Breve resumo biográfico de Ficino:
Marsilio Ficino nasceu em Florença, em outubro de 1433. Em 1451, recebeu a consagração como clérigo, dedicando-se simultaneamente ao estudo e divulgação do Neoplatonismo, inspirado em fontes antigas como Platão, Dionísio Areopagita, Avicena, Alfarabi, Avicebron, Cícero, Santo Agostinho, Apuleio, Plotino, Calcídio e Macróbio.
Em 1456, iniciou a redação das suas primeiras obras filosóficas: Libri quattuor Institutionum ad Platonicam disciplinam; De laudibus medicinae; De voluptate; De virtutibus moralibus; Compendium de opinionibus philosophorum circa Deum et animam; De furore divino; e De quattuor sectis philosophorum.
Em 1458, o seu pai enviou-o à Universidade de Bolonha para estudar medicina. No ano seguinte, dedicou-se ao estudo do grego, traduzindo várias obras, incluindo os Hinos Órficos e as obras de Hesíodo e Homero.
Ficino foi apresentado a Cosme de Médici, que se tornou seu mentor e lhe ofereceu a Villa de Careggi, para que se pudesse dedicar inteiramente aos seus estudos. Nessa vila, Ficino fundou a Accademia Platonica, um espaço de encontro para grandes estudiosos de áreas como medicina, filosofia, literatura, poesia e artes. Ali, realizaram-se discursos, leituras e conferências públicas sobre Platão e Plotino.
Em Careggi, Ficino foi incumbido por Cosme de Médici de traduzir para latim os textos de Platão. Antes disso, traduziu outros textos gregos que lhe permitiram aprofundar o conhecimento da língua, como os Hinos de Proclo, a Teogonia de Hesíodo, a Argonáutica, o Pimandro de Hermes Trismegisto, os Commentaria in Zoroastrem e a obra de Speusipo sobre as definições platónicas.
Após a morte de Cosme de Médici em 1464, o seu filho Piero di Cosimo tornou-se o protetor de Ficino, continuando a apoiar os seus estudos e as traduções das obras de Platão, bem como as reuniões da academia em Careggi.
Em dezembro de 1473, Ficino foi ordenado sacerdote e, no ano seguinte, Lourenço de Médici nomeou-o reitor da Igreja de São Cristóvão. Em agradecimento, Ficino escreveu o De christiana religione, onde expõe a chamada docta religio. Posteriormente, escreveu as obras De divina providentia, De nominibus Dei, De gaudio contemplationis, De triplici in Deum mentis ascensu, De raptu Pauli ad tertium coelum e De optimo dive.
Entre 1474 e 1475, na Accademia Platonica, celebrou-se o aniversário de Platão com um banquete, momento que Ficino escolheu para apresentar o seu comentário ao Banquete, intitulado Commentarium in Convivium Platonis, dedicado a Lourenço de Médici. Ao traduzir o texto para toscano, Ficino atribuiu-lhe o título Dello Amore.
Em 1482, Ficino apresentou a Theologia Platonica em 18 volumes, onde tratou da imortalidade da alma, em conformidade com o platonismo cristão.
Por volta de 1484, Pico della Mirandola, ainda jovem, juntou-se à Accademia Platonica e tornou-se discípulo de Ficino.
Em 1487, Ficino escreveu as Praedicationes aut conciones e, em 1489, o Liber de vita, onde afirmou ter dois pais: um carnal, Diotifeci, que o iniciara nos estudos de Galeno, e outro espiritual, Cosme de Médici, que o guiou nos estudos de Platão.
O Liber de vita trouxe-lhe ferozes ataques, nomeadamente da Igreja, devido às suas explanações sobre astrologia e magia. Para se defender, Ficino escreveu a sua Apologia, mas as acusações e críticas só cessaram com a intervenção de Lourenço de Médici.
