Ciclo “700 Aniversário da Morte de Dante”
As grandes mudanças que ocorrem no campo das ideias requerem um tempo para germinar e florescer. Isto está muito em desacordo com o costume atual de confiar em tudo a curto prazo, a ânsia de encontrar efeitos imediatos nas ações humanas. O estudo de uma figura tão singular como Dante Alighieri (1265 – 1321) convida-nos a pensar que os ritmos da história não são tão rápidos como parece e que as grandes mudanças vêm das propostas dos que são capazes de olhar de cima e vislumbrar o futuro. Dante, juntamente com Francesco Petrarca (1304- 1374) e Giovanni Boccaccio (1313 – 1375) abriram caminho para o esplêndido Renascimento italiano e para novas ideias, que deram vida a todas as artes. Um novo mundo estava a crescer nas mentes privilegiadas de personagens excecionais. Não podemos esquecer o papel fundamental que a filosofia desempenhou neste processo, uma mais vez presente num renascimento dos muitos que ocorreram na história.
Neste caso, a “descoberta” das obras de Platão desempenhou um papel preponderante, juntamente com as dos chamados neoplatónicos da antiguidade tardia, que começavam a chegar às universidades medievais e que estão relacionadas com o novo espírito do tempo que estava a despertar. É por isso que é pertinente que nos perguntemos sobre a relação de Dante com a filosofia e com os filósofos.
O Banquete
É pelo menos sugestivo que esta sua obra mais filosófica se intitule Convívio (Banquete, em italiano) semelhante ao título do famoso diálogo platónico. Foi escrita durante o período do seu exílio em Ravena, expulso de Florença, a sua cidade, devido aos seus compromissos políticos. O próprio recorda que este trabalho vem completar La Vita nuova que elaborou na sua juventude, no qual narra o seu encontro mágico com a misteriosa Beatriz, a sua amada.
Nesta obra de maturidade o seu compromisso com a filosofia é evidente desde o início, com uma alusão a Aristóteles no início do seu primeiro tratado: “Como disse o filósofo no início da primeira filosofia, todos os homens, por natureza, desejam saber.” A partir desta afirmação, toda a obra passa a ser um encomio da filosofia como amor à sabedoria e também como sabedoria do amor.
O Convívio está estruturado em quatro tratados de uma extensão de treze capítulos o primeiro a trinta o quarto. Contém, também, comentários sobre três “canções” ou poemas, o primeiro dos quais serve de introdução e explicação dos motivos e propósitos da obra e os outros servem de comentário aos poemas. Tudo está enquadrado na alegoria do banquete a partir da sua vontade de partilhar “o pão dos anjos”, que está reservado a poucos e deixa famintos aos que não têm acesso a esse manjar. Mas pede que não se sentem ao convite aqueles que estão entregues aos vícios, mas apenas aqueles que não puderam aprender, porque estão sujeitos a outras obrigações. Também estabelece algumas condições para participar como, por exemplo, fugir do auto-elogio e do próprio vitupério. Percebemos a intenção do poeta de colocar ao alcance dos seus concidadãos os critérios dos filósofos clássicos, oferecendo um compêndio das suas ideias mais marcantes, ao ponto de representar um comentário da filosofia e uma proposta sobre a conveniência de que os governantes sejam filósofos, o que evoca a sua De Monarchia.
No Convívio abundam alusões a Boécio (século VI d.C.) autor de Consolação da Filosofia, ao qual recorreu nos dias difíceis do seu exílio e encontrou o conforto de que precisava. Santo Agostinho (Confissões), Aristóteles, (especialmente a Ética e a Metafísica), Cícero, o filósofo muçulmano Avicena são, também, os seus inspiradores. Deve considerar-se que, no seu tempo, ainda não estava difundida a filosofia de Platão na Europa e só se conheciam os diálogos através de outros autores, como o próprio Cícero. São muito abundantes as reflexões éticas, em relação às virtudes e aos defeitos que são visíveis entre os seus concidadãos e expressa a sua intenção de chegar a mais leitores usando a linguagem italiana. Menciona ainda Pitágoras e Platão em várias ocasiões, qualificando a este último como “um homem excelentíssimo”, que chamava “ideias” às formas, que outros consideravam serem deuses e deusas “embora não as entendessem filosoficamente como Platão”. Também mostra o seu conhecimento do Timeu, do qual provavelmente podia conhecer alguma tradução.
