Ciclo “700 Aniversário da Morte de Dante”

Em 1311, o escritor Dante Aligheiri, também conhecido como “o poeta supremo”, escreveu De Monarchia, um tratado no qual exporia as suas ideias políticas e que é um reflexo da sua filosofia, a cavalo entre o pensamento medieval e o florescente Renascimento. Apesar de que normalmente escrevesse em italiano – não é em vão que é considerado o pai deste idioma – esta obra foi escrita em latim, talvez com a intenção de promover a sua divulgação e fazer chegar o seu conteúdo a uma grande parte dos intelectuais da época.

A obra, que foi escrita durante o seu exílio em Ravenna, está dividida em três livros. No primeiro, expõe a necessidade de uma monarquia universal autónoma e independente que garantisse a unidade e a paz, sob a direção de um único governante a quem ele chama monarca. O segundo está dedicado à defesa da legitimidade do direito ao império. E no terceiro e último afirma que a autoridade do monarca é divina e que não está sujeita ao Papa, retomando assim uma ideia, a da separação da Igreja-Estado, que teve origem nos inícios do século XI com o Cisma do Oriente. O Renascimento, do qual Dante é precursor, se encarregaria de fazer ressurgir este conceito que se consolidaria mais tarde, durante o tempo do Iluminismo.

A corrupção e as intrigas que prevaleceram entre a classe governante da sua época – da qual ele próprio foi vítima – servem de incentivo para que Dante exponha, nesta obra, as qualidades que deveria ter um bom governante. O ideal de Dante sobre o político ideal, que seria acima de tudo um servidor do povo, assemelha-se em muitos aspetos, ao Rei Filósofo de Platão ou ao Homem Justo de Confúcio.

Tal como no Ideal Político de Confúcio, a Ordem é a pedra angular na qual descansa toda a sociedade dos indivíduos e faz que o Governo seja desnecessário ao ser, cada indivíduo, capaz de se governar a si próprio; na Monarquia de Dante encontramos a ideia de que primeiro é necessário governar-se a si mesmo para poder, depois, governar os outros: “quem é mais capacitado de governar é o que melhor pode dispor aos outros, pois em todas as ações o que procura em primeiro lugar, seja pela exigência da sua natureza ou voluntariamente, é reproduzir a sua própria maneira de trabalhar”[1]. E esta forma de se relacionar com os outros, baseada na ética e na justiça, é o que reconhece como próprio do Monarca[2]: “quem quiser conduzir melhor os outros se conduza ele da melhor maneira possível. Mas só o Monarca pode estar muito bem orientado para governar”[3].

Para o mestre Kung[4], o governante deve ser o mais apto, o mais virtuoso, aquele que sabe atuar a todo o momento com o dom da oportunidade para despertar nos cidadãos o sentido de autoconsciência. Ou seja, o governante é aquele que sabe criar um cenário ideal para que cada um dê o seu melhor. Em termos semelhantes expressa-se Dante quando afirma que “o Monarca é aquele que pode ser mais bem disposto para governar, pois é aquele que, entre todos, conserva com maior firmeza o julgamento e a justiça, ambas virtudes que são de grande interesse para o legislador e para o executor da lei”[5].

Confúcio ensinando, retratado por Wu Daozi da Dinastia Tang. Domínio Público

Como cenário ideal para o desenvolvimento de uma sociedade justa e equilibrada, Dante expressa na sua Monarquia que é necessária a paz e a tranquilidade para que o ser humano se realize: “a raça humana encontra-se em maior liberdade e felicidade no sossego e tranquilidade da paz”[6], insistindo que só mediante a paz o ser humano poderá realizar o seu próprio trabalho. “A paz universal é o melhor meio para a nossa felicidade”[7], assevera o filósofo.

Para Dante é necessário que exista Justiça numa sociedade porque considera que é o caminho para um bom governo. Mais uma vez encontramos um paralelo entre Li – o Ideal Político de Confúcio – e a Monarquia de Dante, pois este defende que uma sociedade será mais ordeira quanto mais poderosa seja nela a Justiça. Como definição, Dante afirma que “a justiça (…) consiste numa certa retidão, ou numa regra que rejeita o incorreto venha de onde vier”[8], embora saliente que a justiça pode encontrar oposição na vontade quando não se despoja dos seus apetites (desejos). Para evitar tentações e que o exercício da justiça possa ser ofuscado, o monarca (governante) deve ser um homem justo e livre de desejos, uma vez que estes: “facilmente desorientam a razão dos homens. Onde não há objeto que possa ser desejado, é impossível que haja apetite, porque uma vez eliminado aquele, este não pode subsistir”[9].

Da mesma forma que Dante nos alerta para os perigos de nos deixarmos levar pelos desejos, uma vez que estes nos impedem de agir com justiça, também indica dois caminhos para capturá-la: o amor reto e a caridade. No que diz respeito ao amor, diz o poeta que “quem pode ter o amor reto no máximo grau pode albergar melhor em si a justiça”,[10] pois a enobrece e aperfeiçoa. E quanto à caridade e ao contrário dos apetites (ou desejos) que procuram outros fins, afirma: “a caridade, por outro lado, é dirigida a Deus e ao homem, desprezando tudo o resto; procura, portanto, o bem do homem. E, sendo o maior de todos os bens do homem o viver em paz (…) e conseguindo isso, sobretudo e de maneira especial pela justiça, a caridade será aquela que fortalecerá a justiça, tanto mais que ela seja mais vigorosa”[11].

