De nenhuma maneira podemos libertar-nos das circunstâncias históricas em que vivemos fazendo uma simples intelectualização; necessitamos, primeiro, de poder viver profundamente a vida que nos toca, poder viver esta vida que de alguma maneira é um grande símbolo.
 As árvores, a terra, os troncos, as luzes, são símbolos de coisas escondidas e os ramos que se levantam são símbolos da vontade da árvore de se verticalizar.
Todos nós somos símbolos, de alguma maneira, de algo que está mais além. Ou seja, somos símbolos, somos presenças exteriores. E, às vezes, ensina-nos mais um símbolo ou uma parábola que muitos ensinamentos intelectualizados (…)

Jorge Ángel Livraga (Magia, Religião e Ciência para o terceiro milénio Vol. II pág. 282; Conferência “Desmitificação de Heróis e Santos, as suas consequências”)

Ao estilo gregoriano, ainda que em menor escala e com meios limitados, quis que a sede compostelana fosse cabeça e altar, cátedra e guia, refúgio e bandeira dos estados cristãos espanhóis, nessa altura, quando os trovadores e os devotos mediam o continente com cantos de peregrinação. Todos estes estados – reinos e condados – estavam demasiado atribulados com as suas disputas quase pessoais ou de família para poderem levantar o olhar sobre as colinas rasas do horizonte; mas aí está a sua tenacidade e toda a gama dos seus êxitos, os seus fracassos, em prol da supremacia ao estilo romano. E, noutro sentido, no sentido romeiro, doravante e por cerca de quatro séculos, também Compostela será eixo eclesiástico – não hierárquico, mas sim popular – de devoções, muita arte, boa cultura.
Será a noiva ou mãe que embalará a Europa.
─ Adro Xavier[1]

Do mesmo modo que a água carece de uma forma constante, não há na guerra condições constantes.

Sun Tzu

Não é necessário ler Sun Tzu e a sua Arte da Guerra para reconhecer a importância dos símbolos na estratégia militar e na própria vida dos povos. Os símbolos têm tanta realidade no psicológico como os objetos materiais no físico; canalizam os valores psicológicos e morais de quem é regido por eles, “eletrizam” os ânimos e despertam do sonho da passividade. A história das crenças é, afinal, uma história de símbolos, e as guerras são guerras de símbolos que resumem diferentes visões do mundo. Símbolo é, por exemplo, a bandeira de um país, que encarna a Ideia ou Espírito Reitor (o Volksgheist de Hegel) e outorga unidade e destino a uma terra e às suas gentes; e que expressa os seus sonhos comuns, as suas esperanças, as suas vitórias e fracassos, a sua história. Praticamente toda a Idade Média é uma guerra religiosa entre a Cruz e o Crescente, e toda a Heráldica é uma história de símbolos que resumem genealogias e um esforço de glória acumulado durante séculos, escudos pelos quais facilmente se podia matar ou morrer. E quando o Grande Mestre do Templo outorga ao jovem Jaime I, o Conquistador, a espada do Cid, ela é um símbolo de Espanha inteira e de um velho Ideal que deve erguer-se vitorioso da sua tumba. Os mesmos heróis, que singram como tochas humanas os caminhos da História, são talismãs de carne e osso e vivem na memória e, portanto, no afã de gerações e mais gerações. A própria Santiago de Compostela, e graças à obra de Diego Gelmírez, foi um símbolo, juntamente com a obra dos “monges negros” de Cluny, do Renascimento da Europa, depois do frio e torturado sonho da Alta Idade Média.

As almas próceres, os gigantes do passado ou heróis, convertem em símbolo cada uma das suas gestas, e as cenas da sua vida são evocadas milhares de anos depois numa sucessão quase mágica, em que os factos acontecidos se entrelaçam no mito; mito que finalmente vela, encobre e veste a história, num processo semelhante à concha no fundo do mar, que elabora a sua pérola de nácar em torno de um minúsculo grão de areia. Assim, o inconsciente coletivo forma mitos que, finalmente, sustêm e embelezam a história, formando a arquitetura imaterial dos nossos sonhos, recordações e esperanças. Não há nada que destrua mais perigosamente a coluna vertebral de um povo que a desmitificação dos seus heróis, santos e gestas, pois atenta contra aquilo que invisivelmente o sustém. Como disse o professor Livraga: Estes mitos não são simples mentiras; são continentes, são embalagens, são formas de expressão de factos profundos, de factos meta-históricos que permitem pormo-nos em contacto com a Natureza. E aqueles homens que “beberam” estes mitos, e aqueles homens que fizeram coisas extraordinárias são os super-homens, são os santos.

