A civilização egípcia desenvolveu-se dentro de um duplo quadro geográfico.

Por um lado, os grandes desertos do sul, que confinavam com a Núbia, eram áridos e obrigavam os homens ao trabalho constante e à preocupação por manter uma agricultura florescente. Não era tarefa simples. Era necessário prever o abastecimento de água, canalizá-la e construir tanques, para garantir colheitas florescentes.

As cidades estavam relativamente isoladas, como ilhas num mar de areia reverberante, cujas ondas de dunas cobriam e descobriam gradualmente vestígios já antigos do período médio.

Pelo contrário, o Delta, ao norte, formava as terras baixas, com territórios férteis, capazes de dar várias colheitas num ano. O viajante Nilo abria-se em várias bocas, algumas naturais e outras criadas pela mão do homem, e ia desaguar no Mediterrâneo, formando uma grande porta de comunicação entre o Egito e as grandes culturas mediterrâneas produzindo assim um intercâmbio de valores culturais e materiais entre os povos.

O Nilo, além de dar água a todo o território e fornecer o limo fertilizante nas cheias anuais, era a principal via de comunicação. Era a grande estrada fluvial, a coluna vertebral civilizatória.

Através dele, os barcos cruzaram territórios durante a após o Período Pré-dinástico, e alcançou-se a unificação política que historicamente personificamos em Narmer, o primeiro rei do alto e baixo Egito.

Mapa do Rio Nilo e o seu delta, feito com imagens da NASA, ainda evidencia bem a dualidade geográfica em que se insere o Egito. Domínio Público

Mas quando ocorreu essa unificação, que foi chamada de Era Dinástica, o Egito já tinha um passado, um bem cultural sólido, que aqui se concretiza e que vai permanecer durante três milénios.

Só isso já seria suficiente para reconhecer a importância deste antigo povo, mas para eles não foi mais do que o início de uma nova etapa, a da ligadura do lótus e o papiro.

Há uma estátua de diorito, representando o rei Kefren, da quarta dinastia, muito rica em simbolismo e com grande precisão na escultura que mostra o lótus e o papiro amarrados a uma coluna central que assegura a estabilidade. Esta coluna está associada ao pilar Djed que, além de representar a estabilidade, expressa também a necessidade dela, para que floresça a vida e a cultura. Sobre o pilar está a flor do renascimento, que se abre diante de Osíris, e que não tem nenhum contato com a terra. Nas representações vê-se cortada, separada do caule que garante a alimentação e a subsistência, mas ela, depois de secar separada das fontes vitais, volta magicamente à vida, renasce da própria morte, tal como nas lendas e alegorias do feito de Osíris, que depois de descer aos submundos da morte pela porta do ocidente, renasce e transmite o seu impulso ao sol jovem, seu filho Hórus, que, como Zeus Pantocrator, fará renascer a justiça na natureza, marcando o caminho para a humanidade.

Estátua de Kefren, exposta no Museu Egípcio, Cairo, Jon Bodsworth

O lótus e o papiro uniram os seus caules e as suas vidas e são alimentados pela Força vital comum, o Nilo, que é um rio e é um símbolo.

Costuma dizer-se que a dualidade geográfica determinou o dualismo na sua religião e na sua filosofia da vida, mas há outra alternativa. Imaginemos que havia a possibilidade de uma conceção dialética no Egito, onde as forças em disputa deveriam ser resolvidas pela centralização da consciência e uma espiritualidade crescente.

As caraterísticas geográficas serviram como meio de expressão simbólica deste pensamento. Norte e sul seriam uma alegoria desta dualidade, assim como o este e o oeste, determinados estes últimos pelas margens do Nilo.

Com os quatro pontos cardeais, se definiriam os quatro extremos do Egito e, por extensão, do mundo. Formariam a base de uma pirâmide e pelas suas faces triangulares se aproximariam, na sua ascensão, até se encontrarem num ponto central que resolve todos os opostos e os projeta para o céu, para o Amenti, ou mundo de felicidade e perfeição, onde se encontra a estabilidade e a justiça.