No entanto, os ataques continuaram quando publicou a obra De vita caelitus comparanda, onde se declarava seguidor da magia natural, não profana. Ficino foi então acusado junto ao Papa Inocêncio VIII de praticar magia e necromancia. Graças à ajuda de amigos influentes, conseguiu livrar-se das acusações.
Com a morte de Lourenço de Médici em 1492, começou o declínio da Accademia Platonica. No ano seguinte, Ficino escreveu dois pequenos tratados de astronomia: De sole e De anima.
A 1 de outubro de 1499, Marsilio Ficino faleceu na Villa de Careggi, tendo conseguido ao longo da vida revitalizar a grande tradição neoplatónica. Ficino foi provavelmente quem melhor acolheu e estimulou o espírito de convergência filosófica do Renascimento, unindo “do leste, a filosofia do amor platónico, uma filosofia masculina e esotérica; do oeste, o fluxo do amor cortês renascentista, tradições do amor romântico, feminino e pessoal, vindas da Provença para Itália através da Sicília; e do sul, o fluxo do amor cristão, intelectualizado por Santo Agostinho e ritualizado pela Igreja Romana” (Janyne, 1944).
O “Commentarium in Convivium Platonis” ou “Dello Amore”
O Comentário ao Banquete de Platão é uma obra admirável: por um lado, apaixonante, com páginas repletas de poesia, e por outro, intrigante, com as múltiplas ideias profundas e misteriosas que se encontram subjacentes ao discurso.
Nela, encontramos uma filosofia da imortalidade assente em dois pilares: Deus e o Amor.
Ficino parte das obras de Platão, O Banquete e Fedro, dois diálogos que abordam a relação entre o Bem e a Beleza, mas também de outras obras importantes, como a Ética de Aristóteles e o Lélio de Cícero. A essas, acrescenta a tradição cristã de São Paulo e Santo Agostinho, que ensinavam sobre a dimensão da caridade, bem como os poetas do dolce stil nuovo, como Guinizelli e Cavalcanti. Também a Comédia de Dante e o Cancioneiro de Petrarca serviram de inspiração.
Assim, Ficino procurou realizar uma síntese da filosofia do amor, não apenas unindo ideias, mas com uma profunda clareza mental teceu laços de união entre elas, criando uma nova abordagem que serviu de inspiração para o seu tempo e todo o Renascimento.
O Commentarium in Convivium Platonis ou Dello Amore começa com a procura da origem do Amor. Através de Giovanni, um dos intervenientes no banquete, Ficino refere que existem três realidades: o mundo das ideias, a alma universal e o mundo sensível. A Essência primeira era obscura até que Deus lhe deu forma e criou a realidade a partir da inteligência espiritual, a que Platão chamou Ideias e que a religião grega personificou através das suas várias divindades. Assim, a passagem da essência (caos) ao mundo (cosmos) só foi possível graças ao Amor de Deus, que lhe deu forma e o tornou belo. Eros surge, assim, como o mais jovem e o mais antigo de todos os deuses, porque primeiro existiu o amor de Deus pelas criaturas e, depois, o amor das criaturas por Deus, estando, portanto, o amor no princípio e no fim de toda a criação.
Para explicar a origem e a natureza do Amor, Ficino, seguindo as concepções neoplatónicas, às quais não é alheia a tradição cristã do Fiat Lux, apresenta um modelo cosmogónico em que Deus/Bondade é representado como um ponto central da circunferência, indivisível, a partir do qual ocorre o processo de emanação, como uma propagação ou fluxo da luminosidade divina. Deus revela-se como o fundamento da beleza, expressando-se a si mesmo na beleza — ou melhor, a beleza manifesta-se como o esplendor do divino e de toda a sua bondade, que emana desse ponto indivisível em quatro círculos: o intelecto (mente angélica), a alma (alma do mundo), a natureza e, por fim, a matéria. Estes quatro círculos, que constituem toda a realidade criada, são a manifestação dessa beleza, desse esplendor divino. Para Ficino, a dimensão amorosa e contemplativa, que constitui o amor, apresenta-se como um desejo pela beleza, sendo através dela que se chega ao Bem.