Numa guerra e na paz, a defesa da bandeira e dos símbolos pátrios é vital, pelo valor psicológico que encerram e quando estudamos vemos a história empurrada por estes motores psicológicos que variam de século para século, do mesmo modo que uma roda avança, apoiando-se cada vez num raio diferente.

Um exemplo muito claro do valor emocional destes símbolos é o famoso e tão polémico roubo das relíquias de Braga, numa “operação de comandos” dirigido pelo bispo Diego Gelmírez, no início do século XII.

Signo ou sinal rodado de Diego Gelmírez, bispo de Santiago de Compostela (1100-1136). Domínio Público

Hoje, é-nos quase inconcebível admitir o valor que as relíquias tiveram durante toda a Idade Média, mesmo até muito depois de finalizadas as Cruzadas. Quiçá durante o final da Idade Média se tenha provocado uma “desvalorização” destas relíquias, quando os valores humanos e a Filosofia se converteram outra vez no eixo de pensamento e da atividade moral; e também porque as viagens ao Oriente trouxeram tantos ossos de santos, e tantas farpas da cruz de Cristo, que se poderia armar uma caravela como as de Colombo, tripulação incluída. Mas os séculos XI e XII representam o auge do culto às relíquias. Recordemos como Henrique I, “o Passarinheiro”, cedeu a Rodolfo de Borgonha nada mais nada menos que parte de Suábia, em troca de uma relíquia. O aniversário de transladação ou aquisição das relíquias era celebrado anualmente com festas litúrgicas solenes. Recordemos também a importância, na História de Portugal, da transladação das relíquias de São Vicente, de Sagres até Lisboa, ordenada pelo seu primeiro rei Afonso Henriques, como símbolo de identidade de um novo país e para compensar a atração que gerava o túmulo de Santiago de Compostela. Finalmente o santo, com os seus corvos vigiando – à maneira do deus germânico Wotan – o barco que transportou os seus restos mortais, converteu-se no patrono e insígnia da cidade de Lisboa: uma lição de estratégia psicológica subtil. Também a cidade de Leão foi abençoada com os restos de Santo Isidoro, pedidos pelo rei Fernando I ao rei al-Motatid, e transladados de Sevilha até esta cidade. O rei Fernando I tinha pedido os restos das Santas Justina e Sabina mas, não os tendo encontrado, al-Motatid entregou-lhe os do Santo, agora leonês, autor das Etimologias.

A verdade é que, atualmente, nos tornámos mais céticos – e com razão – em tudo o que é referente às relíquias. Mas se queremos compreender a história, devemos transferir-nos para a forma de pensar desse momento, sendo o único modo de enquadrar devidamente a ousadia e audácia do bispo compostelano.

Diego Gelmírez nasce em Padrón (Iria Flavia) no ano 1059[2], no reino da Galiza, que então se estendia até ao Douro e embalava no seu seio o futuro reino de Portugal.

A sua juventude coincide, portanto, com as andanças heroicas do Cid Campeador e com o governo de Afonso VI (1040-1109), o Bravo, rei de Leão e Castela, sendo um tempo de forja da Espanha na Reconquista, e de luta contra os almorávidas, um tempo de paz, prosperidade e europeização graças a Cluny. Segundo filho do conde Gelmiro, foi educado na corte, e tabelião do conde da Galiza, Raimundo de Borgonha, esposo de Dona Urraca e, portanto, genro do rei Afonso VI, o qual o ajudaria a ser nomeado bispo de Compostela no ano 1100. Viajou a França e a Roma, onde se fez um adepto convicto da política religiosa de Gregório VII e de toda a reforma de Cluny, incluindo a mudança de rito moçárabe que seria substituído pelo rito romano[3].

É importante recordar que os bispos naquele tempo não só governavam os assuntos religiosos com báculo e tiara, mas também se lançavam na guerra, protegendo os seus territórios como delegados do rei… ou por conta própria! Este é o caso do bispo Gelmírez, que combateu, corajosamente e sem tréguas, os normandos que durante décadas assolavam as costas galegas e, entrando pelos seus rios roubavam, raptavam, violavam, assassinavam e levavam para as suas frias terras os frutos da sua rapina. Terminou de reconstruir o Castellum Honesti[4] – em que alguns historiadores dizem que nasceu quando o seu pai era senhor desta fortaleza, servindo o bispo Diego Peláez – que protegia a via fluvial até Compostela pela Ria de Arousa e através do rio Ulla.