Com base na filosofia, Dante ensina nesta obra, entre outras coisas, a compreender como nasce o amor na alma, dedicando o espaço a referir-se à sua imortalidade e à sua origem divina, oferecendo exemplos e provas, apoiando-se sempre na autoridade de Platão e Aristóteles.
No Convívio encontramos as principais ideias que iluminariam o Renascimento, com as suas alusões a ciências como a Astronomia, com algumas referências do tipo esotérico ou pitagórico, como a que faz sobre os “nove céus móveis”, assinalando uma das chaves numéricas dos seus escritos, que remetem ao esotérico nove.
Assim explica Dante a sua descoberta da Filosofia como uma paixão enquanto lê a obra de Boécio, e descreve essa experiência com a sua alegoria fundamental:
“Imaginei-a formada como uma dama gentil; e não poderia imaginá-la em ato algum que não fosse misericordioso; portanto, tão feliz a olhava o sentido da verdade, que quase não podia afastá-lo dela”.
Nos seus poemas e nos seus comentários aparece uma e outra vez a figura da “dama nobre” que é a Filosofia, tal como afirma:
“E assim, no final deste segundo Tratado, digo e afirmo que a senhora por quem me apaixonei após o primeiro amor (que é o de Beatriz, como narra em La Vita Nuova) foi a belíssima e honesta filha do Imperador do Universo, que Pitágoras chamou Filosofia.”
No terceiro Tratado desenvolve o rico simbolismo deste seu segundo amor por uma senhora “de aparência misericordiosa” e propõe-se explicar em que consiste a filosofia a partir do significado do seu nome “amor ao saber”, um amor que podem experimentar todos os seres humanos, pelo que todos podem ser chamados filósofos. Depois diferencia o que é ser filósofo e o que não é:
“para ser filósofo é preciso ter amor à sabedoria, que torna benévola uma das partes; é preciso ter desejo e solicitude, o que torna benévola também a outra parte; de modo que nasce entre elas a familiaridade e a manifestação de benevolência. Então, sem amor ou dedicação, não se pode chamar filósofo.” Por outro lado, não se deve considerar um filósofo quem busca a sabedoria para se entreter ou brilhar, ou deliciar-se, e nem por utilidade, como fazem aqueles que procuram com ela adquirir riquezas e dignidades. De tal maneira que “o verdadeiro filósofo ama cada parte da sabedoria, e a sabedoria cada parte do filósofo, porquanto o reduz tudo a ele, e de forma alguma deixa que o seu pensamento se estenda a outras coisas.Mais uma vez encontramos uma reminiscência platónica, em Dante, quando fala da “verdadeira” filosofia e do “verdadeiro”, filósofo comparado com aquele que é apenas “por acidente” ou superficialmente. E esclarece: “há filosofia quando a alma e a sabedoria se tornaram amigos, de modo que uma seja amada inteiramente pela outra”, pois é um amor que deve ser recíproco, como todos.
É muito interessante a reflexão que Dante faz com respeito à relação da filosofia com a ideia de Deus, através do seguinte raciocínio: “Filosofia é um amoroso exercício da sabedoria, que está principalmente em Deus, porque n’Ele há grande sabedoria, grande amor e ato supremo, que não pode haver em nenhum lugar enquanto d’Ele procedam. É, portanto, a divina filosofia essência divina, uma vez que n’Ele não pode haver nada adicionado à sua essência; e é a mais nobre, pois nobilíssima é a essência divina e existe n’Ele de forma perfeita e verdadeira, como que por eterno casamento.” E sublinha a importância do Amor, a verdadeira alma, para que surja uma verdadeira filosofia.
