“Aqueles homens que, na guerra, tentam preservar as suas vidas a todo o custo, como comum a todos e inevitável, e anseiam morrer com honra, frequentemente chegam à velhice e, enquanto vivem, vivem mais felizes.”

de Anábase, de Xenofonte

Á medida que os custos de produção sobem, tanto na televisão como no cinema, parece que menos profundos vão ficando os conteúdos. Muitos filmes e programas televisivos são acerca de nada, tecnicamente excelentes, mas olvidáveis.

Não é o caso de Dunkirk, o filme histórico de Christopher Nolan de 2017, que faz pensar sobre a condição humana. A sua abordagem minimalista, com uma técnica quase perfeita, dá significado a cada som, cada palavra, cada gesto, tal como na escuridão cada pequena luz faz a diferença.

O filme reconta a história dramática da evacuação de Dunquerque, na Segunda Guerra Mundial, onde grande parte do exército britânico, juntamente com soldados franceses e belgas, ficaram presos nas praias de Dunquerque, no norte de França, depois de os exércitos alemães surpreendentemente e rapidamente terem conquistado a maior parte de França.

A situação é terrível. As forças britânicas e francesas estão presas num apertado perímetro da praia. Não há saída, a não ser a marítima. Os soldados desamparados estão presos pelas circunstâncias, esperando bombardeamentos aéreos a qualquer momento.

Neste tipo de situações, entra em jogo o instinto de sobrevivência. Sem ordem exterior, os homens comportam-se como animais, lutando uns contra os outros pela sobrevivência. É aqui que o forte instinto pela vida, pela autopreservação, toma o controlo e nos empurra para actos extremos, por um lado, mas renega a nossa moral e consciência por outro. O medo toma o controlo, como acontece a um animal acantonado.

No entanto, este não é o único modo de ação possível. Lado a lado com esses exemplos de egoísmo brutal, o filme mostra-nos exemplos de altruísmo, autosacrifício e liderança. Mostra-nos que neste tipo de situações não temos que sobreviver. Podemos escolher viver. Na realidade, o filme é apresentado de maneira tão abstrata, que poderia simbolizar qualquer situação de perigo, qualquer luta por sobrevivência.

Isto consiste, para mim, no dilema essencial do filme: Numa situação de desespero, sem saída, como escolhemos reagir? Faremos qualquer coisa para evitar a morte e sobreviver, ou escolheremos um caminho de altruísmo e dignidade mesmo que acompanhado pelo risco de perdermos a vida?

Há algo muito revelador no facto de em Dunkirk nunca vermos um vislumbre do rosto do inimigo. Mesmo nos títulos iniciais, os nomes dos países combatentes não são mencionados, apenas o inimigo.

Uma maneira de interpretar isto é que o inimigo não está fora, mas dentro de nós. É a parte de nós que quer sobreviver a todo o custo em contraste com um lado mais nobre e heroico de nós mesmos, que deseja transcender o instinto de sobrevivência para viver sem medo.

Pode parecer estranho que eu contraste a sobrevivência com a vida. Mas a sobrevivência a qualquer custo não é evitar a morte, é evitar a vida, é passar ao lado da oportunidade de viver plenamente. Podemos continuar a viver num nível biológico, mas algo dentro de nós morre. Por outro lado, podemos colocar as nossas vidas em risco e, ainda assim, estamos a permitir que algo maior viva dentro de nós.

Essas duas forças que puxam em direções opostas são personificadas ao longo de todo o filme, decididamente retratadas por dois grupos de personagens – um grupo de soldados voluntários, entre os quais Tommy, que faria qualquer coisa para escapar do terrível campo de batalha, e o outro grupo formado por histórias de diferentes origens – um cidadão comum, um piloto de caça e um mestre de doca, que partilham a vontade de fazer tudo para cumprir o seu dever, colocando as próprias vidas em perigo.

Aviso: Vêm aí spoilers! (se não viu o filme salte para o último parágrafo)

Cartaz de “Dunkirk”. Wikimedia Commons

Uma cena poderosa no filme traz para primeiro plano essa tensão interior, essa luta entre a sobrevivência a todo o custo e a humanidade. Nesta cena, Tommy e os seus dois companheiros juntam-se a um grupo de soldados britânicos que se escondem no casco de um barco, esperando flutuar com a maré. Quando percebem que precisam de perder peso e que estão cercados, todos se concentram num dos companheiros de Tommy, que é identificado ser um soldado francês. Querem lançá-lo borda fora.

Nesta altura, o dilema é expresso mais explicitamente no filme: A sobrevivência justifica tudo? O assassínio de um compatriota é justificado em nome da sobrevivência? A sobrevivência a todo o custo é ética? “Sobrevivência é medo, e é ganância. É o destino empurrado pelas entranhas do homem”, diz um dos soldados.

Tommy, que até então fez tudo o que podia para sobreviver, de repente percebe que talvez haja um limite para o que o instinto de sobrevivência tolera, e que há uma linha muito ténue entre autopreservação e a perda da nossa humanidade.

Neste momento ele para de correr. Só por um momento, na escuridão, reúne coragem para ficar no seu lugar, proteger o seu companheiro, enfrentar o instinto e defender o que é certo.

Outro seu companheiro justifica esse “sacrifício” apontando que o outro é estrangeiro, apresentando-o como parte de um grupo diferente.

Mas isso nada mais é do que autopreservação disfarçada, o que parece muito normal aqueles que conseguem ver além das chamadas demonstrações de patriotismo, que não são mais do que xenofobia.

Em contraste, numa das cenas finais, ao comandante Bolton, interpretado por Kenneth Branagh, o mestre da doca durante a evacuação, é dada a possibilidade de partir com os navios britânicos, mas este recusa calmamente para poder ficar a ajudar os franceses. Um piloto de caça, interpretado por Tom Hardy, escolhe continuar a lutar, apesar de estar sem combustível e sabendo que não poderá regressar, apenas para poder salvar mais alguns soldados. E enquanto os que estão na praia lutam para sair de lá e voltar para Inglaterra, um cidadão comum, que se voluntaria para levar o próprio barco para Dunquerque e ajudar com as evacuações, escolhe colocar-se em risco a si e ao filho para ir em direção ao perigo, em vez de para longe dele. Estes exemplos manifestam a ideia platónica de que para liderar os outros é preciso primeiro liderar-se a si mesmo. Apenas aqueles que conseguem superar o instinto de medo e sobrevivência podem ser um exemplo para a humanidade e uma esperança para o futuro.

Fairey Firefly. Reino Unido (segunda guerra mundial). Creative Commons

Os spoilers terminam aqui.

Nenhum de nós sabe como reagiria numa situação semelhante. Este tipo de situação evidencia o melhor e o pior das pessoas.

No entanto, hoje em dia, num momento de crise global em que as estruturas tradicionais estão a desmoronar-se e cada pessoa tende a cuidar apenas de si mesma, cada um de nós pode perguntar-se a si próprio quem escolhe ser? Quem será o nosso guia? A voz da autopreservação ou o apelo à Vida?

Esta é uma boa oportunidade para exercitar a nossa moralidade, que pode ser (praticada) exercitada como qualquer outro valor.

Gilad Sommer
Publicado na New Acropolis International Organization em 27-03- 2019

Imagem de destaque: Logotipo da fita “Dunkirk”, 2017. Wikimedia Commons