Ruínas das Torres do Oeste em Catoira. Creative Commons

Seguindo a reforma estabelecida pelos cluniacenses, estabeleceu instituições de ensino para os clérigos ou chamou diretamente monges de Cluny, tentou purificar os seus domínios eclesiásticos dos excessos sexuais e outros, a simonia e o nicolaísmo nos mosteiros, assim como pôr fim aos mosteiros “dúplices”, em que monges, monjas, povo simples e pequena burguesia viviam promiscuamente. Na realidade, os mosteiros tinham surgido quase como fortalezas para sobreviver, amparadas por um senhor feudal ou alguém com riquezas suficientes para construir estas “ilhas” humanas no meio dos páramos desertos[5]. Como disse Adro Xavier no livro antes referido, citando a obra de Pérez de Urgel, História da Ordem Beneditina[6]:

“O mosteiro ou abadia “converteu-se num centro da vida económica, industrial, religiosa e nacional. É um santuário, uma escola, um hospital, uma hospedaria, uma praça-forte, um foco de povoação, um armazém, uma oficina e um depósito de objetos de indústria e comércio. As cabanas de palha dos primeiros eremitas foram substituídas por grandes construções: igreja, claustro, capítulo, dormitório, quadras, oficinas, dependências, que lhe davam o aspeto de uma pequena cidade”.

Diego Gelmírez aderiu à proclamação dos nobres de mais alta estirpe em 17 de setembro de 1111, em que o próprio bispo coroou Afonso Raimundez (filho de Raimundo de Borgonha e de Dona Urraca) rei da Galiza, a quem a posteridade recordará como Afonso VII, o Imperador. Isto provocou uma crise política com dois partidos em oposição: por um lado, os nobres e eclesiásticos que apoiavam os interesses imperiais leoneses, através do casamento de Dona Urraca com o rei de Aragão Afonso, o Batalhador; por outro, os que se opunham ao predomínio da monarquia castelhano-leonesa desde os tempos de Fernando I, e que se agruparam em torno deste jovem rei, salvaguardando assim os direitos de sucessão sobre a Galiza. Mas isto não era tudo. O novo rei, de apenas seis anos, teria como regentes Diego Gelmírez e o conde de Trava – o personagem mais influente na Galiza juntamente com o nosso bispo.

A maior obra de Diego Gelmírez é a propaganda internacional que fez para converter – isto queria ele! – Santiago de Compostela no centro mais importante da cristandade. Ocupou-se política e culturalmente, com todos os meios ao seu alcance, umas vezes com o báculo, outras com a espada, para que Compostela não só arrebatasse a Braga a sua hegemonia sobre a Galiza[7], não só substituísse Toledo como nova capital das Espanhas, não só rivalizasse com Roma ou Jerusalém em poderio e importância mas que fosse a capital unificadora de um novo Império Romano Católico, ou a origem cultural e política de uma nova Europa unida (o sonho de Carlos Magno, de Cluny, de Cister, dos Templários, de Carlos V e de Napoleão). Daí o labor incansável de Diego Gelmírez, primeiro, em obter para Compostela a dignidade metropolitana[8] (que o Papa Calisto II concedeu no ano 1120), em continuar a elevar esta inigualável joia do românico que é a sua catedral (continuou os esforços do bispo Diego Peláez e colocou a sua última pedra no ano 1122), em conseguir que a Ordem Cluniacense e o Papa, junto com a sua ânsia, trouxesse para esta cidade rios de peregrinos de todas as nacionalidades, e em protegê-la, como dissemos, de normandos e sarracenos. Roma não via com muito bons olhos o poder e prestígio crescente de Compostela que eclipsava o seu próprio e fez várias tentativas no xadrez político para evitá-lo. Mas Gelmírez era muito hábil, e a submissão que mostrava, juntamente com o envio crescente de dinheiro às arcas vaticanas, suavizaram a hostilidade: as boas relações com a Ordem de Cluny eram, além disso, o melhor antídoto para tal hostilidade. Não esqueçamos que Gelmírez chegou a autoproclamar-se “Summus Pontifex” sem que Roma se perturbasse ou alarmasse[9].

Vista geral do complexo da catedral de Santiago de Compostela. Creative Commons

É dentro deste quadro de intenções que devemos situar o roubo das relíquias sagradas de Braga realizado por Diego Gelmírez e narrado com detalhe no seu livro-apologia, a Compostelana, provavelmente escrito por um dos seus discípulos, e que claro justifica este “latrocínio piedoso”.

Mas é necessário que retrocedamos na história para examinar as causas, e que compreendamos também a relação tensa que existia entre a Cidade do Santo Sepulcro e a arquiepiscopal Braga.

