O Coração

Para os antigos egípcios, o coração corresponde a dois conceitos, um é o coração-mente, e o outro o coração psico-emocional que influencia com as suas mudanças as batidas do coração físico. Em todo o caso, o coração representa a consciência em movimento. Estes mesmos conceitos também se encontram na antiga China, onde recebem o nome de fogo imperial e fogo ministerial, respetivamente.

Um escaravelho sagrado esculpido num amuleto de faiança – aproximadamente em 550 d.C. Domínio Público

Nas cerimónias de mumificação, substitui-se o coração por um escaravelho verde. O escaravelho é de facto um hieróglifo e o seu significado é um verbo que pode ser traduzido como “chegar a ser”, “converter-se em”, “evoluir”, “transformar-se”. E precisamente, isso é a consciência: basta perguntar-se pela perceção atual e presente da nossa consciência, e veremos que antes de terminar de se formular a pergunta na nossa mente, o tempo passa e converte essa perceção em passado. Se perguntarmos sobre o futuro, este não existe, até que chegue a ser presente, e sobre o passado só podemos dizer que é uma recordação na nossa memória… A consciência é precisamente aquilo que, indissoluvelmente unido ao tempo, viaja através do mesmo, e até cria a ilusão do tempo.

Como referimos anteriormente, a divisão do coração é de dois tipos, um é o coração Ib ou coração mental, e o outro é o coração Haty ou psico-emocional e físico. No famoso cenário da psicostasia ou Julgamento da Consciência, ambos estão presentes. Habitualmente, no dorso desses escaravelhos cerimoniais, que representavam o coração, era gravada uma recitação, a conhecida como 30b entre os egiptólogos. Vejamos o seu significado:

“Oh coração (Ib) celeste da minha mãe (Mut)! Oh coração da minha mãe! E tu meu coração (Haty) terrestre das minhas múltiplas transformações! Não te levantes contra mim como testemunha, não me sejas hostil na presença dos deuses que mantêm a Balança, pois eras o ka que estava no meu corpo, o protetor que mantém os meus membros sãos. Vai para o lugar feliz para onde corremos, não faças com que o meu nome empeste perante o séquito que forja os homens. Não digas mentiras sobre mim na presença do deus (Osíris). É bom que assim o oiças!”

Coração. Disenho do autor

No texto anterior, identifica-se o coração Ib, como relacionado a Mut, a grande deusa mãe por excelência, representando aqui um duplo significado, por um lado Mut é a grande protetora, tal como aparece numa oração de um fiel devoto:

“Meu coração foi preenchido com a minha senhora. Não tenho medo de nada. Permaneço adormecido tranquilamente a noite toda, porque tenho a minha protetora.”

Mut. Creative Commons

Além disso, Mut é também a deusa das origens, que, junto com Nun, as águas primordiais, representa também a Mãe Primordial, e nesse sentido é a mãe celeste, e o celeste por extensão. Portanto, o coração Ib refere-se ao coração eterno, à consciência que vai mais além desta vida.

No mesmo texto, fala-se do “coração terreno de múltiplas transformações”. É o coração Haty, profundamente relacionado com os nossos matizes emocionais, e é o coração terrestre, ou seja, a consciência encarnada.

Ambos constituem a nossa consciência, celestial e terrestre, e a ambos se pede que não nos atraiçoem no julgamento. Se um juiz divino nos perguntasse sobre os nossos atos e pensamentos, sobre a maldade ou bondade e a intenção dos mesmos, o mais provável é que duvidássemos de nós próprios, esperaríamos não nos contradizer, que a nossa mente não nos atraiçoasse, mostrando as nossas autênticas intenções.

 O coração/consciência é também, como diz a oração, quem “mantém sãos os meus membros”, ou seja, a integridade do meu corpo. Observe-se como a velhice traz pela mão, não apenas o declínio mental, mas também o físico, e quanto mais intenso é o primeiro, maior decadência mostra o segundo, veja-se como exemplo as pessoas com doença de Alzheimer. A oração pede finalmente que o “homem” não cheire mal, que não seja um eu putrefacto ou corrompido, defronte dos que forjam o homem nem defronte de Osíris, ou seja, o juiz no tribunal da consciência.

Coração normal. Disenho do autor

O coração é representado como um recetáculo, uma espécie de jarra, um recipiente que, além disso, mostra em muitas ocasiões asas e boca com plumas, porque o que contém é o pássaro alma ou Ba. As suas representações pictóricas mostram-nos uma semi-lua e uma forma ovoide, que se referem à consciência lunar e à consciência solar respetivamente, ou seja, os dois habitantes da nossa consciência: a parte mental pura e a parte psíquica inferior. Curiosamente, numa imagem ou corte anatómico do coração, observa-se precisamente como os dois ventrículos adotam essas formas, sendo o esquerdo mais volumoso e redondo e o direito mais achatado e semilunar.

Imagem anatômica do coração. Creative Commons

O que o coração contém lIberta-se depois da morte em dois componentes, um solar e outro lunar. A alma-pássaro ou Ba, a parte livre e limpa de escórias da consciência, e a Sombra, os elementos psíquicos inferiores que se dissolvem e desaparecem e não ser que estejam protegidos pela alma-pássaro e pelo Ka.

A Sombra sai da sepultura, o Ka vai por trás, o Ba acima protegendo

Mas isso seria apenas no caso dos iniciados, porque para todos os demais seres humanos, o nosso Ka e sombra dissolvem-se, impossibilitando o contato com este mundo, e o Ba juntamente com o espírito integra-se, usando os termos egípcios, na “luz resplandecente do horizonte”, até que a hora entoe para retornar.

 

Juan Martín Carpio

Publicado na revista Seraphis a 10 de maio de 2020.