1. Introdução

Com a assinatura do tratado de Alcáçovas em 4 de setembro de 1479, não se pode afirmar que o interesse da Coroa portuguesa, quanto às viagens atlânticas para o Ocidente, tenha sido abandonado completamente. Anteriormente, em 28 de janeiro de 1474, através de carta de doação régia de quaisquer ilhas achadas no mar oceano, identifica-se a concessão que foi dada a Fernão Teles, de terras a descobrir para além das ilhas Floreiras, que tinham sido descobertas por Diogo de Teive e seu filho João de Teive. De acordo com este documento, subentende-se por um lado, que estas viagens não foram financiadas pela Coroa portuguesa, mas antes um reconhecimento por mercê dos serviços e remunerações a expensas do próprio Fernão Teles. De outra parte, fica bem patenteado o interesse quase obstinado da política expansionista de D. Afonso V pelos territórios da Guiné com a marca influente de seu filho, o príncipe D. João. Em carta de 10 de novembro de 1475 focaliza-se novamente a proteção dos territórios nos mares da Guiné e, inclui-se no quadro das ilhas a descobrir, povoadas ou não povoadas, a ilha das Sete Cidades. Considera-se relevante reforçar a ideia de que estas viagens para o Ocidente e sobretudo as implícitas na colonização dos Açores fundamentam a escola portuguesa de navegação no alto mar (Cortesão, 1990a), sendo natural que a sucessão da descoberta das ilhas açorianas, estimulasse ainda mais, o ímpeto aventureiro dos navegadores portugueses, após as descobertas das ilhas do Corvo e das Flores. Esta manifestação já vinha patenteada nos tempos do infante D. Henrique que aspirava descobrir terras desconhecidas no oceano Ocidental para além das que vinham descritas por Ptolemeu, acabando por observar essas ilhas a 300 léguas para lá de Finis Terrae, onde encontraram muitos milhafres ou açores (Canto, 1878).

Existiu de facto, um interesse institucionalizado pelas viagens a poente do arquipélago dos Açores, em busca da suposta ilha das Sete Cidades, promovidas pela iniciativa privada, quer no reinado de D. Afonso V, quer no de D. João II, vontade essa também expressa pelo duque de Viseu, D. Manuel I, futuro rei de Portugal. Muitas fronteiras terrestres e marítimas eram desconhecidas, sendo plausível que a Coroa de Portugal pretendesse agir em diversas frentes, em prol da concretização do plano da Índia. A ilha das Sete Cidades foi objeto de doação régia, por D. João II, em carta de 3 de março de 1486, ao donatário Fernão Dulmo, relevando-se o facto, de o financiamento ser garantido pelo próprio (Marques, 1971). Em outra carta de 24 de julho de 1486 é reconhecido por D. João II, o contrato e doação entre Fernão Dulmo e João Afonso do Estreito, para o descobrimento de ilhas e terra firme, a expensas próprias, em direção ao Ocidente (Marques, 1971). Nos primórdios do século XVI, Duarte Pacheco Pereira recorda os debates intensos levados a efeito no reino de Portugal, sobre a melhor rota para alcançar as terras das riquezas e das especiarias, quer na direção longitudinal, quer na direção latitudinal do Atlântico (Newitt, 2005). O assunto não era consensual porque uns defendiam a descoberta das Etiópias, da Guiné e das Índias, ao longo da costa africana; outros argumentavam que se se atravessasse o golfo até encontrar alguma terra, assim se encurtaria o caminho (Carvalho, 1991).