Tudo começa quando o rei Afonso I (739-757) nos primeiros tempos da Reconquista começa a restabelecer as dioceses nas terras arrebatadas aos árabes e concede a Lugo prerrogativas sobre todas as demais, convertendo-a em Metropolitana (“cidade mãe” é o significado deste termo). Esta honra tinha correspondido tradicionalmente, e durante meio milénio, a Braga (a antiga e importantíssima Bracara Augusta, que ainda conserva o traçado romano das suas ruas), que ao estar no poder do invasor viu-se privada, claro, desta função.

Afonso II, o Casto (791-842), em pleno ímpeto guerreiro e de reconquista (os quatro reis da Galiza anteriores descansaram sobre os louros, e inclusive o último, Bermudo, cedeu ao vergonhoso tributo de cem donzelas), levanta a primeira basílica de Compostela e, 150 anos depois, Afonso III oferece à cidade de Compostela, praticamente metade de Braga, com o qual os bispos de Compostela se convertem nos maiores proprietários de terras em Braga.

O bispo Ataúlfo consegue que o Papa Nicolau II (858-867) mude a residência episcopal de Iria Flavia para Compostela[10]. Quando, como dissemos, o bispo Crescónio (em 1049) é fulminantemente excomungado[11] por se autointitular “Bispo da Sé Apostólica”, Roma começa a pensar em Braga como contrapeso à importância cada vez maior de Compostela, que poderia arrebatar (porque não?) a sede da Igreja à cidade do também apóstolo São Pedro[12]. Braga liberta-se do poder muçulmano em 1070 e vinte e cinco anos depois recupera o seu antigo estatuto de arquidiocese.

Entretanto, o conde Henrique, casado com Dona Teresa (pais de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal) estabelece-se em Braga, que volta a ser bispado; e pretende recuperar a sua antiga posição na hierarquia e poder metropolitano, com o qual Compostela ficaria submetida à sua jurisdição. E consegue o primeiro, mas não o segundo, graças ao bispo compostelano Dalmácio que, mais seguro e obedecendo aos preceitos de Cluny, consegue do Papa[13] o privilégio da isenção[14], ou seja, depender diretamente de Roma, e não de Braga, que se converte, como dissemos, em sede metropolitana.

E a ordem de Cluny envia um bispo, Giraldo, a Braga, um prelado já envolto de santidade e hoje figura na lista dos santos romanos. Cinco anos mais tarde, em meados de 1100, no concílio nacional de Palência, quatro bispos galegos, os de Lugo, Orense, Tui e Mondonhedo têm de fazer ato público de obediência ante o novo bispo de Braga.

É aqui que começa a verdadeira tensão e competição entre as cidades: Braga, herdeira de antigas glórias e surgindo com um novo ímpeto histórico (de facto, vai converter-se na alma e impulso da independência de Portugal), e Compostela, possível santuário antiquíssimo, assumindo outra vez protagonismo, com novas vestes no frio cenário da Idade Média.

Catedral de Braga. Creative Commons

Braga é arquidiocese, mas por outro lado, meia província de Braga é do bispo Gelmírez, e ele vai reclamar os seus foros, visitar e civilizar (segundo o modelo cluniacense) as suas igrejas após dois anos de ser bispo, em 1102, portanto. A história é narrada com detalhe na Compostelana que, ao ser memória e apologia de Diego Gelmírez, não sabemos exatamente o que é o que encobre, o que exagera, o que mente; porque, claro, a história é sempre escrita pelos vencedores.

O bispo São Giraldo recebe-o com toda a amabilidade, manifestando todo o respeito e carinho mais afável. A Compostelana diz que o foi receber fora da cidade e que permitiu que Gelmírez iniciasse a visita com uma missa solene na Sé Catedral. Há quem afirme, inclusive, que cedeu o seu próprio palácio ao hóspede, indo ele viver num convento qualquer. Evidentemente, tudo isto faz contraste com o comportamento do bispo compostelano que procedeu ao roubo das relíquias em quadrilha, com noturnidade, premeditação e aleivosia.

Acrescenta a Compostelana que, quando o bispo começou a visitar as “suas” igrejas, a alma caiu-lhe aos pés, porque estavam todas elas num lamentável estado de abandono, com tantas relíquias sem culto e expostas a que o primeiro ladrão delas impiamente se apoderasse. É então quando lhe ocorre, narra, por inspiração divina, ser esse ladrão, mas ao serviço de uma causa superior, servindo Deus, e levar essas relíquias para onde recebessem o digno trato que mereciam. Em Compostela, onde havia “altares de prata e inúmeras velas acesas”; e uma infinidade de peregrinos para se prostrar ante elas[15].