Ficino afirma que é através do amor humano, do amor ao outro, que se revela a possibilidade de a alma humana se desvelar a si própria, ou seja, de descobrir a sua própria natureza, a essência divina da alma, e, consequentemente, a sua necessidade de ascensão ao divino. Este amor conduz ao processo de esquecimento de si própria e da sua natureza, que advém da queda ontológica, da descida da alma para os corpos. Assim, emerge uma etapa fundamental para o caminho de retorno, para a ascensão à bondade divina e o retorno à unidade.
O processo de abandono e esquecimento de si revela-se literalmente como uma espécie de morte, em que nesse místico ‘dar e receber’ se desvela uma ressurreição, um renascimento no outro, no amado. O amante que se esqueceu completamente de si próprio, abandonando-se ou lançando-se para o outro, concede-lhe, de certa forma, a sua própria vida — ou seja, o amante que morre em si e renasce no outro, ressuscita no amado. Para Ficino, esta ressurreição, este renascer ou reviver no outro, implica um processo de desvelamento de si mesmo, de autorreconhecimento e de autocompreensão no outro, processo que fundamenta uma descoberta ou redescoberta da sua dimensão mais profunda e da sua verdadeira natureza. Assim, ao amarem-se mutuamente, cada uma das suas almas torna-se uma espécie de espelho onde a imagem do amante é refletida e onde se reconhece a própria beleza na beleza de outrem.
Ficino vê neste Eros sublime, que é Ordem e Beleza, o motor do poder criativo que aspira à imortalidade da alma, pois, através da busca da Beleza, torna-se a “cópula mundi” e transmuta a estética numa ética e amor divinos. O amante é o filósofo-mago por excelência, aquele que busca a Sabedoria, que ama a Verdade, que é Bondade e Beleza. Como diz Ficino: O Amor “precede o mundo, desperta quem dorme, ilumina o que é obscuro, ressuscita o que está morto, dá forma àquilo que é informe e aperfeiçoa o que é imperfeito.” Por isso, Ficino afirma que os benefícios do amor são tão grandes que mesmo os castigos divinos podem ser vencidos por intermédio de Eros.
Ficino vincula a dimensão profunda de Eros aos sentidos da visão e da audição, pois o Amor, para além de Ordem, é a “beleza das almas, dos corpos e das vozes. A das almas conhece-se pela inteligência, a dos corpos percebe-se unicamente pelos olhos e a das vozes só pelos ouvidos… Enquanto o desejo que nasce dos outros sentidos não é propriamente amor, mas sim libido e fúria” (Ficino).
A alma procura conhecer as diferentes manifestações de beleza através de duas vias: a razão e a sensação, utilizando seis instrumentos diferentes, cada um associado a um elemento. Assim, três alimentam o espírito: a razão (divindade), a visão (fogo) e a audição (ar). E três servem o corpo e se relacionam com a matéria: o olfacto (vapor), o paladar (água) e o tacto (terra).
Assim, o tacto, o paladar e o olfacto são sentidos do domínio da matéria, ao passo que a razão, a visão e a audição pertencem à esfera espiritual. A beleza de alguém agrada à alma do outro não pelo que a caracteriza enquanto aspecto ou matéria exterior, mas pela imagem transmitida à alma pela visão e sentida, ou construída, pela própria alma. Assim, a escolha do ser que é ou não belo depende de cada alma. Comentando as palavras de Fedro, Ficino refere três espécies de harmonia: a beleza das almas, que conhecemos pela inteligência e resulta do equilíbrio das virtudes; a dos corpos, que nos é dada pelos olhos e corresponde à harmonia das diferentes cores e linhas; e, finalmente, a das vozes, facultada pelos ouvidos, que chega através do acorde de diferentes sons. A alma alimenta-se de Verdade e ama aquilo que deseja para si, ou seja, a virtude do espírito, a beleza das figuras e a harmonia da voz. Todas as restantes qualidades dos corpos, apreendidas pelos outros três sentidos, servem apenas para experimentar coisas simples como o calor e o frio, o mole e o duro, algo que em nada se compara à beleza do corpo humano que requer a simetria das diferentes partes. O que nasce, pois, desses “vis sentidos”, com a sua violência arrebatadora, e que é causa da perturbação da inteligência humana.