Globo de João de Lisboa (1470-1525) – excerto do Livro de Marinharia (1514). Domínio Público

O desconhecimento das dimensões da Terra, dos lugares geográficos e das proporções entre continentes e oceanos, no século XV, fundamentava uma visão muito ptolemaica do mundo, a que se juntaram vários argumentos bíblicos para a localização da aurífera Ofir. Cristóvão Colon citou Isaías, os Reis e as Crónicas, sobre o ouro trazido de Társis e Ofir para honrar o nome do Senhor e, evocou o envio de navios e marinheiros até Asiongaber e Elat, lugares à beira-mar, no país de Edom, por ordem do rei Salomão, de onde trouxeram quatrocentos e cinquenta talentos de ouro para a construção do Templo. Esta Ofir era identificada com a Aurea Chersonesus no mapa de Ptolemeu, conforme é reconhecido no livro de Flávio Josefo (séc. I d. C), conhecido por «As Antiguidades dos Judeus», uma obra fundamental no pensamento geográfico de Cristóvão Colon. Esta fonte descreve que Salomão ordenou aos seus marinheiros e outros com competências em navegação, para irem até uma terra antiga, riquíssima em ouro, chamada Ofir, localizada na Índia e, que ao tempo se passou a designar por Aurea Chersonesus (Thacher, 1903). Coloca-se a necessidade de localizar esta região tão referenciada nos escritos antigos, pelo facto de ser rica em ouro, uma ideia crucial no projeto do almirante Cristóvão Colon. É sobre este tema que o navegador juntou outro comentário de Nicolau de Lira sobre a passagem de 1Reis 9:26-28, no qual refere que Ofir é um nome de uma província da Índia, em cujos montes se encontram as minas de ouro, que estariam habitadas por leões e bestas muito ferozes (Kling e West, 1991). Esta designação de Ofir aparece na literatura com diferentes topónimos: Sephar, Sophir, Sopheira, Sophira. Quando os muçulmanos árabes começaram a traduzir a Bíblia por influência grega [Indós], chamando-lhe Al Hend, referenciando-a a partir de 1Reis 9:28: «Navegaram até Ofir e de lá trouxeram catorze mil e setecentos quilos de ouro para o rei Salomão» e Isaías 13:12: «Farei que o homem seja mais precioso do que o ouro puro, e mais raro do que o ouro fino de Ofir» (Keane, 1901). A tradição da localização da Aurea Chersonesus, como a última Thule do Novo Mundo, era identificada com Ofir, localizada na península de Malaca pelos cartógrafos dos séculos XV-XVI (Wheatly, 1955), que viria a ser cristianizada pelos portugueses em 1511, seguindo assim o precedente de Cristóvão Colon que reportou a sua descoberta de Ofir no Novo Mundo, quando aportou na ilha Hispaniola.

Diogo do Couto (1542-1616), historiador e guarda-mor da Torre do Tombo de Goa, escreveu a propósito, que as riquezas do Oriente eram imensas, onde o rei Salomão enviava as suas armadas para carregarem o ouro e outras preciosidades para o Templo. Este historiador registou que Ophir ou Sophira se reportava a Sofala, na costa oriental de África, de onde retiravam grandes quantidades de ouro para o Templo de Salomão (Amaral, 1790). Havia uma convicção que a localização da Aurea Chersonesus era no oceano Índico, fosse na península de Malaca ou em Sofala na costa oriental de África, ou em outro lugar do Oriente.

Quando Cristóvão Colon encontrou finalmente uma quantidade apreciável de ouro em Veragua, na atual América Central, declarou que se encontrava muito perto da Ofir bíblica. E a este respeito descreveu alguns aspetos da sua quarta viagem, na conhecida Lettera Rarissima de 7 de julho de 1503. Cita a fonte anterior de Flávio Josefo, declarando que estas minas de Aurea Chersonesus tão procuradas durante a Idade Média, são parte de Veragua, as mesmas onde Salomão captou 3000 quintais de ouro das Índias, para ajudar na construção do Templo e, de acordo com Josefo, estas eram as mesmas regiões (Kling e West, 1991). A persistência de Cristóvão Colon em encontrar as famosas minas auríferas de Aurea Chersonesus, fê-lo dispersar sobre a sua localização, notoriamente por uma questão ideológica na perseguição da tomada da Santa Casa de Jerusalém. A localização destas minas foi também confundida com a ilha de Cipango, famosa pela sua riqueza aurífera na descrição das viagens de Marco Polo (Fernandes, 1502), outro dos livros de cabeceira do almirante Colon. Foi muito provavelmente o desconhecimento da existência do imenso oceano Pacífico, que conduziu Cristóvão Colon a esta dispersão da localização geográfica entre Aurea Chersonesus, Ofir, Cipango, Hispaniola e Veragua, navegando pelo Ocidente. Conforme se pretende demonstrar, o almirante do Mar Oceano, jamais encontrou as minas auríferas de Aurea Chersonesus, por declaração escrita, ao Papa Alexandre VI (1431-1503).

