“A Poesia é, na verdade, algo divino.”
A poesia é um mistério, uma clarividência, uma sombra e uma ascese – é um degrau, uma tentativa, um exercício. Toda a verdadeira poesia deixa em nós um toque muito leve de algo longínquo e esquecido, de algo que se sente e se sabe e quase não se expressa; é uma pegada angelical que marca o mundo com o fogo da mais alta Beleza que lhe imprime. O que haverá no som e no ritmo que tanto parece extasiar-nos como elevar-nos aos poucos a regiões mais claras e luminosas? O poeta, claro está, é uma espécie de sacerdote; por vezes um pontífice desarranjado, com um grande apelo claro e sem clareza.
Frases há que se acometem contra nós como um raio de luz que num ápice abre um céu escuro, como quando se arromba uma porta de repente; e essa porta dava para uma sala inaudita, demasiado majestosa, inefável. O poeta é sempre o porta-estandarte do divino, aquele que mais lembra mas não sabe – quiçá as palavras que lhe ditaram antes de aqui voltar sejam então esse eco que os poetas parecem ouvir de noite, como dizia Alda Merini, na sua poesia “I poeti lavorano di notte”[1].
Uma questão assalta-nos pela certa, porém: o que será que os poetas vêem e ouvem? Ouvem algo que os leva a ver, sendo este acto de ver a contemplação da Ordem, e esta primeira característica da poesia está intimamente relacionada com o uso da linguagem poética, pela relação existente entre Beleza, Verdade, a própria linguagem e a Ordem em si. Percy Shelley, na sua “Defesa da Poesia”, explica como o poeta, nas primeiras idades do mundo, era visto como um profeta e legislador,
[…] pois ele não só contempla intensamente o presente como tal e descobre aquelas leis segundo as quais as coisas presentes devem ser ordenadas, mas também o futuro no presente, e os seus pensamentos são os germes da flor e do fruto do tempo a vir.”
O poeta era então o “Vates”, o que vê, o que vaticina, pois que participa do Uno e do Eterno, e como tal não está confinado a um tempo e espaço específicos. Era exactamente esta ideia que Rimbaud retomava na sua “Carta do Vidente”, onde dizia que se tinha reconhecido poeta e que trabalhava para ser vidente, ou seja, para aceder ao desconhecido mediante o desregramento de todos os sentidos.[2] Não é pretensão julgar o método empregado neste caso, mas sim ficar com a ideia: a poesia é ir além da razão, da lógica; é contemplar as leis da Natureza e apreender as suas relações, e é por isso que a linguagem será simbólica, uma analogia, uma metáfora, por forma a provocar a imaginação na procura e pressentimento de novas realidades, que a faculdade analítica não conseguirá nunca apreender. Posto de outra forma, “a capacidade de criar exige a capacidade de ver”, como nos lembra Miguel Ángel Padilla, no seu “La Poesía como ejercicio espiritual”.
A linguagem poética, mediante a analogia, remete-nos então para o princípio hermético de saber que assim como será em baixo também o será em cima, ou seja, as relações e metáforas permitem entrever a Ordem e aproximar-se do Uno através do Belo. É uma aproximação à Verdade com entusiasmo, no fundo, pelo que aquilo que um cientista analisa, um poeta vê; aquele explica, este canta, mas ambos estão enamorados da mesma coisa. Esta linguagem, ao ser simbólica, manifesta então uma intuição que vai além da lógica, posto que a poesia vai onde a razão não chega.
Neste exercício, o ofício do poeta recai sobre o uso da palavra; mas o que terá a palavra de tão importante neste acto de criação? A palavra cria o nosso quotidiano, tem o poder de transformar ambientes, de abrir ou fechar caminhos e corações; tem o poder de destruir, de solevar, de entusiasmar, de comover. O poeta vai à região desconhecida das coisas, ao invisível, e as palavras que deixa no mundo são cristalizações de luz, são diamantes sonoros, degraus; a sua música reflecte a harmonia e a proporção da ordem que vai reflectindo, por vezes sem sequer o entender. As palavras também queimam, esfriam – o poeta tem um poder directo sobre as almas que a ele se expõem.