Esta relação entre os olhos e os ouvidos como sentidos do Eros superior reflete a importância que o Renascimento atribuiu às artes, especialmente à pintura e à música, como meios de a alma humana alcançar a Estética e a Ética superiores. Inevitavelmente, encontramos aqui expressa a máxima do filósofo Plotino que tanto inspirou Ficino: “Cada alma é e se torna naquilo que ela contempla.”
Este processo de génese só é possível porque tanto o corpo como o espírito são fecundados por sementes que desenvolvem o poder criativo do ser humano. O sémen da alma encerra as imagens (rationes) daquilo que a alma procurará alcançar ao longo da vida; por isso, emite juízos com base em conceitos prévios e age de acordo com uma tendência inata para desenvolver determinadas artes e ciências. A forma como essas rationes surgem nas almas é expressa no Livro VI da “República” através da imagem do Sol que liberta as trevas e ilumina as mentes. Ficino estabelece uma correspondência simbólica entre o astro solar e a ação de Deus, que infunde as razões no espírito humano, concedendo-lhe o dom de vislumbrar as ideias superiores através da luz divina e do estudo contemplativo.
Partindo da concepção pitagórica da génese tripartida da vida, Ficino expõe a formação do mundo em três momentos que revelam a trindade das qualidades divinas: a Bondade, quando cria; a Beleza, quando seduz; e a Justiça, quando aperfeiçoa. Assim, a Beleza deriva da Bondade e caminha para a Justiça. Deus é, assim, o princípio criador, o meio sedutor e o fim aprimorador de toda a cosmogonia. A Beleza divina gera o Amor ao atrair o mundo na procura de se aperfeiçoar através desse sentimento. Na obra, e através do interlocutor Bencio, introduz a ideia da elevação do discípulo desde os níveis inferiores aos superiores, percorrendo os quatro graus de realidades. Essa ascensão de autonomia e perfeição coloca na base o corpo; depois, a alma, que se move por si mesma, mas possui apenas uma capacidade parcial de compreensão; em seguida, a inteligência superior; e no topo, Deus, a unidade total e perfeita. Assim, o divino Uno encontra-se acima do tempo, da mudança, da divisão em partes e do espaço. O anjo, por sua vez, não está livre da divisão, mas não depende da mudança nem do espaço, contrariamente à alma, que é composta por múltiplas partes e depende das alterações e dos fatores de mudança, embora seja independente dos condicionalismos espaciais. O mais instável é o corpo, que se encontra submetido a todas essas circunstâncias.
Ficino, através do interveniente Landino, afirma que os homens, em tempos recuados, eram unos porque eram almas puras, dotadas de duas faces: uma delas infundida para ver os seres superiores, e a outra inata para ver os inferiores. Mas, ao quererem igualar-se aos deuses, foram castigados com a prisão no corpo. A propriedade da luz atribuída por Deus determina a natureza da criatura, que pode ser tripla, em função da virtude aplicada no momento da criação: a coragem origina os seres masculinos, associados ao Sol, que dá luz; a temperança origina os femininos, associados à Terra, que recebe a luz; e a justiça origina os andróginos, associados à Lua, que recebe e reflete a luz.
A anima, depois de aprisionada no corpo, e através da experiência, vai tomando consciência da existência da dimensão que se encontra para além da matéria e quer conhecer o Arquitecto do Mundo, procurando a luz divina que então desprezou. É dessa busca que nasce o amor, que permite transformar todos os caminhos trilhados na reconquista da sua parte amputada, conduzindo assim o homem à felicidade através das quatro virtudes: a Prudência, acima de todas, a Coragem, a Justiça e a Temperança. Essa busca da luz de Deus só será possível para aqueles que reconhecem as limitações da sua natureza, e que é impedida de ser reconhecida devido ao orgulho e à arrogância.