E assim, enquanto de dia seguia o seu programa oficial de visita às igrejas, de discursos, missas e organização, junto a Giraldo, de noite planeava e/ou executava os seus audazes desígnios. Deixemos que a pluma ágil e precisa de Adro Xavier, no seu Diego Gelmírez-Reino da Galiza: séculos XI e XII, nos narre o acontecido:

Que fingiu, que abusou da hospitalidade, que, como bom pragmático, assegurou demasiado cedo a primeira repercussão de escrúpulos, isso não se pode negar. Que teve de planear com meticulosa estratégia a espoliação, que teve de escolher ponderadamente os seus colaboradores mais discretos e menos pios, que teve de dar cem voltas para escolher as horas propícias, as ferramentas mínimas, os escapes secretos, os caminhos desviados, que teve de atar e reatar os cem cabos escorregadios de um assalto tão difícil e no coração da cidade inimiga, são coisas que há que conceder e que cada um adjetive ao seu gosto e razão.

O certo é que noite atrás noite, com muito sigilo, acompanhado pelo menos dos seus cónegos Hugo e Diego – o primeiro narra na Compostelana o desenvolvimento da operação como testemunho principal – e talvez de um grupo reduzido de especialistas em cantaria, foi cavando e tateando, sem ruído, com certo medo, até dar com os sarcófagos, os que julgava serem da sua propriedade episcopal. Trémula a alma ante tais tesouros, bem garantidas as inscrições que davam fé de legitimidade, começava outra sequência, a mais longa, já não tão febril. Sob mil dissimulações e disfarces, as relíquias foram saindo de Braga, percorreram serras e vales, e atravessaram o Minho[16].

Foram cinco ou seis igrejas, talvez dez ou quinze as espoliadas, foram semanas de trabalhos e jogos nas trevas e semanas a aguentar a cara e os nervos, pois até que Diego Gelmírez teve a plena segurança de que o fruto dos seus misteriosos trabalhos estava já em terras galegas, continuou a acompanhar São Giraldo, entre cortesias e presentes e, é de supor, em longas orações. E chegou o dia da despedida. Sumptuoso, o compostelano, em gesto de grande senhor, deu, sem pestanejar, ordens e esmolas para ornamentar as igrejas da sua propriedade, encarrilhou por novas vias a administração das suas possessões, repartiu bênçãos e rapidamente, a cavalo, partiu para Tui. Ali descansou, louvou a Deus, deu graças à Santíssima Trindade. Tinha logrado o maior milagre da sua vida, quiçá o único. A sua Compostela – também no capítulo de abundância reliquiária – já poderia comparar-se a Roma.

Com solenidade, sobre a sua mula, entre o seu cortejo de clérigos e cavaleiros, aproximou-se de Compostela. À sua vista se apeou, rompeu o segredo, lançou notícia e sinos ao vento o povo saiu a uma légua das suas muralhas, cheio de emoção e orgulho, os pés nus, todos a receber entre vivas, com litúrgicas honras as relíquias quase- roubadas. Ou recuperadas, para o culto…

Evidentemente este autor é galego e defende com unhas e dentes a atuação do bispo Gelmírez. Podemos especular em bizantina discussão, se esta “gesta” foi um roubo sacrílego (que é o que parece) ou um pio latrocínio (que é o que se empenha em demonstrar a Compostelana), mas de qualquer modo, Gelmírez não fica muito bem visto.

Não só o que fez, mas como, quando e em que circunstâncias o fez, proclamam a sua culpa. Hoje, ante um tribunal civil e religioso não teria a mínima oportunidade – ainda que as igrejas dependessem da diocese compostelana, os tesouros eram próprios de cada igreja; e ainda que assim não tivesse sido, o modus operandi, em vez de fazê-lo, se fosse o caso, de forma legal, era uma bofetada à dignidade dos bracarenses que, de facto, se amotinaram e causaram todo o tipo de distúrbios quando se inteiraram do sucedido – mas, e ante o tribunal da história? Isto já é mais difícil e não podemos separar os atores do tempo em que viveram e, no fundo, Diego Gelmírez é filho da sua época.

Todo este drama acabou num frio e húmido 19 de dezembro. Com as novas relíquias a fama de Compostela como cidade santa cresceu. Seis anos depois, São Giraldo, um dos artífices da independência portuguesa e amigo do conde Henrique (pai do primeiro rei português Afonso Henriques), morre[17] e as suas relíquias conservam-se na Sé de Braga. Diego Gelmírez doou a Maurício, novo arcebispo desta cidade, metade de todas as suas possessões em Portugal[18]. As relíquias[19] foram colocadas em valiosíssimos relicários e em lugares de especialíssima honra: São Frutuoso na capela de Salvador; as de Cucufate na de São João Evangelista; a de São Silvestre na de São Pedro. E as de Santa Susana na igreja do Santo Sepulcro, no topo da colina – e no castro celta, que leva o seu nome -, que dá para a Catedral[20].