Poesia. Domínio Público
A palavra, sobretudo, é um pedestal para uma Ideia – tem que despertar em nós o entusiasmo, e aquilo que de mais fundo e forte a palavra tem é a sua capacidade de vivificar as mais belas ideias e fazer com que a criação artística tenha em si uma vida própria; e esta viverá, expressar-se-á e será capaz de comover, ou seja, de meter em movimento uma alma alheia (Miguel Ángel Padilla). A palavra nomeia, toca o nosso ser mais interno, e a comoção pela Arte é o reconhecimento profundo dessa mesma alma pelo seu esquecimento.
O ofício da Arte podendo assim ser concebido, uma outra questão surge agora: porque se será poeta? Se um artista não se faz, como pode ser que venha a sê-lo? Enigma dos enigmas, bálsamo e sumo perfume do mundo! Se a poesia pouco se explica, talvez se possa melhor imaginá-la. Posto isto, acontece que se não vemos a origem de algo, também não lhe conseguiremos achar o propósito. O poeta, assim, tem que ter uma origem que o justifique; mas esse nascimento não é explícito e, portanto, tem que ser imaginado, para que a intuição possa fazer o seu trabalho. Aqui então, de seguida, uma concepção mítica da gestação do poeta.
De início, poderemos considerar que a sua eleição acontece antes, a sua coroação talvez depois. Ontem, acima ou em volta desta abóboda terrestre, o poeta dormia enquanto os deuses confidenciavam sobre quem poderia recair a responsabilidade de mostrar ao mundo o que há além do normal e do quotidiano. Por seu mérito passado o poeta foi escolhido, e como quem se prepara para uma missão, recebe longas instruções e demorados trabalhos leva a cabo nesse mesmo plano – com o seu pergaminho que mais tarde terá que desenrolar, ouve as histórias das musas mais belas e tira notas sobre tudo aquilo que vê. Depois, chegada a hora, do alto do seu divã celeste o poeta é atirado para baixo tal como é revirado de uma rede alguém enquanto dormia, caindo assim num sono profundo e pesado.
Nessa queda, os anjos ainda tentam segurá-lo para ditar-lhe umas últimas palavras, enquanto as musas lá ao longe repetem por uma última vez os gestos e os sons sagrados que terão que animar e revigorar o mundo. De tanto que assim foi, que o poeta mais puro não poderá nunca ser uma personagem normal, um ser vulgar, sem estatura ou sede de Alto. Uma vez no mundo, quiçá a sua infância será exótica, a sua adolescência demasiado lúgubre ou feroz ou deliciosa, a sua vida um casaco que se veste do avesso e que parece impossível de se ajustar.

O poeta pobre. Domínio público
Quanta sensibilidade nestas criaturas, quantas recordações confusas, quanta saudade e sofrimento! Alguns enlouquecem por nunca se harmonizarem enquanto outros se reúnem em definitivo com a sua memória, porque toda a poesia é uma tendência da alma para a luz e uma subida gradual e exaltada para a reunião – a poesia é uma antecâmara para Deus; Goethe e Shiller disseram-no; Novalis, Pessoa; Dante viveu-o quiçá de forma mais completa que nenhum outro poeta, porque há o poeta que busca e aquele que encontra. Uma coisa parece certa – o poeta veio ao mundo para nos relembrar e mantém uma ligação muito profunda com o que o antecedeu. Rubén Darío colocava assim esta ideia:
Torres de Dios! Poetas!
Pararrayos celestes,
Que resistís las duras tempestades,
Como crestas escuetas,
Como picos agrestes,
Rompeolas de las eternidades! […]
O poeta é um amado dos deuses, um eleito e um sacrificado, tendo nisso a sua suprema beatitude e realização, porque a tragédia mais terrena encerra a luz da criação mais arrebatadora. No entanto, o poeta escolhido pode não ser coroado, porque é preciso coragem para ser-se poeta, assim como é preciso respeitar a voz que o visita. As musas vêm lentas, repentinas e certas, em qualquer momento, ditar-lhe as suas preces mais puras, mas aquele nem sempre as ouve – quem sente este instinto da alma e não deixa tudo para criar, provoca a desolação dos deuses, e a sua insistência é a sua traição; e assim as musas, cansadas como quem volta à mesma casa uma e outra vez sem ser recebido, por fim desistem e deixam a alma do poeta ao abandono do quotidiano mais árduo e plano – mais tarde, ressequida, essa alma verá com dor e com ferida como se esqueceu do seu pacto mais antigo.