A atração pela beleza humana é explicada como sendo uma resposta a uma ideia que o Homem faz de si próprio e que a nossa alma recebeu de Deus. Mesmo tendo descido até ao mundo dos corpos, a alma conserva essa ideia. Estar em consonância significa que a forma exterior coincide com a forma impressa na alma; assim nasce o amor. Se, pelo contrário, a imagem corporal não se harmoniza com o modelo que reside na alma, surge o ódio. Desse modo, quando alguém se apaixona pela figura de outro, fá-lo sentindo parecer já o conhecer.
A beleza consiste, por isso, numa imagem espiritual de um corpo cuja natureza incorpórea é a mesma da virtude divina, que, como um raio de luz fecundante, penetra todas as suas criaturas, tornando-se espelhos da face una de Deus. Essas imagens serão tanto mais perfeitas quanto mais próximas estão da fonte. Espelham-se como exemplares e ideias, nos anjos; razões e noções, nas almas; formas e imagens, na matéria do mundo. A beleza de Deus encontra-se, pois, em todas as suas criaturas, apesar de só se tornar visível quando iluminada pela luz do Sol, pois, apesar de a percepcionarmos pelos olhos, só a podemos conceber espiritualmente.
A alma recebe os sete dons divinos antes de ser revestida pelo véu (spiritus) que a isola do corpo. Cada um desses dons é regido por uma entidade superior através dos demónios intermediários que lhe estão subordinados: Saturno governa o dom da contemplação, Júpiter o do comando, Marte o da coragem, o Sol o da clarividência, Vénus o do amor, Mercúrio o da expressão e a Lua o da geração. A influência sobre cada ser é marcada pelo anjo mais forte no momento da concepção e do nascimento. Ficino afirma que, sendo o Amor um dom de Deus e Vénus podendo ser simultaneamente considerado deus e demónio, também se pode considerar um demónio venusiano. Estes demónios lançam flechas sobre homens de diferentes temperamentos, sabendo que os mais propensos ao amor são aqueles que obedecem a Júpiter, Apolo, Marte, Juno e Vénus, e geralmente são atraídos por elementos do mesmo ascendente. No entanto, para Ficino, não é apenas esta simpatia que desencadeia o enamoramento, mas também intervém uma espécie de reminiscência, pois as almas, quando influenciadas por um dos astros, são habitadas por uma ideia, levando-as a reconhecer na terra outras almas que correspondem ao seu ascendente. Identificam-se com elas e daí nasce o amor. Sendo o homem constituído por três elementos: a alma, o sopro vital e o corpo, a descoberta do amado inicia-se através dos olhos, que captam informações, e passa depois pelo sopro vital, que transmite a sensação à alma, a qual determinará se é harmónica com a ideia que nela habita.
Inspirado pelo diálogo platónico, as quatro qualidades tradicionais inerentes à aretê orientam o comportamento de Eros e nele imprimem o respeito pela justiça, já que o amor rejeita a violência e pressupõe a concordância voluntária entre as partes; a capacidade de temperança, pois é o mais forte de todos os prazeres e domina os instintos, tal como Afrodite venceu Ares, o mais aguerrido dos deuses; e a coragem, porque inspira a defesa dos amados. O Amor é justo porque produz harmonia recíproca, é temperado porque respeita a ordem da Beleza, é corajoso porque inspira a defesa dos amados e é sábio porque é mestre de todas as artes, aparecendo no texto como “o piloto, o marinheiro, o camarada e o salvador por excelência”.
