Meu nome é Möassy… perdão, Doutor William Ferdinand Möassy.

Esta é a verdadeira história da minha vida. É tão incrível que não pedirei a ninguém que acredite nela. A verdade, porém, é sempre inacreditável; não há nada mais verosímil que a mentira.1

Eu, hoje Dr. William Ferdinand Möassy, honrado tantas vezes por diferentes países do globo, e que ocupei cadeiras universitárias e legislativas, sou… sou um cachorro… sim, ride ou assustai-vos, sou um cachorro. Um cachorro que teve pelo vermelho, um rabo batedor e um nariz farejador e tranquilo. É somente a minha aparência a que se transformou, mas eu sou um cachorro.

Agora, que conheceis o meu segredo, continuarei tratando de vos explicar a minha transformação e como compensei a minha falta de inteligência com o pouco uso que da sua natural inteligência fazem os homens.2

O meu novo dono era um ancião agradável, extremamente sábio e bondoso.3 Eu vivia somente para agradar àquele, meu benfeitor, e ele havia depositado em mim uma inusitada atenção. (…) eu, instintivamente, sentia que um estranho pacto estava travando-se entre nós os dois. Eu o amava como tão só pode amar um cachorro.4

Möassy, el perro. Nueva Acrópolis

Eu não sabia a que se propunha o meu benfeitor, mas intuía que o trato que me dava era impróprio da minha raça; que algo extraordinário estava a fazer comigo, algo misterioso e terrível, ao qual temia, mas ao mesmo tempo, desejava levar a cabo.5 Com infinita paciência foi transformando-me cada vez mais em forma humana.

Ao término de uns dez anos havia tomado a aparência de um humano de pouco mais de trinta anos.6

O meu benfeitor era oriundo de um grande país onde as lutas de classes e perseguições fizeram-no emigrar. Num atentado, havia perdido toda a sua família. Para superar essa dor havia-se refugiado vários anos num mosteiro tibetano, até que ao mosteiro chegaram também as ondas vermelhas da guerra, e foi destruído. O mosteiro… e, de certa forma, ele mesmo. Daí, desesperançado, foi refugiar-se na enorme residência, rodeada de muralhas como uma fortaleza.

Durante muitos anos trabalhou nos sótãos imensos, montando um complexo laboratório secreto. Quando me encontrou, dizia-me, havia-se cumprido o seu desejo, pois, segundo ele, havia-me chamado e, ainda, havia-me feito nascer para um só fim determinado7: tornar-me humano.

Depois da morte do meu querido benfeitor, tornei-me herdeiro da sua enorme fortuna e iniciei a minha descoberta do mundo.

Há algo que não vos esclareci o suficiente: o meu aspecto jamais ficou totalmente humano, porém muito depois soube que os homens haviam esquecido de olhar-se nos olhos, no rosto, diretamente, e assim, como ninguém nunca se interessou por isso, jamais fui descoberto.

(…) comecei uma série longa de viagens, sem rumo fixo, sem destino neste mundo horizontal, mas tratando sempre de vislumbrar os dois infinitos.

Para melhor êxito dos meus propósitos, e antes da minha partida, dediquei-me um ano a estudar a enorme biblioteca privada do meu mestre e protetor. Visitei o seu túmulo. Imaginei o meu. Meditei nas longas noites e li dezenas de volumes. Escutei música, admirei obras de arte e refugiei-me aos entardeceres no museu da mansão, sentado na penumbra, vendo como os brilhos e cores das peças egípcias variavam a cada passo do sol e a cada salto das sombras.8

Em dois meses estava tudo pronto para a minha partida. O meu navio, agora disposto como um iate gigante, (…) um exclusivo e flutuante hotel de primeiríssima categoria.

Tomei quatro letras ao acaso e as fiz colocar, enormes, sobre a proa e popa do meu navio. Eram: D, R, O e C. Não sei por que as elegi, porém vereis que elegi bem, que é prerrogativa dos que não pensam, como os cachorros. Estavam montadas sobre um sistema de orifícios que permitiam alterar a sua ordem em várias combinações, segundo eu desejasse… ou melhor, segundo desejassem os homens, que sobre isto sempre souberam mais do que eu.9

As viagens de Möassy pelo mundo:

Möassy, el perro. Nueva Acrópolis

Na sua primeira viagem, o seu navio intitulou-se Cidade Divina Omnipotente Restaurada.