Os Fiéis do Amor
Alguns autores referiram-se à relação de Dante com os chamados Fedeli d’Amore “Fiéis do Amor”, o nome de um dos grupos em Florença, que reunia poetas, artistas, seguidores de Eros, como númen que mantém o mundo e reúne as coisas e as mantém unidas. Não se tratava do sentimento amoroso ao estilo romântico de amor, havia antes uma intenção de ascender até ao Eros primordial e metafísico da Teogonia de Hesíodo, ou o Fanes dos órficos. Uma aproximação a uma mística filosófica, que serve de base a toda uma visão do mundo que inclui o político e o cultural, como um ideal geral para um novo tempo. Daí a repetição da palavra “novo” (novo) nas propostas de Dante: o doce estilo novo, a nova vida…
Também se atribui aos Fedeli uma ligação à Ordem do Templo, como um ramo leigo da ordem. Como referiram estudiosos como Valli, não é por acaso que Dante coloca São Bernardo de Clairvaux, que tanto apoiou os Templários, como seu acompanhante na última parte da sua visita ao paraíso. Deve também ter-se em conta que a vida de Dante coincide no tempo com a dura perseguição que sofreu a ordem templária, a sua definitiva extinção e o extermínio dos principais mestres na fogueira e não se absteve de criticar em público esta funesta ação, culpando a corrupção do papado e do rei de França.
Estes indícios sugerem que a poesia de Dante responde ao interesse em transmitir uma mensagem coberta com imagens, como acabamos de ver no Convívio e uma vontade de explicar o elaborado simbolismo que tanto inspiraria os artistas renascentistas. A escolha da poesia por parte de Dante para se dirigir aos seus contemporâneos está apoiada numa profunda reflexão filosófica, pois nos seus escritos encontramos uma intenção clara de reivindicar uma filosofia que ajudasse a despertar a parte mais elevada da alma, que é a que pode alcançar a Sabedoria.
Embora saibamos pouco sobre esta associação de fiéis do Amor, pelo seu caráter secreto, constatamos sim o recurso a determinados símbolos, como a dama misericordiosa, que é a Sabedoria, ou a mulher da “mente angélica”, que é a mente superior do ser humano, ou a rosa, que significa a entrega ao amor, temas recorrentes entre os místicos medievais. Concretamente, tem sido estudada a correspondência dos símbolos de Dante com os que utiliza o filósofo e místico muçulmano Ibn Arabi (Múrcia 1165 – Damasco 1240), na sua obra O intérprete dos desejos com grandes semelhanças com A Vida Nova, de Dante, que inaugura o chamado “Dolce Stil Novo”. Segundo a análise de Ricardo Paredi[1], seguindo Asín Palacios, o sábio andaluz pode ter influenciado o florentino, o que nos dá uma ideia das suas leituras.
Estas são as coincidências que ambos os estudiosos encontraram entre os dois filósofos místicos: “a linguagem poética usada para «abordar» a amada, o esforço linguístico para chegar a dizer o inefável, a estratificação semântica que permite uma poderosa mistura entre misticismo e erotismo, (…) a elevação espiritual, as visões, a estreita ligação entre os elementos olhos-coração, a presença de um comentário para explicar os versos e evitar qualquer mal-entendido, e muitas outras questões”, enumera Paredi.
Tanto Beatriz, para Dante, como Nizam para Ibn Arabi, as duas amadas, marcam a vida de ambos os poetas, revelando-lhes um ideal superior, graças às suas fugazes aparições, que respondem ao seu anseio de alcançar o Amor divino. “A amada não é apenas a causa primeira, não é apenas o objetivo final, mas é ela própria a força motriz que infunde neles uma sede por ela, um desejo da alma do Amor Divino”, explica o autor citado.
É interessante aproveitar as comemorações do centenário da morte de Dante Alighieri para nos reencontrar com a obra filosófica e poética que eleva a alma e a torna melhor.
Mª Dolores F.- Fígares
[1] . “O INTERPRETADOR DOS DESEJOS DE IBN ʿARABĪ E A VITA NOVA DE DANTE ALIGHIERI: Os conceitos compartilhados de ausência, memória e indefinido”. Publicado em El Azufre Rojo V (2018), 163-174.
Bom dia,
Gratidão por me enviar essa leitura.
Preciso conhecer e compreender mais o que é filosofia. Sinto que tenho esse amor a sabedoria.