No contexto da doutrina espírita, a palavra “caminho” é bem reveladora da sua profundidade filosófica.
O caminho da alma e do espírito faz-se incessantemente, nos percursos das suas múltiplas existências. A experiência do caminho reflete momentos de grande recolhimento, de introspeção, de meditação, de predisposição interior, porque a alma fica mais desmaterializada e exposta às dádivas da Natureza.
Em tempos remotos, muito antes da cristianização, a peregrinação não tinha uma conotação religiosa. Estava relacionada com uma longa viagem, geralmente realizada em país estrangeiro, como indica a palavra latina “peregrinatio”, referindo-se ao viajante que percorre essas terras como “peregrinator” ou “peregrinus”. No tempo da civilização romana era um estatuto próprio de quem tinha escolhido a carreira militar, quais soldados percorriam a pé, os vastos territórios da Europa, da Ásia e do Norte de África. Faz parte da natureza do Ser Humano sentir a necessidade de afirmar a sua condição de viajante e as motivações que o guiam são inúmeras: a procura de evasão, experimentar as rotas da liberdade, fugir da rotina, encontrar um sentido para a vida e para a morte, buscar uma outra forma de vida ou sistema de valores que rompam com o passado.
O sentido religioso da peregrinação remonta ao templo de Salomão, em Jerusalém, o qual era procurado por muitos judeus para celebrarem as suas cerimónias do culto, por ocasião das festas da Páscoa, da Dedicação e dos Tabernáculos. Mais tarde, Jesus também marcou presença nestas festas. Os nossos irmãos judeus, cristãos, muçulmanos, budistas, hindus têm também o seu culto de peregrinação. Independentemente das diferentes crenças religiosas, os peregrinos manifestam estados de alma que são comuns a qualquer peregrinação espiritual. Um dos caminhos mais procurados no Ocidente, desde os tempos pagãos, é a antiga via de “Finis Terrae” que com o advento da cristianização se tornou conhecido pelos “Caminhos de Santiago”, convertendo-se no terceiro núcleo de peregrinação, antecedido por Roma e Jerusalém. Era uma rota seguida tradicionalmente por muitos povos da religião celta, que peregrinavam até ao desejado fim do mundo, seguindo a Via Láctea. Havia nesses peregrinos um imaginário que os fascinava quando finalmente confrontados com a imensa massa oceânica, cujos limites eram desconhecidos e que propiciava o início de uma outra peregrinação, exclusivamente no plano espiritual. A “Finis Terrae” representava para aqueles povos a transição da vida material para a vida espiritual.
A peregrinação sugere que toda a vida do Ser Humano é um caminho, que parte deste mundo físico e continua no mundo espiritual, adquirindo assim uma dimensão existencial infinita. A atitude de caminhar em peregrinação é acima de tudo conferir à alma maior expansão, preparando-a para a proximidade com Deus e a sua obra, conferindo maior discernimento ao significado do caminho. As existências são verdadeiros caminhos de peregrinação, lembrando que Jesus disse que para chegar ao céu é preciso procurar as veredas mais penosas da vida, motivando a caminhar por entre as urzes e os espinhos, em detrimento dos trilhos floridos. O espírito deve experimentar e conhecer as dificuldades do caminho, pois se não percorresse as montanhas, não sentiria a dificuldade da subida e da descida. Mas Deus permite sempre que o espírito escolha o seu caminho, proporcionando que uns avancem mais do que outros, garantindo que todos terão de fazer o seu caminho. Seguindo um ensinamento de Buda:«o caminho não existe, o caminho faz-se caminhando» e um dia, todos serão capazes de interpretar o caminho como a própria meta.
Os caminhos de peregrinação são espaços privilegiados para a superação física e mental e de facto o que nos devolve é a grande capacidade de concretização da nossa vontade. As formatações desta civilização vão castrando a capacidade construtiva e criativa do Ser Humano, constantemente intoxicado pelas propagandas silenciosas num permanente desfile de vaidades e de conquistas materiais. A peregrinação incita-nos ao abandono dos gozos materiais e a procurar os bens imperecíveis nos gozos da alma, uma vez que neste mundo não nos tornamos mais ricos por aquilo que juntamos, mas por aquilo que renunciamos. É no caminho que buscamos a paz interior e citando Mahatma Ghandi:
«a pessoa que não está em paz consigo mesma, será uma pessoa em guerra com o mundo inteiro».
O caminho também é o reencontro com a filosofia. As máximas e os pensamentos dos vultos filosóficos fazem mais sentido quando percorremos o caminho. É o exemplo do testemunho de Marsílio Ficino (1433-1499), um neoplatónico da Renascença que vem relevar o princípio espírita da necessidade da transformação moral, através dos esforços que são empregados para amansar as tendências malévolas:
«conhece-te a ti mesmo, ó linhagem divina vestida com trajes mortais. Despe-te, eu te peço, separa o quanto podes, e podes o quanto te esforces; separa, digo, a alma do corpo, a razão dos afetos do sentido. Verás logo, cessadas as brutalidades terrenas, um puro ouro e, afastadas as nuvens, verás um luminoso ar e então, acredita-me, respeitarás a ti mesma como um raio eterno do divino sol».
Os Caminhos de Santiago são cruzados diariamente por inúmeros peregrinos provenientes de todos os pontos do Globo, confraternizando, respeitando-se mutuamente, onde tantas histórias desfilam num palco de caminhos tão diferentes na língua, na cultura, na tradição, nas crenças, ouvindo-se amiúde a pergunta: porque vieste fazer o caminho? Cada irmão peregrino tem uma história tão rica e tão diferente da outra, mas ali dá-se conta da solidariedade e da fraternidade. Quando chega a noite e o albergue acolhe o peregrino, o corpo pede o merecido descanso e a alma fica vigilante sempre atraída pelo caminho. Eis quando na parede está escrito um pensamento de Phil Bosmans (1922-2012): «aproxima-te dos outros com mão suave porque o ser humano é frágil. Dá-lhe o pão da tua bondade. Que os demais vejam em ti um refúgio, um porto e um oásis». As fraquezas e fragilidades são visíveis no cansaço, nas bolhas dos pés, na exposição ao calor e à chuva, mas o caminho enriquece a esperança, ilumina a alma, reforça a vontade de vencer e mostra a harmonia envolvente da Mãe-Natureza.
A noção do espaço-tempo fica também modificada porque o peregrino consegue percorrer uma grande distância diariamente, os pensamentos estendem-se e o sentido de observação fica mais cuidado e atento aos pequenos comportamentos da natureza. Quando no longínquo horizonte se vislumbra uma montanha, repentinamente parece inalcançável, porém a perseverança no caminho permite que seja vencida passados uns dias. Na peregrinação o estado psíquico-espiritual eleva-se à capacidade do corpo, caminhamos com os pés e andamos com o coração e descobre-se que as coisas fundamentais da alma aos olhos são invisíveis. Esta é uma realidade ensinada pelos filósofos. Se Buda ensinou que «convertemo-nos naquilo que pensamos», Fénelon engrandece o esforço por via do pensamento para que a alma se liberte da sua limitada esfera e na medida em que se vai elevando, diminuirá a influência da vida material, no caminho infinito da existência espiritual.
Nos caminhos de peregrinação espiritual onde se opera a transcendência da alma e do espírito, uma promessa faz sentido: caminhar continuamente com Deus. Bom caminho!
Carlos Paiva Neves
Imagem de destaque: Monumento ao peregrino de Santiago, à beira do mar e da estrada entre a vila e o farol do cabo Finisterra. Creative Commons