Nesta primeira escala, deparou-se com uma sociedade de cariz religioso e liberal que, para manter o poder, concedia indulgências aos delitos morais. O povo era mantido numa ignorância beata e a juventude era aliciada com uma pseudoliberdade que acabava em licenciosa libertinagem. Sociólogos e economistas assumiam o lugar de sacerdotes, incentivando os jovens a emanciparem-se das antiquadas regras morais, preferindo adaptar-se aos novos tempos com a crédula esperança que, uma vez saciados os interditos, a bonança e a ordem voltariam por si mesmo.

Na sua segunda viagem o seu navio intitulou-se Definitiva Revolução Obreira Comunista.

Aqui, encontrou um sistema bem montado de dados e estatísticas. Mostraram-lhe o seu armamento altamente sofisticado, a sua tecnologia industrial, mas não havia rostos humanos por detrás das suas máquinas. O povo tinha de trabalhar arduamente para sobreviver, vivia austeramente e a suas casas mais pareciam uma aglomeração de caixas cinzentas, tristemente despersonalizadas. Este enorme país tinha-se convertido num viveiro do materialismo, e o operário era um mero número na grande cadeia de produção. Sob o leme da luta de classes, eliminavam-se os divergentes que destoavam da massa, uniformizada pelo mais baixo. Neste mundo horizontal desprovido de sonhos, só os heróis da revolução tinham lugar de culto, já que a religião era considerada o ópio do povo.

Na sua terceira viagem, o seu navio intitulou-se Ordem Capitalista Republicana Democrática.

Nesta metrópole cosmopolita, dividida em bairros separados, coabitavam pessoas de várias etnias. Entre os gigantescos arranha-céus, com as suas avenidas repletas de anúncios luminosos, escondiam-se verdadeiras ratoeiras de clandestinos, desempregados e delinquentes. Os assaltos eram frequentes e as máfias, organizadas em clãs, dominavam os circuitos de vendas de substâncias ilegais. Nesta sociedade, totalmente alienada pelo consumismo, vivia-se num orgasmo de auto-satisfação, sempre à espera de novidades para aliviar o tédio de uma vida vazia de qualquer sentido transcendente. Nesta sociedade, Möassy ficou surpreendido por ver o amor que a gente tinha pelos animais, pois estes substituíam a carência de carinhos e afetos dos humanos. A juventude, detentora de um certo complexo coletivo de culpa, refugiava-se em modelos tribais e, na sua impotência, afundava-se em paraísos alucinógenos ao som de mantras e música psicadélica. Sobre o slogan da liberdade a qualquer preço, o povo mergulhava num materialismo hedonista, onde os corpos serviam de mostruários para o seu culto da imagem. Tinha-se acabado o culto ao bezerro de ouro; agora adorava-se o ouro do bezerro.

As duas superpotências que havia visitado sucessivamente não eram contrárias mais do que nas suas formas de vida e nas suas abstrações. No ideológico, ajustavam-se mais que se completavam. As potências regeneradoras do Espírito não existiam em nenhuma das duas; ambas renegavam suas tradições, e ambas fomentavam de distintas maneiras a dissolução dos elementos armilares da sociedade. Ambas haviam combatido de mil formas os Movimentos baseados na Mística e na Tradição e, igualmente haviam apoiado, dando acolhida aos dirigentes liberalóides e aos bandos que hasteavam as bandeiras vermelhas e negras do anarquismo ateu.10

Na sua quarta viagem, o seu navio intitulava-se: Operativo De Reforma Camponesa.

Neste pais ensolarado do Sul do novo continente, vivia um povo acolhedor e naturalmente alegre. Aqui os senhores da revolução, aqueles que de forma cíclica o povo elegia como salvadores da pátria, tinham como denominador comum a família e os interesses que, somados, davam privilégios económicos e isenção de pena judicial. Nesta terra agora livre do jugo imperialista, encontravam-se com profusão muitos recursos naturais mas, infelizmente, o povo não possuía meios para poder explorá-la, reinando uma pobreza rudimentar. Aqui, gastava-se mais do que se produzia, e o endividamento era a regra geral desta sociedade ociosa. Em todos os sectores faltava gente qualificada, e a falta de infraestruturas básicas mantinha o povo na dependência do comércio e tráfico ilegal. As cidades modernas estavam cercadas de favelas, únicos refúgios dos “sem terra”. A reforma agrária tinha falhado por falta de planificação e de chefia competente. Citando Möassy, “os numerosos braços preferiam inclinar uma garrafa de álcool a empunhar o cabo de um arado”11. Gastava-se fortunas em armas e propaganda em nome de uma nacionalização cheia de promessas que nunca chegara a sair do papel. A juventude acabava nas redes de ativistas contestatários ou emigrava em busca de melhores dias.