A tradição fala-nos assim de um Nilo terrestre, uma água de vida que está associada ao Nilo celeste, arquétipo cósmico no qual navegam os barcos dos deuses na sua trajetória cósmica. Isto traz à memória o aforismo hermético que diz: “Assim é em cima como é em baixo”.

Um mundo luminoso e celeste manifesta-se na Terra num processo dual, em que o homem deve lutar para integrar a sua consciência, para transmutar a sua cegueira em clarividência e a sua fragilidade em fraternidade.

O símbolo desta luta do homem está representado no Mito Osiriano. Nos hinos do oeste e do este, reinavam Osíris e Seth e este último, invejoso do poder e da sabedoria do seu irmão Osíris, trama a sua morte. Incentiva-o a participar numa festa no seu palácio e lá apresenta um sarcófago, prometendo aos convidados que o ofereceria a quem coubesse exatamente dentro dele. Todos os convidados o provam, mas é demasiado grande; apenas Osíris cabia exatamente, pois Seth tinha feito o sarcófago à sua medida, sem lho dizer.

Quando Osíris estava dentro do sarcófago, todos os convidados ao mesmo tempo o taparam e soldaram com chumbo, lançando-o depois no Nilo, que lentamente o vai levando em direção à foz no Mediterrâneo. Segundo nos conta Plutarco, o sarcófago foi boiando nas águas do mar, até que parou aos pés de um tamarindo e esta árvore foi crescendo em torno dele, mantendo-o no seu interior.

Ísis, esposa de Osíris, ao saber de sua morte, começa a procurá-lo em todos os lugares até chegar onde estava a árvore e liberta-o. Mas Seth consegue roubar-lhe o sarcófago, desmembra Osíris e o dispersa os pedaços por todo o Egito. Ísis incansavelmente volta a resgatá-lo, mas não consegue encontrar todas as partes, pois os genitais caíram no mar e foram devorados pelos peixes. Com a ajuda de Anúbis, mumifica-o e tem um filho místico com o seu marido, que herda a força solar do seu pai e surge luminoso e potente como o sol emergindo do leste.

Osíris, depois de passar algum tempo no reino da morte, renasce pelo seu próprio esforço, mostrando aos homens o caminho para a eternidade.

Hórus luta contra Seth e derrota-o, desterrando-o e unificando o Egito, impondo a justiça num mundo de verdade.

Da direita para a esquerda Ísis, seu marido Osíris e seu filho Hórus, protagonistas do mito de Osíris, em estatueta da 22ª dinastia. Creative Commons

Depois de um período em que os deuses governaram no Egito, este poder foi transferido para os homens que, inspirados por Hórus, deveriam solucionar os seus próprios problemas, sob inspiração divina, mas com trabalho e inteligência humanos.

Assim, sintetizamos a alegoria de um momento de transição, onde o homem vai gradualmente tornando-se senhor do seu destino seguindo a inspiração de um mundo de ideias e a força criadora de uma cultura que se plasma modelando a material, como o deus Knef modela as coisas na sua roda de oleiro e onde o barco vai tomando pouco a pouco a forma que determinam as suas mãos, seguindo os modelos determinados pela inteligência.

Para o egípcio deve haver um mundo ordenado e inteligente, onde a existência tem um porquê e um para quê. Civilização e criação seguem unidos, não através de uma mística, mas de uma religiosidade que determina uma ordem e uma transmutação interior, onde o homem se vai transformando no seu próprio artífice, ganhando o seu lugar consciente na eternidade e plasmando o Amenti na terra.

A luta entre Hórus e Seth marca o caminho interior de constante atividade e constante variação do ambiente, através do qual o homem vai ascendendo na natureza, que é sua mãe e sua ama. Ísis está associada à natureza, e seu símbolo, o degrau ou escada, é o suporte que a humanidade tem para ascender das águas da vida do Nilo terrestre, às do Nilo celeste, que são as águas da eternidade.

Luis F. Ayala
Arquivo de Nova Acrópole

Imagem de destaque: Margem esquerda do Nilo, entre Kom Ombo e Edfu, Celio Maielo. Creative Commons