I. Pessoa

Fernando Pessoa. Um nome simples. Pessoa. Mais simples ainda.

Mas se eu disser Pessoa, o que a palavra evoca nada tem de simples. Falamos de um homem complexo, único, plural e ainda assim uno.

“Pessoa” vem do latim persona, que significa máscara, personagem e Fernando Pessoa foi um mestre no jogo das máscaras. Capaz de escrever de muitos modos, como muitos homens, como muitas pessoas, completas na sua personalidade e na sua história.

Estas inúmeras personas (ainda hoje se vão descobrindo tesouros desconhecidos nos escritos deixados por Fernando Pessoa) vão desde a simplicidade campestre, material e panteísta de Caeiro ao estarrecedor desalento e desilusão com a existência de uma segunda fase de Álvaro de Campos.

No entanto, mesmo através de todo este teatro de personalidades, quando falamos de Pessoa falamos de um. Pessoa conseguiu ser-se a si mesmo através de muitos.

Fernando António Nogueira Pessoa nasceu a 13 de junho de 1888 em Lisboa, curiosamente no mesmo ano que é publicada a Doutrina Secreta de Helena Blavatsky. Mais tarde fará a tradução d’ A Voz do Silêncio.

Morre também em Lisboa a 30 de novembro de 1935, deixando-nos como últimas palavras “I know not what tomorrow will bring” (eu não sei o que o amanhã trará). Toda a sua vida parece uma inquieta busca sobre o que será amanhã, sobre o que está para além do véu.

“Morra quem sou, mas quem me fiz e havia
[…]
Seja a morte de mim em que revivo.”
O Último Sortilégio, Fernando Pessoa

Pessoa com um ano. Wikipedia

Uma das obras de Fernando Pessoa, escrita através do semi-heterónimo Bernardo Soares, intitula-se Livro do Desassossego. É precisamente o desassossego que marca a sua vida.

Cresceu em África do Sul, onde estudou numa escola católica irlandesa. Ensinado pela mãe, começou a escrever cedo, aos quatro anos, e escreve os primeiros textos em inglês. Um dos seus mestres literários será sempre William Shakespeare, cujas palavras nos transportam para além deste mundo que vemos.

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.” William Shakespeare

Pessoa voltou a Lisboa com dezassete anos para frequentar o Curso Superior de Letras. Abandona o curso decorridos apenas dois anos sem ter realizado nenhum exame. Acaba por seguir autonomamente os seus estudos, lendo filosofia, religião, sociologia e literatura na Biblioteca Nacional, expandindo assim a sua educação tradicional inglesa.

Com a mesma idade escreve um primeiro texto ocultista. Começando aqui, o ocultismo é uma presença constante tanto na sua obra como percurso biográfico.

“Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos…” Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas, Fernando Pessoa

Durante a vida foi identificado e respeitado como intelectual e poeta. Colaborou com regularidade em revistas e é mesmo um dos reconhecidos fundadores do movimento literário modernista português. Ainda assim, a sua genialidade só começou a ser reconhecida e compreendida após a sua morte.

Não teve pressa em publicar durante a vida, no entanto, viveu em função da escrita e legou-nos uma arca repleta de escritos (terá guardado praticamente tudo o que escreveu). O conteúdo dessa arca, do universo literário de Fernando Pessoa, ainda não está hoje completamente inventariado ou publicado.

Tal como uma outra arca guardou os tesouros da existência durante o dilúvio para que posteriormente repovoassem a Terra, a arca de Pessoa guardou produção literária que se viria a revelar num tempo mais propício à sua compreensão.

Dentro dessa arca foram descobertos textos escritos em nome dos mais conhecidos heterónimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos), do semi-heterónimo Bernardo Soares, mas também em muitos outros nomes. Alexander Search e Charles Robert Anon escreviam em inglês, Jean Seul em francês, uns escreviam prosa ou poesia, outros eram ensaístas, tradutores, escritores de contos. Encontrou-se um crítico literário, um astrólogo, um filósofo, um frade e até mesmo um heterónimo feminino.

Fernando Pessoa, Pedro Ribeiro Simões. Flickr

Fernando Pessoa é um artista que tem como ferramenta a imaginação, é um decifrador de símbolos. Entenda-se imaginação como a capacidade de trabalhar no mundo dos supostos, não necessariamente elaborando novos materiais, mas “traduzindo” as verdades existentes.

Recorrendo ao Mito da Caverna de Platão, pode dizer-se que aquele que é capaz de trabalhar com a imaginação é capaz de ir para além do nosso mundo de sombras, da nossa caverna, e trabalhar com imagens do mundo das ideias.

“Mas o significado real da iniciação é que este mundo visível em que vivemos é um símbolo e uma sombra, que esta vida que conhecemos através dos sentidos é uma morte e um sono, ou, por outras palavras, que o que vemos é uma ilusão.” Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética – Fragmentos do espólio, Fernando Pessoa
II. “O mito é o nada que é tudo.”
Mensagem – Nevoeiro, Fernando Pessoa

Um decifrador de símbolos, um criador de mitos, é assim que Pessoa surge na sua única obra portuguesa publicada em vida: Mensagem.