Na minha quinta viagem o meu navio chamava-se Raça Oprimida de Cor.

Neste pais tropical do velho continente, agora ocupado por uma supremacia de homens de cor, consideravam-se intrusos os brancos, esses colonizadores que, no passado, usurparam e escravizaram os genuínos descendentes da família humana. A riqueza das jazidas de diamantes e de outros minérios raros permitia aos dirigentes subsidiarem as suas constantes guerrilhas tribais; em troca dos seus diamantes, compravam armas sofisticadas aos seus antigos colonizadores. Longe das cidades, vivia-se pobremente e as doenças tropicais e novas epidemias arrastavam-se por falta de conhecimentos básicos de higiene de vida. A má nutrição e carência de educação iam paulatinamente dizimando a população, que não encontrava outro remédio senão reproduzir-se num ritmo vertiginoso. As crianças malnutridas e condenadas à exploração mineira ou à escravatura sexual eram os diamantes de sangue deste berço da humanidade.

Na sua sexta viagem, o seu navio intitulou-se Caminho Renovado Do Oriente.

A religiosidade deste povo milenar tinha-o levado a abandonar o gosto pela vida digna. A miséria multiplicada por famílias numerosas revestia-se de uma pseudo renúncia, e à custa da pacifica palavra de ordem “não ação”, rios de imundícies inundavam os subúrbios das megalómanas cidades. O sonho da libertação atraía milhares de turistas em busca de alívio civilizatório e entre velhos, esqueléticos e peritos ioguis misturava-se uma colorida indiferença ao valor sagrado da existência. Entre a vida e a morte, cruzavam-se os rios sagrados, lugares de purificação e de cremação. Neste país de profundas contradições, dava-se mais importância às vacas que às crianças desnudas. As vacas vagueavam por tudo quanto é sítio em busca dos prados verdejantes das suas outras vidas, mas só encontravam resíduos do lixo humano. Depositava-se mais alimento e incenso nas mesas de oferenda que em qualquer tigela de um ancião esfarrapado. Nesta sociedade dividida em castas, pagava-se com o desdém as dívidas do passado, e o mais vulnerável dos seus habitantes era o mais desprezível dos seres.

Citando novamente Möassy “Somente se pode abandonar e se libertar de algo, quando se o teve alguma vez”.12

A sua última e sétima viagem.

Möassy escreve:

Nomeio-a assim, contudo não é uma viagem como as outras.

Na verdade, quis lembrar-me das primeiras impressões que alguns países da Terra deixaram em mim, e o que seus habitantes me inspiraram. O certo é que, depois destas viagens, realizei muitas outras, algumas a esses mesmos lugares, outras a diferentes partes do planeta. Passei anos dando aulas, conferências, assistindo a congressos e integrando ministérios. Recebi muitas honras e condecorações. Sofri muito; fracassei em certas coisas; e não faltaram no meu caminho excelentes companheiros de viagem e tampouco traidores”.13

Faz agora 27 anos que partiste para a tua última viagem e, a reler o teu diário, apercebi-me que nada mudou tanto como desejavas. Debaixo da árvore frondosa que te viu nascer, muitas folhas mortas já cairam para deixar lugar a novos rebentos. Neste mundo horizontal, tudo muda de um dia para outro, nada é mais constante que a própria inconstância. Nesta Terra ameaçada pelas chuvas e ventos da História, sucede-se o ciclo do nascer e morrer de novo, perder para ganhar de novo, ter para poder renunciar, quantos mistérios neste mundo ficam ainda para desvendar.

O que mais me tocou nos relatos das tuas viagens, é que nunca deixaste de acreditar e de amar o Homem. Através da tua saudável inocência canina e o teu natural senso comum, mostraste-nos que o maior erro dos teus, agora, irmãos humanos, foi de desejar melhorar as suas vidas excluindo delas o próprio homem. Neste teatro em 6 atos, o Homem sempre quis ser o protagonista de mudanças externas, esquecendo-se de mudar-se a si próprio. Procurou a liberdade fora, entregando-se à tirania dos mais astutos vendedores de utopias, confundiu igualdade com massificação, reivindicou em bom tom os seus direitos, esquecendo-se dos seus deveres. E por último transformou a fraternidade em vínculos de interesses, dividindo o mundo em “ismos” de todas as cores, credos e géneros.

