O Ba

Aparece frequentemente representado como um pássaro – falcão, cegonha ou íbis – com cabeça humana, com o símbolo do fogo em frente – o quarto elemento da série terra, água, ar e fogo, ou corpo físico, vital, emocional e mental que nos recorda o seu sentido espiritual e ao mesmo tempo a sua origem no mental. O Ba manifesta-se a partir da morte, existe no interior, mora no coração do ser vivo, mas só quando morre aparece claramente definido. São abundantes os amuletos na forma de coração, nalguns pode-se ver uma cabeça humana surgindo do coração e, noutros casos, um falcão com cabeça humana, o Ba.

Num texto clássico, a história de Sinué, podemos ver que está oculto, dentro do ser humano vivo, mas liberta-se quando a morte se aproxima:

Eu era um homem preso ao pôr do sol: o meu Ba desaparecera, os meus membros tremiam, o meu coração já não estava no meu corpo, não conseguia distinguir entre a vida e a morte. Sua majestade então dirigiu-se a um dos seus cortesãos: “Faz que se levante e fale comigo…”

Representa, assim, o aparato psíquico individualizado de cada ser humano, a sua alma, manifestada após a morte, mas presente na vida diária e com a qual se pode estabelecer um diálogo. As expressões usadas no texto anterior são semelhantes às que usamos quando dizemos que “a alma nos escapa” ou “a alma não me chega ao corpo”.

Há outro texto famoso, da XII dinastia, onde se pode ver alguém que quer cometer suicídio discutindo com o seu Ba-Alma, que tenta convencê-lo do contrário, o que novamente mostra que o Ba, contra o que se diz, não é algo que é criado com a morte, mas que “aparece” claramente emancipado, após a morte, morando oculto no coração-consciência durante a vida.

À esquerda, o coração-ovo partido, e acima o Ba emergido dele. Domínio Público

No caso da mumificação, estabelece-se um laço entre o terreno e o celeste, pois o Ba torna-se uma espécie de intermediário entre o céu e a terra, uma vez que o Ba pode atuar não apenas na sua própria esfera, mas também no mundo dos vivos, seja o Ba de um homem consagrado através dos rituais funerários ou o de um deus a quem foi consagrado a sua estátua. Em ambos os casos, foi criado um recetáculo, estátua ou múmia e dotado de energia-Ka através dos cerimoniais, permitindo assim a interação entre o mundo dos vivos e o mundo celeste.

Chegou a dizer-se que o Ba cessaria a sua existência se não fosse provido de um corpo mumificado e que, da mesma maneira, o Ka morreria se não fosse provido de oferendas. Na realidade, a falta ou destruição do corpo mumificado ou das oferendas seria apenas um dano causado aos vivos, mas não aos mortos: apenas quebraria o fio mágico que une o mundo dos vivos com o mundo celeste, mas isso não significaria a destruição da entidade espiritual desencarnada.

Exemplo semelhante seria o dos deuses, que também tinham Ba, inclusivamente mais de um, por exemplo, os 7 Bas de Rá. O Ba dos deuses manifesta-se em lugares, templos e estátuas consagradas. Assim, seguindo a mesma linha de argumentação anterior, também foi dito que as oferendas seriam para alimentá-los, o que não é inteiramente correto. O que se alimentava era o vínculo mágico; se por qualquer motivo, as oferendas a uma estátua consagrada não fossem feitas, resultaria na morte do vínculo, mas não na morte do deus.

No caso de um homem não mumificado, isto é, quando um recetáculo mágico não foi criado, o Ba reintegra-se na sua própria esfera celeste, sem relação com o mundo dos vivos. Por outras palavras, deuses e homens possuem Ba mas, a menos que esteja ligado a um recetáculo mágico, múmia ou estátua, conforme o caso, e sejam dotados de energia através das oferendas ao Ka, o Ba não se manifestará na terra, nem será estabelecida a relação entre o celeste e o terrestre.

Não é apenas a múmia ou a estátua consagrada que compõem  o aparato de comunicação, mas também os componentes, como os adornos em madeira na tumba, as estátuas na capela e o barco solar do deus, a estela da porta falsa no túmulo, as pinturas cerimoniais e as representações do deus nas paredes do templo.

O paralelismo entre a múmia e as estátuas consagradas aos deuses é absoluto, indicando claramente qual era o papel da múmia e dos bens do funeral: permitir a manifestação do osirificado, que é frequentemente chamado de deus na câmara funerária ou capela.

Cerimónia de Abertura da Boca. Domínio Público

A cerimónia de abertura da boca dos mortos era paralela à cerimónia de abertura da boca da estátua de um deus, e até o instrumento metálico usado era o mesmo. Evidentemente, mais uma vez, constatamos que o objetivo da mumificação nunca foi a “ressurreição da carne”, nem o uso na outra vida, terrena ou celeste, deste corpo, mas estabelecer uma união ou vínculo mágico com as almas excelentes para que agissem como protetoras e propiciatórias para a comunidade, exatamente como os deuses através das suas estátuas.

Essa foi a razão íntima pela qual a mumificação nunca foi destinada a todos, não era um privilégio especial apenas para os poderosos, nem um exemplo de uma elite egoísta que só reservava para si a vida após a morte. Aceitar as teorias existentes da mumificação seria supor que os antigos egípcios deram, por um lado, o exemplo mais feroz de egoísmo que a história já conheceu e, por outro, o exemplo do povo mais estúpido da terra, que se resignou e se deixou ter direito ao além, simplesmente porque não tinha meios financeiros. Nem nos povos mais atrasados do mundo nem nos mais cruéis, poderíamos ter encontrado, nesse caso, algo semelhante.

Dizem que Ka e Ba são inseparáveis, e são-no na prática dos enterros cerimoniais, uma vez que Ka é o veículo energético que permite a manifestação: se não existe Ka, não há matriz energética onde se manifestar mas, de qualquer forma, trata-se de conceitos e entidades de origens diferentes.

A Sombra

Aparece como um elemento inseparável e misterioso do ser humano, silencioso e secundário, mas presente ao longo da vida e, às vezes, após a morte. Para entender do que se trata, é preciso estudar o hieróglifo que o representa: šwt. As palavras que partilham a mesma raiz têm significados relacionados com “lado”, “vizinhança”, “vazio”, “em falta”, “desprovido”, “necessitado de”, “seco” e “sombra”.

O desenho mostra-nos a ideia de algo paralelo, ou duplo, mas onde falta um traço, ou o sol no horizonte projetando num caso um raio, e no outro um raio truncado, uma zona onde não há luz.

A sombra, pelo menos no seu estado post-mortem, tem sido mencionada em todas as civilizações desde que o mundo é mundo, e o Egito não podia ser a única exceção. Recebeu muitos nomes e características diferentes (goblin, fantasma, alma penada, larvas etc.), mas basicamente está ligada à ideia dos restos psicológicos do falecido. Entre os egípcios, não possui ligações tão sinistras, é simplesmente algo desprovido de luz, inseparável durante a vida, e que pode manifestar-se após a morte, desde que o Ba o proteja e o guie.

Sheut, a sombra. Creative Commons

A sombra seria, assim, um elemento psicológico de ordem inferior, ou lunar que, após a morte, seria desprovido, em condições normais, da luz solar ou do luminoso no ser humano, sendo condenado a desaparecer ou dissolver-se – a menos que seja utilizada ​​pelo Ba para manifestar-se. Dito resumidamente, se não há luz, não pode haver sombra.

Juan Martín
Publicado na revista Seraphis a 25 de maio de 2020.