Fragmento do mapa-múndi elaborado pelo almirante, geógrafo e cartógrafo otomano Piri Reis em Constantinopla em 1513, hoje no Palácio de Topkapı, em Istambul. Domínio Público

  1. Aferindo as medidas do grau meridiano

Em termos comparativos com o estado da arte nos finais do século XV, torna-se ainda mais evidente, a dificuldade na representação da imagem do mundo, a qual se revela bastante incoerente. As cartas-portulano (atender à diferença entre mapa e carta náutica) vão sendo objeto de maior rigor no registo de conteúdos geográficos, mas quedam-se pela representação espacial e funcional (Domingues, 2011). O conjunto de mapas referenciais para a época, representados na Figura 1, mostra a evolução do perfil do continente de África, que levou cerca de 43 anos para se assemelhar àquele que se conhece atualmente, desde o mapa de Fra Mauro até ao de Cantino. Parece ter ocorrido um retrocesso, no que respeita à representação espacial do istmo do Suez, que aparece mais que duplicado em extensão, em relação ao ilustrado nos mapas de Fra Mauro e de Henricus Martellus, conforme já tinha sido notado por Teixeira da Mota. De acordo com as cartas náuticas do Mediterrâneo, há muito que se sabia da proximidade entre o delta do Nilo e o extremo setentrional do Mar Roxo (Mota, 1958). Evoluindo de Fra Mauro para Henricus Martellus verifica-se um salto significativo da latitude do extremo sul de África, como consequência direta da viagem de Bartolomeu Dias, que pretenderia demonstrar a ligação entre o Atlântico e o Índico (Domingues, 2011).

Evolução do contorno continental de África, Carlos Paiva Neves

Havendo conhecimento que os informes cartográficos derivavam do progresso das navegações portuguesas, observa-se que no período de treze anos, entre o mapa de Martellus e o de Cantino, o contorno do cabo da Boa Esperança aparece configurado em consonância com a rota que percecionou o Império Português. O que se pode analisar de imediato, no mapa de Martellus, não é tanto essa ligação entre os dois oceanos no hemisfério sul, mas uma interrupção dessa conexão, uma vez que a configuração territorial penetra a orla sul do mapa. Trata-se da representação de um erro de coordenada, que poderia estar enquadrado na política de sigilo de D. João II, no sentido de fazer crer a Cristóvão Colon, que a viagem para a Índia pelo cabo da Boa Esperança era muito mais extensa, havendo possibilidade da divulgação do mapa de Martellus ter sido promovida por parte de Cristóvão ou Bartolomeu Colon, em defesa dos seus argumentos, para a realização da viagem pelo Ocidente (Cortesão, 1990b). Neste enquadramento, não se torna tarefa fácil balizar as possíveis fontes cartográficas que sustentaram o projeto das Índias Ocidentais de Cristóvão Colon, mas Ilaria Caraci, Nuñez de las Cuevas e Kenneth Nebenzahl convergem em considerar determinante o mapa de Henricus Martellus (Alegria, 1994).

Uma outra questão importante está relacionada com a forma e a dimensão da Terra, que constituíram uma centralidade nos argumentos de Cristóvão Colon. De acordo com os testemunhos científicos de Kretschemer (1926), de Randles (1980 e 1985) e de Luís de Albuquerque (1989), este problema não estava completamente solucionado, o que certamente influiu no pensamento geográfico de Cristóvão Colon e dos seus contemporâneos, no final do século XV (Alegria, 1994). Importa clarificar que, quanto à forma, os sintomas da esfericidade da Terra eram correntes nas fontes da época, mas esta noção não estava completamente resolvida. Afinal, este conceito já vinha desde a Antiguidade, patente no famoso trabalho de Eratóstenes, em Alexandria e Assuão, para a determinação do raio da Terra, no século III a. C.. O resultado oferece uma elevada fiabilidade, se forem tomados em consideração alguns critérios de cálculo, como por exemplo, a estimativa grosseira da distância entre aquelas duas cidades (Aujac, Harley e Woodward, 1987).