Na sua obra, encontramos uma ideia que estará presente ao longo de todo o humanismo renascentista e que visa tornar o ser humano participante da Luz Divina, colocando nas suas mãos o seu destino e as suas obras. É através do livre-arbítrio que o homem se converte em homem e só assim pode assemelhar-se a Deus; somente através do seu discernimento do que é sublime e divino pode aspirar à harmonia do mundo celeste. Pico della Mirandola também refere isto, afirmando que a dignidade do homem não reside na sua perfeição original, mas sim na sua capacidade de ordenar livremente o “caos” originário através do amor.
Coloquei-te no centro do mundo, para que possas mais comodamente olhar ao teu redor e admirar tudo o que há neste mundo. Nem celeste, nem terrestre te fizemos, nem mortal, nem imortal, para que tu mesmo, como modelador e escultor de ti mesmo, ao teu gosto e honra, forges a forma que preferes para ti. Poderás degenerar até ao inferior, com os brutos; ou poderás realizar-te junto das coisas divinas, por tua própria decisão.
Picco della Mirandola, A Dignidade do Homem
Na exaltação que Ficino faz do Amor contemplativo, o Eros virtuoso, refere que este está sujeito à prova da beleza do corpo, que pode ser transcendida através da inteligência e da virtude, tal como Platão menciona no Fedro ao descrever o amor como uma espécie de “enfermidade ocular” que não distingue entre amor e paixão.
Esta ideia é ilustrada pelo mito do nascimento de Eros, que recebeu diversas interpretações ao longo do mundo clássico, incluindo as de Plutarco e Plotino. O mito narra que, durante a festa em honra do nascimento de Afrodite, a Pobreza (Penia) aproveitou a embriaguez do Engenho (Poros) e concebeu o Amor. Daí a sua natureza dupla: indigente e miserável, mas ao mesmo tempo ousada e inventiva, o que lhe confere poderes de “hábil feiticeiro, mago e também sofista”. Entre os principais pontos simbólicos destacados no diálogo estão: o aniversário de Vénus, interpretado como o momento de criação da alma do mundo; o festim dos deuses, ou seja, Júpiter, Saturno e Céu, que precedem a própria geração do universo; a união de Poros e Penia, que simbolizam a riqueza da alma, após ser iluminada pelo raio divino, e a sua pobreza primitiva; e os Jardins de Júpiter, que representam a fecundidade dormente do anjo, que só se manifesta depois de despertada pelo desejo inflamado pelo amor. O nascimento de Eros é interpretado como um fervor incitado na alma pelo raio de Deus, enquanto a alma ainda vivia na obscuridade. Esse ardor desperta no homem o desejo de superar a sua condição natural miserável, com os olhos postos na plenitude divina, e através do despertar da mente, descobrir os mistérios do Universo. Contudo, como a força geradora do Amor oscila entre o humano e o celeste, ele é considerado deus quando se dirige para a esfera superior e demónio quando se volta para a inferior. Os pés descalços de Eros representam a constante vulnerabilidade do amor diante de todos os perigos, enquanto a sua postura humilde simboliza a entrega altruísta ao ser amado. O Amor é visto como sem-abrigo, pois o pensamento do amante se afasta da sua própria alma para residir, exilado, no amado, em perpétua inquietação. A nudez de Eros reflete a incapacidade de esconder ou disfarçar os sinais externos que revelam a intensidade da sua presença. Ele dorme pelos caminhos sob o céu estrelado, caminhando incessantemente numa vontade constante de atingir o Bem, sujeitando-se a qualquer intempérie.
Ficino reconhece a influência de cinco demónios amorosos no homem, sendo dois deles de natureza eterna: um que desperta o entendimento da Verdade (calodemon), e o outro, a procriação carnal (cacodemon). Os demais são considerados intermediários, pois desenvolvem vínculos muito instáveis. Todos começam no olhar e podem evoluir num sentido ascendente ou descendente, de acordo com a natureza de cada ser. No homem contemplativo, o amor progride dos olhos para o espírito e é assim denominado de divino; no homem ativo, permanece no plano visual e é designado por humano; no carácter voluptuoso, decai dos olhos para o tacto e toma o nome de selvagem.
