A obra do escritor e poeta Fernando Pessoa é indiscutivelmente uma referência da literatura mundial, que tem motivado inúmeros investigadores a analisarem os conteúdos literários, assim como sobre a sua personalidade multifacetada, presente nos heterónimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Bernardo Soares.

Porém, não é vulgar encontrar nesses estudos sobre o poeta, mesmo nos trabalhos de crítica literária, a referência a uma carta de sua autoria, dirigida a sua tia Anica, escrita em Lisboa, no dia 24 de junho de 1916. Este documento da sua correspondência pessoal está publicado em «Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas, Fernando Pessoa, Introduções, Organizações e Notas de António Quadros, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1986, pág. 127», o qual constitui uma revelação do comportamento mediúnico narrado na primeira pessoa.

Fernando Pessoa expressa claramente o seu espanto perante os comportamentos psíquicos que classificou de misteriosos, quando a partir de março de 1916 «começou a ser médium», face à constatação de ter «começado de repente, com a escrita automática». Esta designação é inerente à psicografia direta ou manual, conforme vem descrita em «O Livro dos Médiuns». Fernando Pessoa escreveu os pormenores sobre a manifestação deste comportamento, apesar de se confessar como um «elemento atrasador nas sessões semiespíritas» que frequentava. Certo dia, quando regressava a casa, depois de ter vindo do Café da Brasileira, sentiu uma «vontade» de, literalmente, pegar numa caneta e pô-la sobre o papel», apercebendo-se de que se tratava de um impulso. Escreveu Fernando Pessoa que momentaneamente não tomou consciência do facto, porque o tomou como um comportamento natural de quem pudesse estar distraído, «de pegar numa pena para fazer rabiscos». Neste seu testemunho de manifestação mediúnica escreveu que começou por fazer uma assinatura que era bem conhecida dele, cujo nome era «Manuel Gualdino da Cunha», o tio Cunha como chamava. Poder-se-á sempre questionar este tipo de comportamento, balanceado entre o animismo e mediunismo, mas Fernando Pessoa revela nesta carta a sua participação em reuniões mediúnicas e tem a consciência que a sua escrita automática, como chamou, não era comparável com aquela da tia Anica ou da Maria, supostamente uma médium de psicografia que frequentava as mesmas sessões de Fernando Pessoa. O escritor diferenciou essa psicografia, uma vez que essa escrita obedecia a uma linguagem coerente, contrariamente ao que se passava com a sua. Tendo a experiência de exercitar a escrita frequente, certamente que teria maior discernimento em diferenciar as situações anímicas das mediúnicas, pois também reconheceu nesta carta que: «de vez em quando, umas vezes voluntariamente, outras obrigado, escrevo e que raras vezes são comunicações compreensíveis», assumindo que na maior parte das vezes, existia uma tendência imperfeita mas misteriosa para lhe responderem com números ou com desenhos. Escreveu que não eram desenhos de objetos, mas de: «sinais cabalísticos e maçónicos, símbolos do ocultismo e cousas assim, que me perturbam um pouco».

Estátua de Fernando Pessoa da autoria de Mestre Lagoa Henriques, junto ao café A Brasileira, no Chiado, em Lisboa. Creative Commons

Sabe-se que o escritor tinha uma personalidade rica, criativa, intelectual e com uma atração metafísica e religiosa muito peculiar e simultaneamente inquietante. Em 1917 escreveu um texto intitulado «O Conselho Magistral do Neopaganismo Português delegou em mim…», publicado em «Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Fernando Pessoa, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa: Ática, 1996, pág. 228, em qual texto declara: «sou um pagão decadente, do tempo do Outono da Beleza; do sonolecer da limpidez antiga, místico intelectual da raça triste dos neoplatónicos de Alexandria… Mais do que, propriamente, o dos neoplatónicos é meu o paganismo sincrético de Juliano Apóstata [331-363, último imperador pagão de Roma]». Em 30 de março de 1935, numa nota biográfica publicada em «Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas», Fernando Pessoa declara-se um «cristão gnóstico, inteiramente oposto a todas as igrejas organizadas… fiel ao mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários e, combater sempre e em toda a parte, os seus três assassinos: a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania», em contraponto com a sua condição pagã expressada em 1917. Esta profunda inquietude em conjugação com o seu conhecimento sobre a doutrina espírita e a sua constante proximidade com o Ocultismo são reveladoras de uma mediunidade profundamente perturbada.