Na carta de 27 de janeiro de 1495, dirigida aos Reis Católicos, o cosmógrafo Jaume Ferrer, referindo-se ao raciocínio sobre a delimitação de Tordesilhas, afirmou que enviaria a Suas Altezas uma forma mundo em plano, com a representação dos dois hemisférios (Thacher, 1903). Também Duarte Pacheco Pereira cita algumas vezes, no seu Esmeraldo de situ orbis, o Tratado da Esfera de Sacrobosco, onde evidencia a circularidade do equador, no Capítulo 10 do Livro II: «e esta terra é muito vezinha do círculo da equinocial, da qual os antigos disseram que era inabitável e nós por experiência achamos o contrário» (Carvalho, 1968). Acerca da esfericidade da Terra, Cristóvão Colon escreveu que as autoridades e as experiências de Ptolemeu e de outros, davam conta dessa demonstração, como por exemplo os eclipses da Lua, mas a sua interpretação conduzia a uma forma não completamente redonda, assemelhando-se a uma pera, onde na haste se localizava o Paraíso terrenal (Valle e Rayón, 1875).

Planisfério de Cantino (c. 1502), carta náutica portuguesa mostrando o meridiano de Tordesilhas e o resultado das viagens de Vasco da Gama à Índia, Colombo à América Central, Gaspar Corte-Real à Terra Nova e Pedro Álvares Cabral ao Brasil. Domínio Público

As questões da dimensão e da proporção da Terra estavam ainda longe do rigor, como se pode avaliar pelo conteúdo do Quadro I, no qual se apresentam os valores para o grau meridiano em diferentes épocas. Este valor é determinante para a ciência náutica, interferindo diretamente na discussão da delimitação prevista no Tratado de Tordesilhas. Esta análise tem sido muito focalizada, quase em exclusivo, na perspetiva da sua influência no espaço do Atlântico e poucas vezes no contexto do hemisfério português do Extremo Oriente. Quando os portugueses se aproximaram do Promontório Prasso e adquiriram a ideia da extensão em longitude da Ásia, a deslocação de 270 léguas para oeste da linha de partilha com Castela, teria de garantir a D. João II, a influência no Atlântico Sul e simultaneamente, nas regiões de interesse no Índico (Mota, 1958). Decorre desta análise, que o estado da arte dos conhecimentos geográficos ao tempo de D. João II, não permitiam de modo algum, uma exatidão do referencial de posição do limite dessas regiões no Extremo Oriente.  Ressalta da análise do Quadro I, que todas as fontes apresentam um erro por defeito, para os valores do grau meridiano adotado, o que significa que todos admitiam a circunferência terrestre equinocial menor do que é na realidade. Duarte Pacheco Pereira adotou um valor com um erro menor, retomado apenas no século XVII por Manuel Pimentel (Domingues, 1992), não se conhecendo com rigor, os critérios que levaram aquele navegador a tal conclusão. Merece também ser sublinhado que desde os tempos de Bartolomeu Dias e de João de Lisboa, o valor seguido era de 16,66 léguas, e logo nos princípios do século XVI, foi adotado pelos portugueses, o valor de 17,5 léguas, de acordo com as escalas constantes no mapa de Cantino (1502). Este último valor foi adotado até ao século XVIII.