Mais vinte anos de enredo político permitiram a Diego Gelmírez, finalmente, conseguir a dignidade metropolitana para a cidade de Compostela, arrebatando-a, portanto, a Braga. Esta cidade converteu-se no motor da independência de Portugal e o rei Afonso Henriques não deixou que o clero interviesse demasiado nos assuntos de governo, apoiou a sua ação na Ordem do Templo e nomeou bispos por conta própria.

Afonso Henriques. Domínio Público

É claro que a História escreve, como se diz de Deus, direito por linhas tortas, e que as correntes da vontade humana – que chamamos, precisamente, “história” – purificaram as suas águas com estes acontecimentos, como fazem os rápidos e cascatas, deixando atrás de si a rápida espuma branca do triunfo e a alegria da ação altruísta. Depois de muitas vicissitudes e petições, no nono centenário deste roubo sacrílego ou latrocínio piedoso (segundo uns e outros) os restos destes santos voltaram[21] à Catedral de Braga, de modo solene e cerimonial, embora o impacto que causou na sociedade tenha sido mínimo, pois no nosso século as nossas relíquias estão despojadas do seu valor psicológico, tanto, como se duvida da sua autenticidade histórica, que só pode ser assegurada pela tradição.

Diego Gelmírez, o poderoso e audaz bispo que tinha nomeado em Compostela, setenta dos cónegos, tantos como cardeais tinha Roma, cumpriu a sua missão, nunca saberemos até que ponto desinteressado, até que ponto com santas intenções, embora, como em tudo, devamos julgar a árvore sempre pelos seus frutos. Fixemos bem na nossa imaginação e memória o que o ilustre Manuel Murguía diz na sua biografia desta figura heroica da Galiza: “deu lei à cidade, rei à Galiza, marinha militar à pátria, força ao trono, primazia à sua igreja episcopal, justiça aos desvalidos, segurança ao comércio, lar à ciência e protegeu as artes e a poesia”.

José Carlos Fernández
Escritor e diretor da Nova Acrópole Portugal

[1] Adro Xavier, Diego Gelmírez- Reino de Galicia, Siglos XI y XII, Editora Barcelona 1978, pág. 152

[2] A wikipedia diz 1069.

[3] Conta a tradição popular que Afonso VI, o braço executor desta mudança de liturgia moçárabe ou toledana para a romana, tomou um breviário moçárabe e um romano e arrojou ambos ao fogo. Ação que, quiçá, quisesse emular a seleção dos evangelhos canónicos, realizada pelo imperador Constantino – que, não esqueçamos, nunca foi batizado; como ardera só o breviário romano, o rei voltou a atirar ao fogo o moçárabe impondo assim o rito romano. Como diz o refrão: Lá vão leis, onde queiram os reis.

[4] Estas agora chamadas Torres do Oeste, em Catoira, e onde antes os fenícios tinham erigido um farol e depois os romanos uma fortaleza defensiva dedicada a Augusto, “Totris Augusti”, eram chaves para a defesa de Santiago, uma joia muito apetecível para os invasores, quer fossem sarracenos ou normandos desde o século IX ao XII, como antes os vikings o faziam. Neste lugar foi onde Afonso V construiu um castelo para fechar a passagem do rio, estendendo uma cadeia de uma margem a outra. Doou-o e encomendou a Igreja Compostelana em 1024, tendo sido reedificado pela segunda vez pelo bispo Crescónio e depois por Diego Peláez, o bispo que começou a construção da catedral de Santiago.

O então bispo de Compostela, Diego Gelmírez, protagonista deste artigo, impôs no ano de 1108, um tributo com o fim de reunir fundos para completar a reconstrução das torres defensivas. O próprio participou com a sua fortuna pessoal e, finalmente, deu-se mais altura às torres, construiu-se uma igreja, habitações que serviram para se alojar a ele e ao clero, servos e escoltas e estendeu uma ponte para aceder de um modo mais fácil ao castelo, situado em ambas as margens do rio.

Esta construção demonstrou a sua eficácia não só contra os normandos, mas também contra os ataques dos barcos sarracenos nos anos de 1122 e 1134.

No escudo da cidade, que se encontra em Catoira, ainda se conserva como motivo central as fortalezas que Gelmírez construiu.