Calíope (a bela da voz), a musa da poesia épica, da ciência em geral e da eloquência e a mais velha e sábia das musas. Domínio Público
A poesia exige assim coragem, sobretudo hoje, no mundo da técnica e da máquina, em que sempre somos levados a pensar que a poesia é um luxo inútil e uma perda de tempo; o que lucro com ela, que vantagem dela obtenho? Aqueles que assim pensam são os poetas ingratos, são aqueles a quem alguns versos acorreram mas que acharam mais importante uma situação sólida e séria no mundo. É para estes que Jacques Brel escreve, quando lhes diz que terão compreendido muito pouco, se acharam que a poesia era somente um jogo[3].
No entanto há quem se cumpra, quem aceite a solidão e o sacrifício pela sua obra. Desta feita estamos no domínio do poeta que cultiva e comunga com a vida e com o silêncio, aquele que primeiro cria por estrita necessidade, porque este é o seu primeiro sinal, a sua necessidade vital de criar. Nas suas Cartas a um Jovem Poeta, Maria Rilke dizia que quem não morreria se tivesse que deixar de escrever, então seria porque provavelmente não traria em si a semente da poesia mais pura, porque este poeta já mais sincero e potente é aquele que se vê compelido por natureza interna à Beleza e ao Mistério.

Rainer Maria Rilke, por: Leonid Pasternak. Domínio Público
Este tipo de poeta tem um trabalho muito específico ao início – ler, ler, ler os demais, enquanto cria por impulso. Aos poucos, apercebendo-se da sua herança sagrada, toma a decisão de oferecer ao mundo a sua obra, que mais não é do que o seu próprio dever, para, por fim, ao regressar de onde veio, ser recebido em festa e em júbilo por quem tanto o nutriu já tão longe no tempo e em tantas horas amargas e extasiadas da sua vida. Este é o poeta coroado, é Dante no Parnaso, depois de ter visto Beatriz no Paraíso.

Erato (a amável), a musa da poesia romântica. Domínio Público
Para haver a possibilidade desta aproximação e eventual reunião, o poeta tem porém que estar receptivo e aberto – tem que se deixar raptar. O acto poético está de facto fora do controlo da razão e nunca será um acto da vontade[4]: o poeta é um possuído, como explica Socrátes no Íon, é um louco divino que está fora da sua razão mais curta e em contacto com a Musa, e pelo prazer que derrama nas almas que o ouvem e lêem, o encanto supremo dessas regiões mais puras difunde-se pelo mundo. Percebe-se assim como o método da poesia é o assombro da visão, a abertura à vida mais fina. Sophia de Mello Breyner lembra-nos como o poeta da gramática e o poeta do silêncio são completamente diferentes; a poesia tem técnica, mas não é técnica; tem regras mas não é fria, pois precisa do vislumbre repentino e do rapto das horas para se manifestar.
Para o poeta “sábio”, o da técnica, Sophia diz:
É sábio hábil arguto informado
Porém quando ele escreve
As Ménades não dançam
A poesia é um apelo, uma elevação e uma conquista. Para isto, o poeta consciente cultiva essa intimidade perfeita com o silêncio, como diria Vinícius de Moraes no seu sublime poema “O Haver”[5]. Sophia, por sua vez e novamente, como uma elegante e discreta sacerdotisa, invocava “A Musa”, na procura de algo mais essencial, mais fino, mais delicado:
Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos
Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente.