Jacques de Molay. Domínio Público

Prosseguindo a análise da carta à tia Anica, sem dúvida que Fernando Pessoa tinha a consciência do seu comportamento mediúnico, uma vez que descreveu o contacto que fez com um «amigo ocultista e magnetizador», que lhe tinha explicado que o facto de psicografar números era uma «prova da autenticidade da sua escrita automática, ou seja, não era autossugestão, mas uma mediunidade legítima». Afirmou nesta carta que a sua mediunidade não se resumia à psicografia ou escrita automática. As suas palavras permitem aferir que a sua mediunidade se manifestava de forma sensitiva. Descreveu o que sentira quando o seu grande amigo e escritor Mário de Sá-Carneiro vivia em Paris e foi acometido por uma profunda crise psíquica que o conduziu ao suicídio: «eu senti a crise aqui e, caiu sobre mim uma súbita depressão vinda do exterior, que eu, ao momento, não consegui explicar-me». Este quadro psíquico-espiritual deprimente traduzia-se naturalmente, pela influência de espíritos perturbados que transmitiam essas impressões negativas. Estas reações estão em sintonia com os princípios estabelecidos em «O Livro dos Médiuns», ou seja, se um bom Espírito se manifesta, transmite sempre sensações suaves e agradáveis; se for o caso de um mau Espírito, contrariamente, essas sensações são dolorosas e angustiosas.

As manifestações mediúnicas de Fernando Pessoa continuam a ser descritas nesta sua carta, testemunhando as suas qualidades de médium vidente, comparando-as com aquilo a que os ocultistas chamavam de «visão astral» e também de «visão etérica». Considerou que tudo isto estava num estado muito precoce, mas não admitia quaisquer dúvidas quanto à genuinidade deste comportamento, admitindo no entanto, que tudo era muito imperfeito. Fernando Pessoa descreveu a sua capacidade de visualizar a «aura magnética» [o perispírito] de algumas pessoas e sobretudo, a sua em frente ao espelho, assim como no escuro conseguia visualizar a irradiação das suas mãos. Afirmou que não se tratava de alucinação, chegando a ver na Brasileira do Rossio, «as costelas de um indivíduo através do fato e da pele», classificando este momento de feliz, no quadro da visão etérica. Escreveu ainda que a sua «visão astral» estava muito imperfeita, admitindo que: «por vezes, de noite, fecho os olhos e há uma sucessão de pequenos quadros, muito rápidos, muito nítidos, tão nítidos como qualquer cousa do mundo exterior. Há figuras estranhas, desenhos, sinais simbólicos, números, também já tenho visto números…».

O Santo Graal, ilustração de Arthur Rackham, 1917. A arte pré-rafaelita, dessa época, frequentemente representava o interesse contemporâneo pela “aura”. Domínio Público

A linguagem utilizada por Fernando Pessoa na carta à tia Anica, para descrever estes comportamentos mediúnicos, não indicia que as suas fontes doutrinárias sejam preferencialmente espíritas. Deteta-se em Fernando Pessoa alguma tendência para confundir o Ocultismo e o Espiritismo, como é patente no seu texto intitulado «Um Caso de Mediunidade – Contribuição para o estudo da atividade do subconsciente do espírito», publicado em «Maria Teresa Rita Lopes, Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création, Paris: F. C. Gulbenkian, 1977, pág. 505». Trata-se de um texto com muito interesse para estudos comparativos, o qual descreve a indução, a progressão, as concomitantes psíquicas da mediunidade e as comunicações mediúnicas, finalizando com as conclusões. Neste documento chega a tratar a mediunidade como um desequilíbrio mental, um estado inicial de loucura declarada e refere que até aquela data não existiam provas da existência de espíritos comunicantes. Estranhamente, Fernando Pessoa parece ter assumido o papel de um qualquer heterónimo, na medida em que este texto está claramente em oposição ao que descreve na carta à tia Anica, o que faz evidenciar mais ainda a convicção de uma mediunidade instável, titubeante e perturbada. Por outro lado, não estando este texto datado, tudo indica que foi escrito muito posteriormente à carta para a tia Anica. Nesta carta existem indícios específicos de um estado de deslumbramento com a constatação do seu comportamento mediúnico. Confrontou a tia Anica com a possibilidade das perturbações destes fenómenos, ao que respondeu que havia mais curiosidade do que susto, mas que a tia Anica não julgasse que se tratava de loucura e em matéria de equilíbrio mental, sentia-se tão bem como nunca. No final da carta pediu à tia Anica por favor para não divulgar isto a ninguém, por razões desvantajosas, algumas delas de ordem desconhecida.

O estudo mediúnico de Fernando Pessoa é revelador da sua complexa personalidade, o qual permite compreender com outros argumentos a extensão, significado e enquadramento da sua genial obra, que para além de poética é substancialmente filosófica.

Carlos Paiva Neves

Imagem de destaque: Fernando Pessoa nasceu neste edifício, no bairro do Chiado, em frente ao Teatro Nacional de São Carlos de Lisboa. Creative Commons