No entanto, a esperança é a última a morrer, e tu ficarias feliz por ver que, apesar do sofrimento, do erro e da ignorância, estamos a caminhar de novo, desejando unicamente voltar a acreditar na nossa própria salvação. Hoje queremos voltar a ser humanos, deixar para trás os falsos argumentos que derrubaram os velhos ídolos do passado. A razão e ciência materialista destronaram os Deuses que nos mantinham erguidos; órfãos de exemplos, fomos obrigados a curvar-nos e a rastejar; mas, mesmo se nos deslumbramos com o progresso da nossa tecnologia, ainda procuramos a partícula de Deus nos confins do universo.

Ah Möassy! Se pudesses novamente olhar para a terra que te viu nascer, verias acontecer prodígios. No nosso planeta azul, milhares de espécies em extinção são agora resgatadas em prol da preservação da fauna e da flora. Documentários maravilhosos mostram-nos os tesouros escondidos da terra e dos oceanos. Novos recursos brotam da escassez e a reciclagem está na ordem do dia, voltamos a respeitar a mãe natureza economizando e protegendo o ambiente. Sem longas deslocações, podemos consultar as infinitas fontes de conhecimentos, podemos comunicar à distância e ver o mundo em “3D”. As artes florescem entre os dedos destas crianças que, no mundo inteiro, nos surpreendem com os seus prodigiosos dons criadores. Mas o mais surpreendente, e talvez o mais belo dos fenómenos sociais, é esta corrente genuína de homens e mulheres solidários que se unem no mundo inteiro para ajudar e auxiliar aqueles que sofrem. Sabes, amigo Möassy , estamos novamente a apreender a ser humanos.

Valeu a pena Möassy! Graças ao teu esforço, foste para nós o mais genuíno e digno exemplo da nossa espécie. Pelo teu amor incondicional, foste fiel ao teu criador que, através de ti, realizou o milagre da vida. Este partilhou contigo o fogo da Inteligência que te consagrou imortal.

Como gostaríamos de partilhar o teu mistério, poder ser ao mesmo tempo infinitamente grande e infinitamente pequeno, forte e sensível, obediente e livre para seguir sem medos nem dúvidas a trilha do Bem comum. Mas, infelizmente, já não somos cachorros e temos que seguir em frente, chorando e rindo das nossas próprias armadilhas. Talvez um dia possamos viver o teu mistério e recordar que também, como tu, fomos terra, água, ar e fogo, mas sobretudo que também, como tu, somos filhos de alguma estrela que, desde o alto, aguarda o nosso regresso. Ensinaste-nos a seguir o caminho vertical, aquele que te manteve em cima do túmulto do mundo, preservando no teu coração a memória do essencial que nenhuns olhos podem comtemplar nem nenhuma palavra pode pronunciar.

Lá, neste lugar sem tempo, onde dormes sereno, enroscado aos pés do teu Pai Celeste, sonho com um cortejo de abelhas que junto a ti voltarão a ser colmeia.

Querido mestre Möassy
Valeu a pena acordares…
Valeu a pena acreditares…
Valeu a pena viveres….
Valeu a pena teres aberto a estrada, porque hoje podemos novamente caminhar vertical.

Quando dorme um cachorro, quando dorme um ente querido, deixai-os dormir. Com os olhos fechados fazemos as melhores viagens. Digo-vos que ameis muito os cachorros, a todos os seres, e até a vós mesmo. Não vos tortureis constantemente e tende piedade do sonho que cresce em vós. É a nostalgia dessa grande viagem, a que fazemos com os olhos fechados.14

Möassy, el perro. Nueva Acrópolis

Françoise Terseur
Anotações

1. Möassy, el perro, Edições Nova Acrópole do Brasil, pag. 6

2. Idem, pag. 11

3. Idem, pag. 12

4. Idem, pag. 13

5. Idem, pag. 15

6. Idem, pag. 16

7. Idem, pag. 17

8. Idem, pag. 29

9. Idem, pag. 30 e 31

10. Idem, pag. 63 e 64

11. Idem, pag. 71

12. Idem, pag. 99

13. Idem, pag. 96

14. Idem, pag. 100

*Os textos em itálico são extraídos da obra Möassy, el perro de Jorge Angel Livraga (Ed. Nova Acrópole do Brasil)