Sophia Mello Breyner. Creative commons
Se a poesia é algo tão divino e sublime, porque já foi ela tão criticada, porque pode mesmo chegar a ser desprezada? De facto, muitas vezes ouve-se dizer que os poetas dizem uma coisa e fazem outra, e que as suas vidas nada têm a ver com a beleza dos seus versos. Acusam, assim e não poucas vezes, os poetas de incoerência. Isso, no entanto, não lhes pode ser imputado – eles não são incoerentes, são possuídos. São amados dos deuses, filhos predilectos das musas; cai-lhes graça e beleza pela vida adentro sem que o peçam, ou pelo menos sem que tenham a memória clara de tê-lo alguma vez pedido. Eles dizem porque lhes é ditado, não porque se arrojam a verticalidade da coerência – o poeta diz, o sábio faz; e é por isso que o poeta é uma ponte, a genialidade uma antecâmara, com vários perigos e muitas quedas, porque a distância entre o poeta indiferente e aquele que se reúne em definitivo na contemplação perfeita da Ordem é muito grande.
Quase que se poderia dizer – leiam os poetas, mas não o sejam. Eles são subjugados por essa força, escravos do ritmo que são, fiéis servidores dos vislumbres repentinos. Quando os lemos e algo de divino se nos acomete; quando ao irmos de verso em verso nos perguntamos se é concebível que tal coisa seja humana, hoje é-nos claro que é exactamente por não sê-lo que tal sensação nos invade. Os poetas vão a outra região das coisas, com consciência disso ou não – essa região, sem preparação, pode atribular de tal forma uma mente incauta que a loucura ronda como uma serpe entre as folhas. Por isso tão divinos, tão loucos, tão sábios e incoerentes. Por isso dizem como as coisas são mas vivem do avesso; por isso tanta graça e beleza na poesia e tanta brutalidade e fealdade na sua vida, por vezes.

Thomas Chatterton (1752-1770), poeta britânico que se suicidou aos 17 anos. Domínio Público
Não todos, claro, não todos; é preciso ser justo, conciso e claro. Contudo, é aceite pela sensatez que grande parte deles é isto – uma alma possuída por forças estranhas a si; e por vezes isto corre mal, por quanta beleza nestas tragédias possa haver. Este poeta que viu mas que não estabilizou, este quase sábio que não teve como acalmar-se: como não vê-lo de certa forma em Hölderlin[6], por exemplo? Como inflamam as suas palavras!, como em “Buonaparte”:
Vasos sagrados são os poetas,
Onde o vinho da vida, o espírito
Dos heróis se conserva […]
Ao abordarmos assim a poesia, tudo isto poderá contudo parecer demasiado volátil e etéreo. Assim, poderemos sempre perguntar: mas para que serve a poesia? E poderemos desde já responder: a poesia não é um luxo, mas é sim uma estrita necessidade humana, pois que é a manifestação por excelência da nossa parte mais nobre e digna. Ao remeter para os prazeres da alma além do mundo sensível, a sua suprema beleza e utilidade reside no facto de nos divinizarmos aos poucos mediante o cultivo da sensibilidade, do entusiasmo e da contemplação, ou, nas palavras de Shelley, “a poesia redime da corrupção as visitações da divindade no homem” (Defesa da Poesia, 81). Sempre na sua esteira, poderíamos acrescentar que ao trabalhar com um órgão essencial do Ser Humano, a imaginação, a poesia contribui também para o seu aperfeiçoamento moral, e uma estreita correlação é passível de se verificar entre os apogeus civilizatórios e os grandes cumes poéticos alcançados na História.
Além disto, a poesia é também uma das mais sublimes formas de amizade. Quantas vezes não nos fizeram os poetas companhia na nossa miséria, quantas vezes não nos entusiasmaram e nos garantiram que a vida afinal não era só isto e que a alegria era possível? Por vezes isolados, se não fossem eles, acreditaríamos que aquilo que nos sucedia nunca havia passado no mundo antes de nós. Eles são assim uma presença benfeitora sempre presente, disponível para qualquer ocasião. Os poetas são os amigos mais próximos que atravessam o tempo e que nunca cobram o seu gesto; antes abençoam-nos com a lembrança da sua própria experiência e daquilo que com ela fizeram.