[5] Outros mosteiros, chamados de “herdeiros” eram propriedade da família fundadora, cedidos, portanto, de pais a filhos. Geralmente, além de serem “dúplices”, neles era o herdeiro do fundador quem nomeava todos os cargos eclesiásticos, inúmeras vezes sem a mínima preparação religiosa nem sequer de cultura em geral. Mosteiros, no entanto, necessários nesses tempos tão tumultuosos. Em palavras de Adro Xavier: No meio da marejada quase geral emergiram estes “herdeiros” como uma tábua de salvação. Salvação para a crise religiosa, mas com um eco fundamental de sociologia. Repovoavam zonas e comarcas, criavam novas fontes de riqueza, organizavam a agricultura, fomentavam o comércio e, além disso, eram sem dúvida, centros de estudo e cultura. O seu papel, portanto, era valioso, melhor ainda, decisivo e, por conseguinte, era muito perigoso meter-se com eles, pois não se podia facilmente manter o seu labor frutífero e arrancar a erva-daninha dos abusos (pág. 179 da obra citada). Uma das batalhas mais esforçadas nesta área para o bispo Gelmírez foi o caso do abade Pedro, do mosteiro de São Paio de Antealtares, narrado na obra “Compostelana”. Segundo conta, este jovem tinha sido de conduta piedosa e exemplar, mas ao receber o báculo subiu-se-lhe o sangue à cabeça e montou o único harém que se tem oficialmente memória em Santiago de Compostela, com mais de setenta monjas que eram as suas concubinas. Depois de muitas admoestações e tentativas de salvar aquela alma, finalmente o bispo Gelmírez destituiu-o num capítulo geral presidido por ele mesmo.

[6] Pág. 20, Madrid, 1941.

[7] Braga era a sede arcebispal e, portanto, quem regia, eclesiasticamente, todas as terras da Galiza. Teoricamente, esta função residia em Mérida (a antiga capital da Lusitânia na época romana e depois visigoda), mas devido a estar, nesta ocasião, sob o poderio muçulmano, as funções reitoras tinham passado para Braga, até que a Compostela de Diego Gelmírez se levantou como um gigante armado e com todas as prerrogativas.

[8] Este fez dele, finalmente, e como prémio aos esforços de toda uma vida, arcebispo e legado pontifício que podia, portanto, convocar concílios exigindo a assistência dos bispos do Porto, Coimbra, Tui, Orense, Lugo, Mondonhedo, Salamanca, Ávila e, também Braga, a quem arrebatava, portanto, a dignidade metropolitana. E não só dignidade, mas também poder. Segundo escreveu Hincmaro, prelado e conselheiro do rei francês Carlos, o Calvo, aos metropolitanos competia a aprovação e consagração dos bispos, convocar e presidir sínodos provinciais, nomear administradores das sedes vacantes, a potestade para julgar os bispos sufragâneos ou de admoestá-los quando não obravam retamente, direito para inspecionar todas as dioceses da sua província eclesiástica (Adro Xavier, obra citada, pág. 239).

A palavra arcebispo, que era inicialmente um título de honra dos bispos que tinham recebido de Roma o pálio, desde o século IX começa a substituir a designação de “metropolitano”. Assim colocava Compostela ao nível das arquidioceses de Tarragona e Toledo, mas de facto e dada a importância crescente política e espiritual desta cidade galega, convertia-a na mais importante da península, mais ainda que Toledo, sede arcebispal e capital do reino em tempos visigodos. Assim pôs fim à hegemonia de Toledo como sede metropolitana decretada pelo rei visigodo Gundemaro (610-612).

[9] E, no entanto, um dos seus predecessores na sede compostelana, Crescónio Trava, por se intitular “Bispo da Sede Apostólica” foi fulminado com aparatosa excomunhão. Compostela, um século antes, era só uma diocese dependente de Iria Flavia, onde residia o bispo. O “poder” foi transferido desta última cidade à primeira, e Iria Flavia ficou como Colegiada.

[10] Nome, que por certo, não significa etimologicamente, o “Campo da Estrela”, campus stellae, denominação que adquiriu a posteriori e com forte carga emocional e “mitológica” – que faz referência à estrela milagrosa que ali parou para anunciar o sepulcro apostólico. Mas, como afirma a Crónica Irense, vem de compostum e tellus, ou compostile, que significa terra em que se depositam os cadáveres. Este lugar era um cemitério sagrado desde épocas muito anteriores ao Império Romano e, segundo alguns investigadores, lugar de peregrinação desde o neolítico, como tumba ou lugar de repouso de um grande rei ou guerreiro aparentado ao ciclo “mítico” do Rei do Mundo – valor simbólico e mágico depois assumido pelo apóstolo São Tiago, de quem não há a mínima prova, verdadeiramente histórica, de ter viajado alguma vez até à Hispânia.

