Do ponto de vista filosófico, a história passada pode ser um pedestal sobre o qual nos apoiamos para nos lançarmos no futuro, pode ser um motor, algo que pode nos dar impulso, que pode nos ajudar a aprender … A nível coletivo, a história também nos mostra que todos os processos pelos quais a humanidade passou estão a permanecer em nós. Algo permanece em nós da rebelião de todas as revoluções que a humanidade sofreu. Algo permanece em nós, mesmo que não estivéssemos naquela época, ou naquele momento, ou naquele lugar, de todo o esforço que foi feito para erradicar a escravatura no mundo. Algo permanece em nós como nómadas, gostamos ir de um lugar para outro com os olhos fixos no horizonte. Algo permanece em nós de sedentários também, e gostamos ter um lugar para onde sempre voltar, onde possamos descansar das fadigas da vida.

Tudo está deixando uma marca, tudo está deixando um rastro em nós. Portanto, o nosso passado tem que ser incorporado naturalmente, conscientemente e sem traumas, porque temos que nos sentir seguros do nosso passado. Não importa como tenha sido esse passado; se queremos projetar-nos para a frente, tem de ser uma pedra sólida na nossa existência, porque, caso contrário, corremos o risco de construir o nosso futuro sobre uma base fraca; porque a única coisa que nos resta é o futuro: «Hoje é o primeiro dia do resto da nossa vida». E é por isso que devemos começar a construir sobre blocos sólidos, por exemplo, o passado. Precisamos ter memória, memória histórica para começar a construir os nossos passos futuros.

Isto é importante, mas também é muito importante o tempo presente, porque é a casa da realidade, é onde vive a realidade agora. Devemos ter muito claro que o mais difícil, mas o mais necessário para que o presente também seja sólido, é a objetividade. É muito difícil ser objetivo, olhar para si mesmo e se ver tal e qual como se é, calibrar-se como realmente se é. É muito difícil não mentir para nós mesmos.

Quando começamos a engordar, ou melhor, olhamo-nos no espelho, colocamo-nos de perfil e mintamos para nós mesmos tentando esconder que a nossa silhueta já não é a mesma. Quando cai o cabelo a nós, homens, pensamos que não se nota muito, que depende de onde se olha para nós, que não está tão mal. E sempre encontramos outros seres humanos com menos cabelo do que nós, realmente carecas, e muitas pessoas se confortam em comparação. É muito difícil que sejamos objetivos com a nossa própria vida.

Pensamos que temos um sentido de qualidade tão refinado, que somos nós que não admitimos certas companhias, em vez de reconhecer que ninguém nos suporta. Não reconhecemos que deixamos alguém à deriva, mas que corremos à procura de ajuda, como poderíamos deixá-lo à deriva? Nós não, nunca vamos reconhecer que tivemos um pouco de medo e onde disse sim, então foi não. Quebramos nossos compromissos porque o instinto de sobrevivência é superior a muitos raciocínios.

Se pegarmos livros de história, veremos que é muito difícil ser objetivo, porque o mesmo facto será contado de forma diferente. Se lermos jornais de hoje é muito difícil ser objetivo, porque diante do mesmo facto, dependendo de qual jornal e da sua tendência social, veremos que um o conta de uma maneira e o outro conta de outra, algo que aconteceu hoje ou ontem. É muito difícil ser objetivo, teríamos que aprender a colocar distância com as coisas, distância dentro de nós mesmos e distância de nós mesmos.

Isso é fundamental para podermos nos lançar para frente, para sermos capazes de nos lançar no futuro, porque se temos uma visão distorcida de nós mesmos, é muito difícil que os nossos sonhos, os nossos objetivos, sejam realizados. Estamos a começar de um ponto de partida fraco, errado e vacilante, e tudo o que vamos conseguir é cair mais cedo ou mais tarde. Mas se conseguirmos assentar os dois pés no chão: por um lado, o tempo passado e, por outro lado, o tempo presente, podemos começar a caminhar para a frente com relativa segurança.

Dois golfinhos (Stenella Frontalis) saltando no oceano da Costa Brasileira no Estado do Paraná. Domínio Público

Também tem de se começar a contar com os símbolos, com a linguagem dos símbolos. Existem muitos tipos de linguagem. Os animais têm os seus: a linguagem dos pássaros, dos golfinhos. Existe uma linguagem atmosférica, que os meteorologistas sabem decifrar e depois traduzem e nos dizem o que vai acontecer amanhã ou na próxima semana. Há a linguagem dos gestos, há a linguagem dos adultos, há a linguagem das crianças, que têm a sua própria linguagem.

