Hoje vi Clio, a musa da História.

À força de ler e sonhar com os velhos clássicos, aqueles que recebiam a visita inspiradora destas subtis inteligências, fiquei extasiada com a contemplação de um mármore polido com formas femininas representando a História.

E tentei ver para além das formas, para além do mármore, procurando extrair o mistério da deusa que regeu o conceito de tempo e de História durante tantos séculos.

Quis abordá-la explicando-lhe aquilo a que agora chamamos História, e tive vergonha de expor tão pobres palavras. Dei-me conta de que a História se tem restringido a uma série de relatos que se leem nos livros, mais ou menos adulterados e tingidos pelas ideologias de cada época. Apercebi-me de que a História tinha deixado ser ativa ou, pelo menos, dependia de alguns homens que manipulavam os fios a seu gosto e segundo as suas próprias conveniências, nunca suficientemente claras nem limpas. E a própria visão da musa trouxe-me à memória o lendário mito da caverna, que Platão tão bem expusera: uns homens acorrentados no fundo de uma caverna, e uns invisíveis amos da caverna que prometiam constantemente “liberdade” aos condenados a viver tomando as sombras dos muros por realidades. Os aprisionados nas sombras e no engano dificilmente podem fazer História; e se a leem, leem apenas a que lhe apresentam os obscuros amos da caverna.

Perante tanto desconcerto, perante tanta falta de ideais elevados – explicava à minha musa -, a História tem assumido atributos de casualidade, esquecendo o ritmo, a lei, a harmonia, o critério, os desígnios e os traços profundos que o avanço da Humanidade exige.

Porém, compreendi que a minha musa nunca tinha sido fruto do acaso. Ela tinha regido os factos essenciais marcados pela Necessidade, pela Lei e pela Ação. Ela tinha sido, certamente, a musa do destino. Ela tinha inspirado os homens, indicando-lhes o caminho a percorrer, o caminho apropriado para chegar a bom porto.

Hoje vi a musa da História e ela também me ajudou a ver os enigmas do livre arbítrio, aparentemente o oposto da predestinação. Aprendi que as supostas “criações” humanas são efetivas quando se desenvolvem a partir dos canais da grande Lei, do grande Destino; aí sim, estamos perante uma inquestionável predestinação. Não será possível que quem nos tenha dado a vida e animado os mundos, tenha designado também um devir para estes mundos e para os seus seres vivos?

 

Clio no Carro da História. Antiga Câmara do Senado no Capitólio dos EUA. Domínio Público

E qual é o nosso livre arbítrio, a nossa capacidade de criação individual?

É a nossa capacidade de escolher conscientemente o bom caminho, o caminho indicado. Segundo a musa da História, nós, humanos, acabaremos por percorrer o bom caminho com base em duas possibilidades: ou por determinação consciente, uma vez reconhecida e aceite a lei, ou pela força, cometendo erros e sofrendo uma e mil vezes, para acabar por fugir do erro como foge o menino do fogo que lhe queima a pele, ainda que sem compreender as características do fogo.

Os olhos de mármore da musa estão fitos no futuro. Neles vi que, por muito que tenhamos esquecido o sentido da História, por muito que vivamos encerrados no fundo da tétrica caverna materialista, por muito que experimentemos mil e uma fórmulas vazias de conteúdo, a dor levar-nos-á, inexoravelmente, a procurar a linha intangível que demarca os olhos da musa.

A escolha – e isto, sim, é livre arbítrio – consiste em tomar o caminho certo o quanto antes e sem dor, ou mais tarde, mas com a alma dilacerada pelo sofrimento.

Seja como for, no fim do caminho, a musa da História espera, branca e firme, com os seus serenos olhos de mármore, para estender a mão aos que ajudam a escrever o devir e não ficam apenas a contemplá-lo, para inspirar para todo o sempre os mais valentes e determinados, os protagonistas da vida, os conhecedores do princípio e do fim das coisas e, portanto, deste meio que agora percorremos.

Delia Steinberg Guzmán

Publicado em Biblioteca Nueva Acrópolis em 09-09-2017