Premiada pelo Secretariado de Propaganda Nacional durante o regime político do Estado Novo, aparentemente apresenta-se como uma obra nacionalista de cunho épico. Olhando com mais atenção poder-se-á dizer nacionalista, mas também mística e ricamente simbólica. Mais do que uma epopeia épico-lírica é um mergulho profundo na alma de Portugal. A Mensagem não é um conjunto de poemas, é um só poema mítico, um mito.

A obra encontra-se organizada de acordo com uma complexa arquitetura fortemente imbuída de intenções simbólicas. Divide-se em três partes. O número três representa a perfeição e a unidade da alma, a Mensagem é uma obra completa, um ciclo inteiro.

As três partes que a constituem são o “Brasão”, relacionado com o nascimento de Portugal, o “Mar Português”, relacionado com a plenitude e o “Encoberto” que representa um período de morte aparente, mas também de esperança.

III. “Ó Portugal, hoje és nevoeiro…”
Mensagem – Nevoeiro, Fernando Pessoa

Para melhor compreender a Mensagem não devemos ver Portugal como apenas um país ou uma nação. Deve ser visto como ser vivo, organismo que nasceu e está sujeito a uma evolução.

“Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu.

Nação porque reincarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou do que eras a haste –
Assim se Portugal formou.”
Mensagem – Viriato, Fernando Pessoa

A Batalha de Aljubarrota, Pintura do século XV de Jean d’Wavrin, British Library. Wikipedia

Enquanto ser vivo, tal como eu ou quem está a ler, Portugal possui alma, a qual para evoluir vai superando determinados ciclos, e, como tal, tem Dharma. No fundo, a Mensagem fala-nos do Dharma de Portugal, do princípio harmónico que está por trás da sua existência.

Voltando às três partes constituintes da obra: não podem elas estar relacionadas com etapas do despertar da alma do país? Assim, em Brasão temos um despertar inicial, o momento em que se toma consciência de que há algo mais.

O prisioneiro apercebe-se de que a luz vem de cima, do sol. A luz escorre pela caverna, criando a realidade ilusória dos que lá estão aprisionados, criando um mundo de sombras.

“Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada morre”
Mensagem – Ulisses, Fernando Pessoa

Na segunda parte, Mar Português, temos um período de conquista, o despertar da alma ao nível filosófico, em que há a busca da verdade, da luz do sol, a conquista do caminho para o exterior da caverna.

A terceira parte, período cinzento, representa um país adormecido entre véus de Maya. Uma alma adormecida que, como a Branca de Neve, aguarda um príncipe que a desperte, no caso da Mensagem este papel simbólico é ocupado por D. Sebastião. Portugal aguarda que o prisioneiro que escapou e viu o sol regresse à caverna para, qual messias, indicar o caminho da libertação.

Vários foram os heróis nacionais que impregnados pela vontade de Deus conquistaram terreno. Várias vezes, é referida e vontade divina a guiar a ação do homem. Várias vezes é utilizada como símbolo da vontade divina a espada ou gládio. É a manifestação do triplo logos solar e a sua materialização na determinação das diversas personagens da história portuguesa.

“Eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.”
Mensagem – O Infante, Fernando Pessoa
“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce” William Shakespeare

Mas estes heróis da Mensagem não são conquistadores de territórios ou colonizadores. São comparáveis a Arjuna que busca a sabedoria e o domínio da alma. Os descobridores portugueses procuram a conquista do mar, mar que não é mais do que a sabedoria. A busca pelo outro lado do mar faz-se em procura da verdade, do beijo que desperta a alma adormecida.

“O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.”
Mensagem – Horizonte, Fernando Pessoa

Desembarque de Cabral em Porto Seguro, Oscar Pereira da Silva, 1904. Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Wikipedia

Navegar, rasgar as águas com as naus e o céu com as velas, é o acto de afastar os véus ilusórios deste mundo.

“Com duas mãos – o Acto e o Destino – Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu Uma ergue o facho trémulo e divino E a outra afasta o véu.”
Mensagem – Ocidente, Fernando Pessoa

Este não é um caminho simples, é difícil e doloroso. Habituar os olhos à luz custa, escalar a parede sinuosa da caverna deixa as mãos calejadas.

“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.”
Mensagem – Mar Português, Fernando Pessoa

O país despertou a sua consciência filosófica, conquistou o mar. No entanto, falta mais, falta representar para o mundo a chama de Prometeu, despertar o ser político e soltar outros prisioneiros da caverna. É a hora de começar um novo ciclo.

Para pessoa, é o momento de fundar o Quinto Império, assente na fraternidade, cultura e espiritualidade. É o momento do país acordar do sono de Psique e iniciar um novo ciclo.

É com esta ideia que termina a sua mensagem, deixando como despedida a expressão de origem templária (adotada pela maçonaria) Valete Frates (saúde, irmãos).

“Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…

É a hora!

Valete, Fratres.”
Mensagem – Nevoeiro, Fernando Pessoa

The Allegory of the Cave, from Plato’s Republic. Wikipedia

Carolina Gomes
Nova Acrópole Viseu
Bibliografia

Fernando Pessoa: O Poeta dos Muitos Rostos. Richard Zenith.

Multipessoa.

O Esoterismo em Fernando Pessoa. José Carlos Fernández.

Mensagem. Fernando Pessoa. (Assírio & Alvim)