Isto, o que significa? Que há muitas realidades ao nosso redor. Há realidades cronológicas, históricas, mas também há realidades psicológicas, mitológicas, simbólicas. Há várias maneiras de ver a realidade. Por exemplo, vejamos a nossa realidade histórico-cronológica: chegamos a esta sala por volta das sete da tarde, estivemos quase três quartos de hora a aturar um senhor que diz coisas estranhas, vamos ver se no final isto tem pés e cabeça… É uma realidade cronológica histórica: em meia hora estaremos a tomar uma cerveja com amigos ou estaremos a tomar chá com amigos ou teremos ido dar um passeio ou jantar. É uma realidade cronológica, histórica: chegamos à Rua Pizarro 19, subimos umas escadas… E reunimos cerca de 30, 35 pessoas… Isso é verdade, é uma realidade.

No entanto, há outra realidade, há outra maneira de ver exatamente o mesmo. Por exemplo, esta sala está voltada para o leste, eu estou voltado para o oeste, mas todos os outros estão voltados para o leste, o oriente. O este é o oriente, onde nasce o sol, ou seja, estamos orientados, na realidade estamos numa conversa com conteúdo filosófico para tentar orientar-nos: no presente, no passado e espero que no futuro.

Queremos nos orientar de alguma forma; ter pontos de referência nas nossas vidas. Esta é uma realidade psicológica. Outra realidade desta natureza é que estamos reunidos num lugar onde a luz vem de cima, as luzes estão no teto. É um símbolo, mas é uma realidade psicológica porque a luz, ver as coisas claras, vem dos nossos estados elevados de consciência, vem de ser capaz de colocar a mente no topo, no mais alto. Esta é uma realidade simbólica. Como uma realidade simbólica é que estamos sentados – espero que confortavelmente sentados – em cadeiras ou poltronas vermelhas. Já sabem que para simbolizar o mais material é usada a cor vermelha: vermelho paixão ou vermelho de raiva, ou vermelho da vergonha ou vermelho de calor. De alguma forma, estamos todos muito confortáveis porque estamos presos no conforto da matéria.

Quem se deixa levar pela matéria torna-se muito cómodo, e o conforto começa a desempenhar um papel muito importante na sua vida. E quando no final desta palestra nos levantarmos para sair, também será um símbolo. Levantar-se é um símbolo, e é também uma realidade simbólica: ai daquele ser humano que é incapaz de ficar de pé, não tanto fisicamente, mas internamente! Porque quando um ser humano se levanta, está atestando a sua condição como ser humano, que não é uma besta, que não é um animal, que pode andar ereto, que pode olhar para cima, para as estrelas, que não necessariamente tem que ir sempre procurar comida abaixo ou olhar para o sujo, o inferior. Não viram que muitas vezes nos teatros, nos espetáculos, para agradecer ao intérprete e para lhe prestar uma pequena homenagem, as pessoas não só aplaudem como também há aqueles que se levantam?

A realidade de que falávamos, para que seja uma realidade completa, deve ter em conta todo esse mundo oculto simbólico e mítico que nos rodeia. Porque embora todos nós tenhamos uma história cronológica: o bebé nasceu em tal ano, o dia tal em tal lugar, deram-lhe o nome Pepito, cresceu, casou, teve filhos, vive aqui, vivem ali, pesa tanto, mede tanto …, também é verdade que todos temos sonhos da alma, porque todos gostaríamos de ser melhores do que somos, ser mais forte do que somos, ser maior do que somos. Essa é a nossa realidade psicológica, essa é a nossa parte mítica, simbólica, e essa parte é interpretada através dos mitos, e os mitos assumem significado através dos símbolos que incorporam esses mitos. Isso faz parte da linguagem da vida, e é por isso que teríamos que saber ler, interpretar, escutar o que a vida nos diz para poder nos lançar para a frente, porque além de todas as outras linguagens que já falamos, não terá a vida sua própria linguagem?

Há coisas que nos acontecem, há pessoas que conhecemos, há sonhos que temos… dormindo e acordado. Estão cheios de símbolos e possivelmente a vida pode estar a falar connosco; o que acontece é que não sabemos ouvir, não sabemos interpretar o que a vida nos diz. Devemos então contar com os símbolos, porque são as chaves que abrem certas portas da nossa consciência, porque fundamentalmente isso é um símbolo: uma chave. Uma chave que abre portas necessárias para a nossa realização humana, para o nosso desenvolvimento e crescimento interior.

