Existem muitas discussões sobre os possíveis componentes do homem. Os documentos de que dispomos, pertencentes a diferentes épocas, refletem visões variadas, de acordo com a ênfase nas crenças dadas em cada período. Mas antes de começarmos a discutir esses componentes, uma primeira distinção teria que ser feita. Existem 4 possíveis estados, pelo menos, com os quais poderíamos descrever um homem:

  • Um homem vivo.
  • Um homem morto.
  • Um homem mumificado.
  • Um iniciado ou Osíris vivo.

Portanto, a descrição dos seus constituintes variará de acordo a quem nos estamos referindo. O erro mais comum que se comete ao tentar abordar o tema, é o de ignorar que os textos por vezes se referem a um osirificado vivo ou iniciado, outras a um mumificado e outras vezes a um ser vivo normal, então por vezes fala-se do corpo glorificado, que não tem nada a ver por exemplo com ele que veremos a seguir. Em diferentes artigos, descreveremos os vários aspetos que constituem o homem seguindo os conceitos egípcios.

O Corpo

Hieroglífico que representa o corpo

Se uma civilização do futuro só escavasse os nossos cemitérios e catedrais, chegaria a uma visão um pouco distorcida do nosso mundo, quase funerária. Isso é o que tem acontecido com o Antigo Egito. Uma civilização cheia de alegria e vida, e ao mesmo tempo um profundo sentido religioso, embora não clerical como nos querem fazer ver, é recordada paradoxalmente pelos seus mortos.

Tumbas que foram pensadas para nunca serem abertas, cheias de cor e vida no meio da morte, corpos santificados, transfigurados em beleza eterna, foram transformados em pedaços carbonizados à vista de todos, estripados das suas ataduras, e da dignidade que lhes correspondia. Uma dança macabra de esqueletos trazidos e levados diante dos olhos de milhões de pessoas que só veem horror, identificando-o nas suas mentes com a obscuridade do passado, quando precisamente esse horror era o que os egípcios com todas as suas técnicas e cerimonial tentaram evitar.

O que pensaríamos se soubéssemos que todos os corpos de santos que se acumulam nas nossas igrejas foram expostos, depostos de tudo, nas frias vitrinas de algum museu de futuro distante?

Nada teria desagradado mais os antigos egípcios do que a ideia de que a preservação dos seus corpos teria como algum tipo de ressurreição. De uma vez por todas, vamos ser claros: a sua ideia da vida após a morte era totalmente espiritual. A sua ânsia era tornarem-se em seres de luz, vivendo na luz, contemplando Ra, a essência divina manifestada na luz do Sol.

Assim, Osíris, o candidato iniciado, ao chegar à vida após a morte, e encontrá-lo vazio das coisas que ele conhecia na terra, pergunta a Atum, o deus sol na origem e no fim dos tempos:

“-Osíris N: Oh Atum! Como é que viajo por um deserto que não tem água nem ar, que é profundo, escuro e impenetrável?

-Atum: Os que vivem nele têm paz no coração.

-Osíris N: mas carecem das alegrias do amor…

-Atum: Ofereci-te um espírito glorioso em vez de água, de ar e das alegrias do amor, e paz no coração em vez de pão e cerveja. Não sintas pena de ti mesmo, porque não permitirei que te falte.”

Desta forma, Atum descreve o mundo do além. Apesar disso, ainda se insiste que o paraíso dos egípcios era uma imitação do mundo de baixo, e que lá se arava e cultivava como na terra. Que tipo de paraíso era esse em que continuávamos a trabalhar duramente, inclusive o faraó?!

Na realidade, trata-se de uma alegoria, porque para o egípcio, o paraíso era realmente um lugar de trabalho, mas não de tipo material, mas de atividade e produção espiritual. O trigo que se descreve crescendo no paraíso tem 7 côvados de altura (sete outra vez) pois trata-se de um trigo arquetípico, que representa o dos frutos espirituais.

Por acaso não se vê, em muitas representações bíblicas e nos vitrais das nossas catedrais, as espigas de trigo e os cachos de uvas? As oferendas do egípcio não eram materiais, mas de outra natureza, era sua própria conquista de si mesmo:

“Olha, em paz, na sua época, foi levado, restaurado, para a Eneada, entre os seus antepassados. Ele pacificou os dois combatentes (Seth e Hórus) guardiães da vida. Criou a sua própria felicidade, trazendo as suas oferendas pacificou os dois combatentes, com o que lhes pertence. Fez parar o grito dos guerreiros, acabou com o escândalo entre as crianças, secou as feridas das almas.” (rec.110)

Estela de Aafenmut, c.924 – c.889 a.C. Domínio Púlico

O candidato tem sabido conjugar no seu interior os pares de opostos, os eternos combatentes dentro de nós, e por isso alcançou novamente o lugar das origens, entre os antepassados, antes de algo existir, ainda antes do mal do mundo ter aparecido:

“Vindo até aqui antes de existirem os cedros e que as acácias do Nilo tivessem nascido, antes que a terra produzisse os tamariscos” (rec.125).

A mumificação tinha propósitos muito determinados e nunca foi pensada como um método generalizado. O seu objetivo era manter os laços dos seres sobre-humanos, heróis e santos, em ligação direta com o Egito, da mesma maneira como os santos cristãos em que se lhes dedica ermidas e lugares consagrados, onde se lhes presta culto, são presentes oferendas e se lhes pede auxílio ou cura de doenças.

O próprio cristianismo durante muito tempo celebrou os seus ofícios, imitando os antigos egípcios, nas catacumbas, e não por motivos de perseguição, pois como pode ser atestado, o uso de catacumbas foi antes e depois das épocas de perseguição. Nestes recintos não aparecia a figura do crucificado, mas era Lázaro, enfaixado como uma múmia, e saindo da tumba, quem aparecia pintado nas paredes. Antes dele celebrava-se o ágape, onde os mortos e os vivos participavam da comida sagrada, tal e qual como se fazia no Egito.

O corpo foi, portanto, considerado pelos antigos egípcios como algo perecível, às vezes representado com a determinação de um peixe com o corpo pendurado, expressando assim a própria essência dele: o corruptível.

 

Juan Martín Carpio

Publicado na revista Seraphis em 4 de maio de 2020.

Link: https://www.almaegipcia.com/2020/05/constitucion-interna-del-hombre-en-el.html