[11] De pouco serviu esta excomunhão, solenizada no Concílio de Reims em 1049. Tanto Crescónio como os seus sucessores continuaram a usar este título.

[12] Evidentemente, também não há nenhuma prova válida para um investigador não preconceituoso, de que São Pedro tenha estado alguma vez em Roma; mas é que, não o esqueçamos, os motores da história são de ordem psicológica e de origem espiritual (a Vontade de Ser, de Schopenhauer), e estes trabalham melhor, muitas vezes, sobre a fértil terra dos mitos que sobre as tantas ocasiões esquecidas ou rejeitadas dos factos objetivos. E além disso, em todos os mitos dorme sempre um facto histórico, ainda que este seja de natureza diferente daquilo que creem os fiéis.

[13] No Concílio de Clermont-Ferrand, no ano de 1095, sendo Papa Urbano II, no qual se declarou a primeira Cruzada.

[14] A bula em que isto se afirma é de grande interesse. Diz: Assim como os vossos predecessores tiveram a sua cátedra espiritual na cidade que se diz Iria, assim em diante, e perpetuamente, deveis tê-la na cidade chamada Compostela, onde está a igreja em que, se crê, descansa o corpo do beatífico São Tiago. Além disso, por singular devoção ao beatífico São Tiago, concedemos que tanto tu, como em diante, os teus sucessores, a nenhum metropolitano estais sujeitos mais que ao de Roma e que todos os que sucederam na própria sede sejam consagrados por mãos do Romano Pontífice (Adro Xavier, pág. 223)

As letras em negrito indicam que naquele tempo, a própria Roma, e o próprio papa, tinham as suas dúvidas razoáveis a respeito de que os restos ósseos fossem do apóstolo São Tiago.

[15] Na Compostelana está escrito, literalmente “…doendo-lhe muito que já não se prestasse culto aos corpos santos que guardavam, pensou logo em libertá-los do esquecimento em que se lhes tinha…” Hugo, cónego e discípulo de Gelmírez, ele ou um dos escritores da Compostelana afirma que todos consideraram na comitiva de Gelmírez a sua ideia como uma inspiração divina (Adro Xavier)

[16] Em nota à margem, escreve o próprio Adro Xavier: Diz a Compostelana, com generosidade de pormenores, que quando a caravana das relíquias chegou às margens do Minho, o rio ia desmandado e com cara de muito poucos amigos, que era de todo impossível de cruzar. Contudo, dadas as pressas, o medo e a confiança em Deus, Hugo – o próprio cronista, chefe da expedição – decidiu meter-se e metê-las na barca. E a ponto das águas se amansarem, acariciaram os costados do transporte santo, e assim se demonstrou a conformidade e aprovação do céu ao sucesso. Passados poucos dias Gelmírez passou o rio, já calmo, e reuniu-se com Hugo e a sua carga, em Tui. Dali avisaram o cabido compostelano para que organizasse a receção no momento oportuno. Obra citada, pág. 231.

[17] 5 de dezembro do ano 1108.

[18] O que foi vital para as futuras pretensões de Afonso Henriques. Não se podia conseguir a independência política sem antes ter conseguido a religiosa, que afetava mais profundamente as raízes populares.

[19] Os restos mortais de São Frutuoso e Santa Susana, São Silvestre e São Cucufate, a cabeça de São Vítor e toda uma série de objetos de valor inapreciável que, dizia-se, tinham sido tocados pelo próprio Cristo em vida.

[20] Hoje, lugar privilegiado pelo seu encanto, com uma estátua à insígnia poetisa galega Rosália de Castro. Na época de Gelmírez este lugar era chamado Outeiro dos Potros.

[21] Na realidade não voltaram todos, mas menos de metade, e não voltou, desde logo, a cabeça de São Vítor. Chegou-se à solução salomónica de dividir em dois os ossos, para que assim possam ser adorados em ambas as cidades. Dos ossos que há a pares separou-se um e não mais que “uma seleção representativa de todo o corpo”. O bispo de Compostela, Julián Barrio, afirmou, diplomaticamente, que a “transladação dos três santos serviu para unir ainda mais, se possível, as duas igrejas metropolitanas”. São Frutuoso já tinha sido devolvido em 1966 e foi recebido, em tempos de Salazar com honras de Estado, incluindo uma companhia do exército luso formada na fronteira.

Imagem de destaque: Diego Gelmírez diante Fruela Alfonso e Pedro Muñiz. Manuscrito Tumbo de Toxosoutos (século XIII). Domínio Público