Castração de Urano, afresco de Giorgio Vasari e Cristofano Gherardi. Palazzo Vecchio, Florença. Domínio Público

Também tem que se contar com os ciclos, tem que se contar com o facto de que a vida não se move de forma retilínea. Tudo na vida se move de forma curva, circular ou elíptica, absolutamente tudo; assim se movem os planetas, os sóis, as galáxias, os átomos que compõem todas as coisas. Assim é a nossa vida, não é um caminho em linha reta porque tudo o que existe no universo segue um caminho curvo. Temos que contar com ciclos, e não estou a referir-me à dualidade, porque os ciclos não se baseiam em algo tão simples como a dualidade: bom-mau, alto-baixo, perto-longe, para dar alguns exemplos. Não. Os ciclos passam por uma série de estágios, em concreto quatro estágios, e nisto estão de acordo tanto os filósofos do Oriente como os do Ocidente, como Hesíodo, como Platão e até Cervantes, o nosso querido Cervantes.

Todos falam de quatro etapas no curso da vida através do tempo: uma etapa de ouro, uma etapa de prata, uma de bronze e uma de ferro, e isso ocorre tanto nas civilizações como em cada ser humano: criança, jovem, maduro e velho, são quatro etapas; como as quatro estações que compõem um ano. E dentro dessas quatro grandes etapas ou ciclos, há microciclos, micro etapas. Na nossa etapa de ouro nem tudo será brilhante, haverá também momentos de dor, de escuridão, de tristeza e, por outro lado, nas nossas piores etapas também haverá momentos interessantes, porque os microciclos estão dentro dos ciclos.

O mais importante é que não passa diretamente de uma etapa de ouro para uma etapa de ferro, não há mudanças repentinas na natureza nem na vida. Tudo é gradual, tudo é pouco a pouco, tudo é quase sem nos aperceber. Mas todos teremos nas nossas vidas uma ou várias etapas de ouro… Embora já saibamos que o tempo o traz e também o leva. As etapas de ouro, esses momentos tão brilhantes acabarão, teremos etapas de prata e com o passar do tempo de bronze e chegaremos às etapas de ferro que são as mais difíceis, as mais terríveis e as mais negras em referência à estabilidade externa e interna.

De um modo geral, quando falamos de eras ou etapas de ferro, o que se está a dizer é que a injustiça é a dona do mundo. E quando se fala de etapas de ouro, são etapas onde reina a harmonia, onde se pode expressar plenamente, onde os nossos potenciais internos se podem desenvolver. Onde as coisas são naturais; onde tudo toma o seu lugar, o seu devido lugar. Nas etapas de ferro é o contrário; há muita confusão, há muita desordem, e nas etapas de ouro os juízes são juízes, os políticos são políticos, os desportistas são desportistas e os atores são atores.

Quando tudo é confuso, verifica-se que há uma mistura de tudo e não se sabe muito bem o que é o quê; sobretudo, o que há é muita injustiça, os poderosos não têm limite, não têm freio, vagueiam livremente naquelas etapas de ferro. Isso é a nível histórico. Se o traduzirmos a nível individual, veremos que cada um de nós também passará por essas etapas e, possivelmente, várias vezes ao longo da vida. Quero dizer com isto que, por mais claro que tenhamos para onde vamos, o futuro, a projeção que queremos que siga a nossa existência, devemos contar com os ciclos: haverá dias maus, haverá momentos terríveis, teremos que lutar muito. Mesmo essas coisas que conseguimos, certamente não foram fáceis. Porque nada é fácil, e mantê-lo também custa o seu, porque quem relaxa com o que já tem pode acabar perdendo. Aquelas coisas que nos traz a vida– certamente por mérito – se depois nos descuidarmos e não soubermos mantê-lo, é muito possível que a própria vida através do tempo, que é um dos seus servidores, nos tire.

E, finalmente, acreditamos que é essencial saber usar a liberdade. Não só usar a pequena liberdade que, às vezes, para muitas pessoas é fazer o que se quer, que é a menor parte da liberdade. Estamos a falar de saber usar a Liberdade, não apenas usá-la, mas saber usá-la. Do ponto de vista filosófico, saber usar a liberdade é saber decidir, saber caminhar ao lado do sentido da vida, viver a favor da corrente da vida. O problema com isso é que se tem que saber para onde vai a vida.