Encantamento. Domínio Público
Se um amor se rompe, o “Amor” de Khalil Gibran é remédio certo, ao lembrar que temos que sangrar com alegria e com júbilo; se queremos expressar um maduro amor maternal, o “Poema à Mãe”, de Eugénio Andrade, deixa-nos mais preparados; Bocage dá alento aos tímidos aos dizer-lhes para morrerem de atrevimento e sacudirem a fraqueza[7], ao passo que Whitman alevanta qualquer tristeza e recobramos alento com a sua “Canção da Estrada Aberta”: “Allons! quem quer que sejas, vem viajar comigo”! E o que diríamos de Manuel Bandeira, de Rosalía de Castro, de Ovídio? E tantos, tantos outros para tantas e diferentes ocasiões!
A poesia é então um profundo acto de amor e um gesto humano por excelência. Assim sendo, pode o poeta legar ao mundo algo que não seja pura contemplação e Beleza? Pelo seu trabalho de ajudante eterno das quedas no mundo, é certo que o poeta pode expressar também as vicissitudes do quotidiano, o que aliás o sacraliza, mas deverá atentar no quão áspero chegará a ser e conter-se, pois o seu poder sobre os espíritos não é menosprezível. Verlaine, na sua Art Poétique, pedia para que se fugisse do verso mordaz e irónico, para que fosse música pura, enquanto Amado Nervo diz ao poeta, Deus te livre!, de verteres no cálice do teu irmão a mais pequena gota de amargura! Este seria o seu dever, mas conseguirá ele manter sempre longe de si a amargura e tristeza, não farão estas por fim parte do próprio caminho?
Deste ponto de vista, é como se a própria poesia tivesse diferentes níveis. No entanto, se nem sempre a poesia é luz e graça irradiada, nem por isso o poeta perde a sua nobreza de alma. Mas porque poderíamos dizer isto? A desgraça, a maré baixa no ânimo, o desespero e até mesmo a lamentação e o ciúme são estados naturais da alma humana – um poeta concluído é um sábio, mas enquanto não o for terá que passar por todos estes estados inexoravelmente. Ora, não é o extravasar destes estados internos nos outros e no ambiente uma enormíssima falta de cortesia? Este descuido provoca tensões, conflitos, amargura, quando não violência física mesmo, raiva e assassínios.
O poeta foi mandatado pelos deuses como todos nós fomos para a nossa missão particular – o poeta não é assim um ser necessariamente superior ou inferior em si; quiçá tenha uma responsabilidade muito específica e não grandemente partilhada, mas não é o único nem o cume; como tal, é um ser humano sujeito à tragédia e à desolação como todos nós.
Onde estará então a diferença? A diferença está no olhar e no modo do poeta. Este transmuta, elucida, ilumina por aquilo que a sua mão faz com aquilo que os seus olhos viram; os seus movimentos internos encontram uma resposta e uma atitude complemente diferentes – votados à ruptura e à tristeza, os poetas celebram, transmutam e purificam as suas feridas a cada poesia que lhes acontece. Assim amparada pela poesia, a dor da vida parece solene e sagrada, torna-se doce e apaziguadora; quanto encanto na melancolia, quanta leveza na tragédia, quanta glória na ruína – e este é um dos grandes perigos, a loucura onde muitos poetas ficaram, alguns destroçados mesmo e outros demasiado nostálgicos; foi a força que lhes faltou, o outro ânimo que nunca chegaram a saber que existia.
A poesia pode assim também ser uma obra ao negro, uma purificação e uma sublimação individual, que auxilia a quem dela se aproximar por sua vez: o acto poético renova e revigora, e a poesia pode ser um precioso auxílio quando temos que operar estes movimentos em nós, pois inspira-nos e dá-nos alento, relembrando-nos e recentrando-nos nas sendas da coragem e do entusiasmo. A Poesia não só nos renova como renova o mundo, pois os poetas estão sempre na vanguarda da História.