O interveniente no Dello Amore Tommaso, compara a Beleza à luz, afirmando que apenas Deus possui esse brilho na sua plenitude. A luz que transmite aos outros seres é apenas uma pálida sombra, que se torna progressivamente menos brilhante à medida que se afasta da fonte original. Este afastamento provoca um efeito devastador na alma, levando-a a desconsiderar a sua própria beleza e a seduzir-se pela aparência dos corpos, criando uma atração pelo eterno abismo. Esta ideia é desenvolvida nos capítulos finais do sexto discurso, particularmente no décimo sétimo capítulo da sexta parte, que se debruça sobre a interpretação do discurso de Sócrates e Diotima. Ficino inclui aí o Mito de Narciso, que não aparece no Fedro de Platão. É significativo o facto de ter optado pela versão da tradição órfica do mito, em vez da mais conhecida relatada por Ovídio. Para os neoplatónicos, os textos órficos são a fonte principal e primordial da filosofia platónica.
Para Ficino, a sabedoria órfica era um elo fundamental de uma sabedoria esotérica perene, originária de uma revelação primordial que deu origem às grandes tradições e correntes filosóficas e herméticas, assim como aos modelos teológicos e religiosos transmitidos por iniciados e grandes sábios. A transmissão desses mistérios divinos, com raízes persas e egípcias, para a cultura grega, baseava-se em Orfeu, passando por Pitágoras e Platão. O conhecimento de Marsílio Ficino da tradição órfica é, por um lado, fundamentado em várias passagens das obras platónicas e na literatura das tradições platónicas posteriores, e, por outro, em um extenso corpus poético, composto pelos hinos órficos que circulavam entre os filósofos e intelectuais florentinos. Assim, é bastante relevante a presença, nos textos de Ficino, da conceptualização ou interpretação desses hinos como textos sagrados ou divinos, representando a plena manifestação de uma poesia teosófica, onde, por detrás do véu das imagens mitológicas, se encontram as verdades mais profundas.
Assim nos descreve o mito de Narciso no Dello Amore:
Daí a trágica sorte de Narciso, relatada por Orfeu. Daí a lamentável calamidade do homem. Narciso, um adolescente, ou seja, a alma do homem imprudente e inexperiente. Não contempla o seu próprio rosto, não presta atenção à sua própria substância e à sua própria virtude. Mas admira o seu reflexo nas águas e procura-o agarrar, ou seja, a alma admira no corpo, que, tal como a água, é efémero e em fluxo, uma beleza que não é senão uma sombra da sua própria. Ele afasta-se da sua própria beleza, mas nunca consegue alcançar a sombra, que escapa sempre, ou seja, a alma que se apega ao corpo negligencia-se a si própria, nunca sendo saciada pelo uso do corpo. Com efeito, não é o corpo em si que ela deseja, seduzida, tal como Narciso, pela beleza corpórea que não é senão um reflexo dessa beleza, mas é a sua própria beleza que anseia. Mas como ela não se apercebe disso, enquanto deseja uma coisa, ela persegue uma outra coisa e é incapaz de satisfazer o seu desejo. É por isso que, mergulhado em lágrimas, ele se destrói a si mesmo, quer dizer, a alma, colocada fora de si e mergulhada num corpo, ela é atormentada por paixões funestas e, manchada pela sujidade do corpo, ela morre, já que parece ser mais um corpo que uma alma.
O texto revela claramente a concepção do amor de Ficino como um princípio dinâmico presente em toda a natureza e no universo, uma inclinação natural que fundamenta o desejo de beleza, a contemplação das realidades mais elevadas e o autoaperfeiçoamento, numa busca contínua pela plenitude. Assim, a criação é apresentada como um processo de emanação: Deus é o fundamento ontológico de tudo o que existe e, ao mesmo tempo, o modelo fundamental do processo de retorno ao divino, ao desejo de beleza e de aperfeiçoamento.