A Caridade Romana, esboço de óleo de Murillo. Domínio Público

Dante defende a liberdade como caminho para a felicidade, estabelecendo esta liberdade no livre arbítrio do ser humano e enfatizando que apenas é livre quem baseia as suas escolhas em algo estranho aos seus apetites (desejos): “Se o julgamento é movido, seja de que forma for, pelo apetite que o impede, não pode ser livre, pois não é por si só, mas que, como um cativo, é arrastado por outro. Esta é a razão por que os brutos não podem ter julgamento livre, porque o seu julgamento é sempre precedido pelo apetite”[12].

Também afirma o filósofo italiano que o fim de toda a sociedade humana é a aquisição de conhecimento porque tudo o que existe tem um propósito: “está claro, portanto, que a perfeição suprema da humanidade é a faculdade intelectual. E como esta faculdade não pode ser atualizada total e simultaneamente por um único homem (…) deve haver necessariamente no género humano uma multidão de homens por quem este poder é efetivamente concretizado”[13].

Outra das ideias que encontramos neste tratado é o conceito de unidade como motor para o bom funcionamento de uma sociedade. Dante argumenta que a unidade dos seres humanos é a fonte do Bem enquanto o mal é pluralidade, uma ideia que nos remete à filósofa e escritora russa Helena Petrovna Blavatsky quando alerta para os perigos do separatismo. Embora tenhamos de compreender esta pluralidade no contexto em que Dante a colocou: para o filósofo, ser, unidade e a bondade sucedem-se, sendo o ser o poder máximo que precede à unidade e esta, por sua vez, à bondade. Quanto mais longe se afasta da unidade, menos bondade existe para que a pluralidade, que é o oposto da unidade, não possa ser fonte de bem, mas muito pelo contrário.

Além da unidade, Dante afirma que uma sociedade precisa de concórdia, sendo esta “o movimento uniforme de muitas vontades”[14]. A vontade é, portanto, a raiz da concórdia. Para o poeta, uma sociedade “concorde” é aquela em que as vontades dos seus indivíduos caminham para o mesmo fim. Ou seja, para que exista concórdia tem que haver união verdadeira entre os indivíduos, um ponto de encontro entre a diversidade: “o género humano é uma espécie de concórdia quando se encontra perfeitamente, pois assim como um só homem quando se encontra em perfeitas disposições de alma e de corpo é uma forma de concórdia, assim como uma casa e uma cidade e um reino, assim também é toda a humanidade; então o melhor estado da humanidade depende da unidade que se dá nas vontades”[15].

Concórdia, de pé com uma patera e duas cornucópias, no reverso desta moeda de Aquilia Severa. Creative Commons

Ao longo deste primeiro livro, encontramos contínuas referências a que o governante deve ter, acima de tudo, uma atitude de serviço. Mas não pode ser apenas mais um servidor, mas o “servidor de todos”: “não são os cidadãos para os cônsules, nem os povos para o rei, mas, pelo contrário, os cônsules para os cidadãos e o rei para o seu povo; pois, do mesmo modo que não se faz o governo para as leis, mas estas para aquele, assim também aqueles que vivem de acordo com a lei não se ordenam ao legislador, mas é este que está em função daqueles”[16].

Dante, como outros grandes filósofos como Platão ou Confúcio, baseia o ideal da Política na virtude, na ordem, na unidade e na autoconsciência. A premissa de que uma sociedade justa começa primeiro com indivíduos justos faz-se realidade neste Tratado. Não importa que nome se dá ao governante: Monarca, Justo ou Rei-filósofo; o que é realmente importante é que este reconheça na Política uma missão e um dever. Numa sociedade como a nossa, onde os governantes não se preocupam com o bem público nem com o povo, mas sim para enriquecer e que se colocam acima do bem do Estado, o bem dos seus partidos, com os qual, o ideal que servem não é o bem geral, mas o particular de cada um… é impressionante o pensamento de Dante quando afirma que “aquele que é instruído na doutrina política não se preocupa de contribuir para o bem da república, não duvida que está longe do cumprimento do seu dever”[17].

Carmen Morales

[1] Pág. 28, cap. XIII, Livro I. Monarquia, editorial Tecnos.

[2]Termo semelhante ao grego Aristos ou ao Homem Justo de Confúcio.

[3] Pág. 28, cap. XIII, Livro I. Monarquia, editorial Tecnos.

[4] Como também é chamado Confúcio.

[5] Pág. 28, cap. XIII, Livro I. Monarquia, editorial Tecnos.

[6] Pág. 21, cap. IV, Livro I. Monarquia, editorial Tecnos.

[7] Idem.

[8] Pág. 25, cap. XI, Livro I. Monarquia, editorial Tecnos.

[9] Pág. 26, cap. XI, Livro I. Monarquia, editorial Tecnos.

[10] Idem.

[11] Idem.

[12] Pág. 27, cap. XII, Livro I. Monarquia, editorial Tecnos.

[13] Pág. 21, cap. III, Livro I. Monarquia, editorial Tecnos.

[14] Pág. 30, cap. XV, Livro I. Monarquia, editorial Tecnos.

[15] Idem.

[16] Idem.

[17] Pág. 19, cap. I, Livro I. Monarquia, editorial Tecnos.