Trovadores. Domínio Público
Poderíamos ainda dizer que a poesia é desnecessária? Não, ela é fundamental, cada vez mais urgente, e talvez dê para riso àqueles que olham o mundo em termos de poder e de armas, quando verão de novo um grupo de poetas a dizer que o mundo mudará; mas como tão bem o diz Miguel Ángel Padilla, podem rir a seu bel prazer, que sempre foram os filósofos, os poetas e as suas canções que semearam os tempos a vir. Não era Hölderlin quem dizia, “Aos nossos Grandes Poetas”:
[…] Oh acordai-os, Poetas! Acordai-os do sono também,
Os que inda dormem, dai-nos as leis, dai-nos
A vida, triunfai, Heróis! Só vós
Tendes direito de conquista, como Baco.
O poeta é uma ponte estendida, um vaso sagrado, uma sacerdotisa como Sophia; uma amante do silêncio, um entusiasta, um elixir da fraternidade atemporal. A poesia redime, ampara, alevanta e inflama; o poeta, ao ir de belo em belo, vai-se assombrando com a Ordem que vislumbra, e num último rapto, depois dos Infernos e do Purgatório, poderá deixar ao mundo, como Dante, páginas e versos que são para a alma como o voltar a casa de uma longa viagem. Como Plotino, o amante dos deuses sobe e desce e sobe e desce e é esse aroma que deixa pelas ruas quando escreve possuído por forças estranhas a si – o poeta é como um incenso que arde e perfuma o mundo.
O poeta procura então reunir-se, relembrar-se, entregar a outra parte do símbolo com que veio para cá. Para isto contempla, sente, oferece: ao fundo dos seus silêncios está a Harmonia, que é o movimento da Reunião. A poesia como instinto da alma é uma prece e uma purificação, até que a visão estabilize com o auxílio da Filosofia, ou não foram todos eles – Dante, Rumi, Hafez, Ventadour – poetas de alma desperta sob o esplêndido efeito transmutador da Sabedoria?

No mundo da leitura. Domínio Público
A poesia é a Filosofia que dança, é a alegria da altura que descende à Terra pela mão da Beleza. No fundo, a verdadeira poesia é a Doutrina do Coração, é um movimento do Amor, e por isso os Fiéis do Amor serão talvez os poetas mais consumados da poesia assim entendida. Vejamos, como conclusão, uma das incitações de Ommar Kayyam, um dos poetas do Amor da Antiga Pérsia:
Se semeaste no teu coração a semente
Do Amor, então a tua vida não foi
Inútil. Tão pouco o foi se tentaste
Escutar a voz de Deus. E, muito
Menos, se com um leve sorriso
Fizeste um brinde ao prazer.

