, mesmo numa pequena parte, damo-nos conta, que muitas vezes somos incapazes disso. Os planos devem ser concretos, reais, na medida das nossas possibilidades; exigindo-nos muito, é verdade, mas sabendo que podemos dar o que exigimos de nós.
E penso que, em última instância, e para não alargar demasiado a nossa conversa, a melhor maneira de recuperar o tempo perdido é recuperar aquilo que nós pensamos – como Filósofos Acropolitanos – faz a própria essência do Homem.
Há que recuperar o que tem sido chamado de “a Alma Humana”, o Espírito, o Ser Interior, o Eu Superior, o Eu profundo. Há que recuperar o que está dentro de nós, aquilo que nos deixa inquietos, que jamais nos deixa estar satisfeitos com nós mesmos.
Esta parte interior do nosso ser é o que, quando tem que enfrentar-se na vida quotidiana, não se conforma com o simples “sobreviver”. Temos que recuperar o nosso mundo interior que quer Viver, e não apenas sobreviver. Aquilo que empurra dentro e nos pede algo mais, esse nosso velho ser interior que, quem sabe há quanto tempo nos acompanha? Quem sabe há quanto está a experimentar isso? Quem sabe quantos caminhos do Tempo percorreu…? E hoje, calada, silenciosa, mas potentemente, grita dentro de nós: RECUPERA-ME, ESTOU CONTIGO!
Delia Steinberg Guzmán
Publicado na Biblioteca Nueva Acrópolis em 10-01-2024
Imagem de destaque: Um Memento mori, séc XVIII, Jóhann Andreas Graff. Domínio Público