Para onde vai a vida? Podemos chegar a saber? Para onde deveriam ir os seres humanos?

Voltemos ao início. Eros é o demiurgo, o construtor do universo, o amor primordial. Eros é o arquiteto, constrói o universo. A primeira coisa que o arquiteto faz são os planos, os modelos. O amor primordial como arquiteto constrói os arquétipos. Esses arquétipos são modelos e fontes, estão no princípio e, no final, são inspiradores e são impulsores. Nos impulsionam, nos atraem e nos inspiram. E todos estes autores concordam que os seres humanos, queiramos ou não, amamos estes arquétipos porque são construídos por Eros, o amor primordial.

Os quatro grandes arquétipos que regem a evolução humana, segundo Platão, são: o bom, o belo, o justo e o verdadeiro. Os filósofos platónicos e neoplatónicos nos disseram que os humanos amam estes arquétipos, estes modelos, porque são construídos por Eros, o amor primordial. Nós, então, conscientes ou não, caminhamos ao longo da nossa vida para estes modelos: o modelo de beleza, o modelo de bondade, de verdade e de justiça. Abordar estes arquétipos voluntária e conscientemente nos torna mais livres. É o que nos permite remover certos laços, é o que nos permite passar do que eles vão dizer, da opinião massificada e inconsciente, do que agora nos dizem que é politicamente correto. Abordar esses arquétipos, tentar alcançá-los, usar a nossa liberdade para entrar conscientemente na corrente da vida, é o que nos dá real categoria como seres humanos. É isso que dignifica a nossa vida.

Este é o bom uso da nossa liberdade: saber acompanhar a nossa pequena vida ao ritmo da grande Vida. Se formos capazes de caminhar em direção a esses arquétipos, seremos capazes de entender que a era da razão para a razão em si, morreu, é tocada pela morte. «O razoável» é o que construiu o mundo que temos agora e que todos nós sofremos. Talvez seja hora de começarmos a escutar os nossos corações e esquecer o razoável. Que não damos tanta importância às estatísticas, aos números, aos censos, às previsões, aos balanços, a …

Não é tempo de escutarmos o coração? Não nos diz o coração que não há nada maior do que a verdade? Não nos diz que a mão da justiça deveria chegar a todos e que não deveria ter preço, que ninguém pode comprá-la, que não deve ser gerida pelos poderosos em detrimento dos mais fracos ou daqueles que menos podem fazer? Não nos diz o coração que o belo e o bom não dependem da opinião pública ou dos críticos de arte que escrevem aqui ou ali, mais ou menos melhor ou pior pagos pelos poderosos do momento? O bom e o belo não dependem disso. O Bom e o Belo são um golpe no nosso coração que nos eleva para cima, e não depende das modas ou da opinião pública.

Não será hora de começarmos a nos mover de livre e espontânea vontade, para navegar neste oceano da corrente da vida no nosso próprio barco? Como aquele mítico Ulisses, aquele peregrino do mar, aquele Ulisses que percorre os caminhos intermináveis para tentar chegar à sua casa e recuperar o que lhe pertence. Não será hora de todos entendermos que somos como Ulisses, que estamos navegando para Ítaca? Assim como Ulisses se amarrou ao mastro do seu barco, não deveríamos nos amarrar à força e ao poder que emana destes arquétipos? Não deveria ser governada a nossa vida pelo justo, o bom, o belo, o verdadeiro? É possível que, dessa forma, possamos sobreviver aos cantos das sereias e evitar os perigos e tentações que nos desviam da nossa rota.

Algum dia, queridos amigos, todos teremos que chegar a Ítaca. Isso é o que nos espera no final do nosso caminho, no final de toda a nossa existência. Chegar à nossa terra, à nossa casa, à nossa verdadeira pátria, que não é outra coisa senão o reencontro com a nossa alma imortal. E, além, envolto na névoa do Mistério, espera-nos o contacto com Aquilo que dá origem a tudo e que é o fim de tudo, que governa os átomos e as galáxias, que é o grande Desconhecido, mas ao qual todos os povos, através de todos os tempos e com diferentes línguas, chamavam Deus.

Carlos Adelantado
Presidente internacional da Nova Acrópole
Publicado na Biblioteca Nueva Acrópolis em 15-12-2022

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