Jograis. Domínio Público
Por fim, o que resta senão uma incitação à poesia? Poetas, voltai ao mundo! A vossa presença é das mais queridas entre todos nós. Que quem ouça as palavras a vir possa aceitá-las, que quem tenha versos os deixe pelas casas, as ruas, e que os ofereça! Se serão bons, se serão eternos? Que importa!
Poetas, que o mundo não vos assuste, que a miséria não vos espante; o vosso desígnio é muito maior do que isso. Vivei pelo Amor e pela Glória, para que depois vos possamos agradecer, como já o deveríamos ter feito, por tanto terdes embelezado o mundo e pelo que fizestes pelas nossas vidas, ao torná-las mais habitáveis, mais puras e elegantes.
Poetas, depois de vós, o mundo nunca será como antes.
Antony Capitão
Anexo I
Às Parcas
Concedei-me um só Verão, poderosas!
E um Outono ao meu canto maduro,
Que o meu coração mais pronto, do doce
Jogo farto, então morra!
A alma, que em vida o divino direito
Não alcançou, também não repousa lá baixo no orco;
Mas se uma vez o sagrado, aquilo
Que ao meu peito me é caro, o poema, atingir,
Bem-vindo então, silêncio do reino das sombras!
Contente estarei, ainda que a lira
Me não acompanhe; uma vez
Terei, como os deuses, vivido, e mais não preciso.
Hölderlin

Johann Christian Friedrich Hölderlin. Domínio Público
Anexo II
Aflito coração, que o teu tormento,
Que os teus desejos tácito devoras,
E ao doce objeto, às perfeições adoras,
Só te vás explicar com pensamento.
Infeliz coração, recobra alento,
Seca as inúteis lágrimas, que choras;
Tu cevas o teu mal, porque demoras
Os voos ao ditoso atrevimento.
Inflama surdos ais, que o medo esfria;
Um bem tão suspirado, e tão subido,
Como se há de ganhar sem ousadia?
Ao vencedor afoute-se o vencido;
Longe o respeito, longe a cobardia;
Morres de fraco? Morre de atrevido.
Bocage

Bocage. Domínio Público
[1] Traduzido para português significa literalmente “os poetas trabalham de noite”. Trata-se de uma poesia onde Alda Merini diz que os poetas trabalham de noite, quando as horas cessam, assim como o rumor da multidão; e, no seu silêncio, os poetas fazem um rumor enorme.
[2] Na sua famosa “Lettre du Voyant”, Rimbaud escrevia ao seu professor Georges lzambard, em 1871: “Je veux être poète, et je travaille à me rendre voyant : vous ne comprendrez pas du tout, et je ne saurais presque vous expliquer. Il s’agit d’arriver à l’inconnu par le dérèglement de tous les sens. Les souffrances sont énormes, mais il faut être fort, être né poète, et je me suis reconnu poète. Ce n’est pas du tout ma faute. C’est faux de dire : Je pense. On devrait dire : On me pense. Pardon du jeu de mots”. “Eu quero ser poeta, e trabalho para tornar-me vidente: não o compreende de todo, e eu mal saberia explicar-me. Trata-se de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes, mas tem que se ser forte, ter-se nascido poeta, e eu reconheci-me poeta. Não é de todo culpa minha. É falso dizer: eu penso. Deveríamos dizer: pensam-me. Desculpe o trocadilho.” (Tradução própria).
[3] Jacques Brel, na sua música “S’il te faut”, diz: “Tu n’as rien compris […] Si la poésie pour toi | N’est plus qu’un jeu”. “Tu não percebeste nada […] | Se a poesia para ti | Já não é mais que um jogo”. A música está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ea0BLupJBKk.
[4] Ana Moura retomou recentemente esta ideia, de uma música de Amália Rodrigues, “Ao Poeta perguntei”: Ao poeta perguntei | Como é que os versos assim aparecem? | Disse-me só: eu cá não sei | São coisas que me acontecem”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dZ8K8H1ZL_M.
[5] Este verso encontra-se nesta poesia maravilhosa, que começa assim: “Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura | Essa intimidade perfeita com o silêncio |Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo|- Perdoai! eles não têm culpa de ter nascido…”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=u6LcZfStlfc.
[6] Veja-se no anexo I o magnífico poema “Às Parcas”, onde a noção da poesia como algo sagrado para a alma é explícito.
[7] Ver anexo II.
Imagem de destaque: Percy Shelly. Domínio Público