Narciso é apresentado como um símbolo da alma que se perde, uma alegoria da alma que sucumbe ao fascínio das tentações mundanas e se afasta da sua própria natureza e do seu objetivo: a contemplação das formas eternas. O infortúnio de Narciso revela-se como uma consequência do esquecimento de que a beleza da dimensão corpórea não é senão um reflexo da ideia de beleza na alma. A sua transgressão consiste em ignorar a origem do reflexo nas águas, a matéria, sendo a alma a causa e o fundamento da sombra corpórea. No mito exposto por Ficino, ao contrário de outras versões, Narciso não contempla o seu próprio rosto, mas percebe algo completamente distinto no reflexo instável e distorcido das águas, uma forma de beleza que gera uma dimensão passional infinita e sem qualquer possibilidade de satisfação, uma beleza que não é senão sombra. Narciso simboliza a alma presa ao enganador e ilusório reflexo do espelho da matéria. Esta narração do Mito de Narciso por Ficino é uma metáfora perfeita para o homem possuído pelo desejo devorador de se unir ao reflexo/matéria que identifica como real, num completo esquecimento de que a alma, incorpórea e imortal, é a verdadeira essência por trás dessa imagem.
O mergulho da alma/Narciso na matéria representa o seu próprio desaparecimento, abandonando a sua verdadeira natureza de Beleza e destruindo as asas que lhe permitem voar e elevar-se em direção ao divino, optando por mergulhar na multiplicidade e na mutabilidade das águas da matéria que fluem incessantemente. A alma que se funde com o corpo perde a sua dimensão espiritual, revelando-se apenas como corpo e, como tal, mortal.
No final do Dello Amore, Ficino aborda o tema da melancolia saturnina, tema também explorado em outras obras como De Triplici Vita, descrevendo a influência do deus Saturno, capaz de conduzir ao sublime, mas também de arrastar à destruição através do seu magnetismo negativo. Enquanto a melancolia pode residir no génio e na criatividade do artista, a sua influência vertiginosa pode levar à perversidade, à loucura e à bestialidade. Por isso, o melancólico deve estar consciente dos perigos da sua condição para poder atravessá-los com inteligência, tal como Ulisses atravessou os mares tempestuosos, tornando-se surdo aos cânticos das sereias.
O amor aparece como ambivalente, capaz de conduzir ao “furor divino” através da contemplação da beleza e que leva a Deus, mas também suscetível de arrastar ao furor carnal, desviando-se do seu propósito original e levando à degradação da nobreza do espírito humano. Inspirado pela filosofia de Plotino, Ficino apresenta uma Vénus em dois aspectos, os quais Plotino denominou de Urania (superior) e Pandemos (inferior). Uma eleva até à esfera celeste ou angélica, enquanto a outra, a partir de uma atrofia da imaginação, desencadeia fantasias e faz descer ao mundo dos instintos e das bestas. Ficino relaciona esta imagem com o “furor” platónico definido no Fedro como uma alienação da mente. Ele distingue duas formas de alienação: uma que provém de enfermidades humanas, chamada loucura, e outra que provém de Deus, chamada furor divino. Isto porque o olho, situado na parte superior do mundo e que percebe pela sua natureza a luz, pode ser arrebatado pela cegueira da paixão ou pelo excesso de luminosidade que leva ao enfeitiçamento ou “mau olhado”, causado pelo envenenamento do sangue.
O motor de elevação da alma é o furor divino, que restabelece a unidade espiritual perdida pela ligação ao corpo. Existem quatro tipos de furores divinos: o poético, que tempera as dissonâncias da alma de acordo com a harmonia das Musas; o místico, que restabelece a compreensão do divino sob os auspícios de Dionísio; o profético, que permite aceder à inteligência celeste sobre o futuro, com o auxílio de Apolo; e, por fim, o amoroso, que possibilita a união com Deus, sob a proteção de Vénus.
José Ramos
Imagem de destaque: O Commentarium in Convivium Platonis ou Dello Amore, de Marsilio Ficino (Imagem Composta). Domínio Público.