Quadro I – Valores do grau meridiano, Carlos Paiva Neves

Fontoura da Costa considerou que não havia lugar para dúvidas, quanto ao uso, por parte de portugueses e castelhanos, do valor de 16,66 léguas para o grau meridiano, coincidindo com o grau do árabe Abul Hassan, com a ressalva de que o valor do grau peninsular era menor do que o deste, pela razão da milha romana[1] de 1480 m, ser menor do que em relação à milha árabe de 2164 m. Este aspeto é crucial, pois exclui a utilização da milha árabe de 2164 ou de 1973 metros, por Cristóvão Colon, conforme já tinha sido apontado por Armando Cortesão, em 1969 e Ilaria Caraci, em 1990 (Alegria, 1994). Apesar deste valor apresentar o maior erro em relação aos restantes valores constantes no Quadro I, o mesmo aparece repetidamente nas apostilhas de um dos seus livros de cabeceira, a Imago Mundi do cardeal Pierre d’Ailly:

Apostilha 4: «Cada grau corresponde a 56 milhas 2/3, isto é 14 léguas e 23 passos», Raccolta, P. I, vol. 3, p. 69; Apostilha 28: «Cada grau tem 56 milhas 2/3 e assim a circunferência da Terra tem 20.400 milhas», Idem, P. I, vol. 2, p. 71; Apostilha 30: «Nota que cada grau, no Equador, realmente corresponde a 56 milhas 2/3», Idem, p. 71; Apostilha 31: «Corresponde cada grau a 56 millas 2/3 e isto é a verdade, o resto são palavras», Idem, ibidem, p. 71; Apostilha 490: «Nesta nota marginal Cristóvão Colon declara que adotou a medida do grau terrestre seguida pelo cosmógrafo árabe Alfragano, tomando-a não diretamente da obra deste autor, mas da Imago Mundi de Pierre d’Ailly, como provam as apostilhas precedentes, sem dar qualquer advertência que as milhas árabes de Alfragano eram maiores (1.973,50 metros) que as italianas empregadas por Colon (de 1.477, 50 metros). Com esta avaliação do grau terrestre, os 360° da circunferência equinocial totalizavam 20.400 milhas.», Idem, P. I, vol III, p. 82; Apostilha 491: «Um grau equivale a 56 milhas 2/3 e a circunferência terrestre corresponde a 5.100 léguas [5100 léguas ÷360 = 14,17 léguas]; isto é a verdade». (Manzano, 1989)

Destas apostilhas realça-se a nº 490, que sobre o valor do grau de 56,66 milhas adotado por Cristóvão Colon, acrescenta que o mesmo encontrou o mestre José Vizinho e outros, enviados pelo rei D. João II com a finalidade de medir o círculo equinocial (Varela, 1989). Colon teve contactos próximos com Vizinho, especificamente em 1485, declarando que esteve presente no momento em que o cosmógrafo deu conta a D. João II, dos resultados das medições da altura do Sol em toda a Guiné (Varela, 1989).

Apesar do erro considerável do grau meridiano de Colon, o parecer do cosmógrafo Jaume Ferrer sobre a delimitação de Tordesilhas, que motivou o apelo dos Reis Católicos em 28 de fevereiro de 1495, toma como referencial a experiência e o conhecimento de Cristóvão Colon, que em matéria de navegação, o considerou mais capacitado do que qualquer outro. Nesse parecer técnico, Jaume Ferrer recorreu à navegação do almirante das Índias, evocando por sua vez, o capítulo V, do Livro Oitavo de De Situ Orbis de Ptolemeu (Thacher, 1903). Esta fonte considerava que a «reta circunferência» da Terra que passa pela equinocial, ou seja, o seu perímetro, media 180.000 estádios, à razão de 500 estádios por grau, e contando oito estádios por milha, resultavam 22.500 milhas. Para melhor compreensão deste resultado, apresentam-se seguidamente, as respetivas operações aritméticas: 180000 estádios÷360 grau=500 estádios por grau; 500 estádios por grau÷8 estádios por milha=62,5 milhas por grau; 62,5 milhas x 360 grau=22500 milhas; 22500 milhas÷4 milhas por légua=5625 léguas; 5625 léguas÷360 grau=15,63 léguas por grau. Nestas operações foi considerada a conversão de quatro milhas por légua, conforme se demonstra nos registos constantes no Quadro II, coligidos e analisados pelo autor, a partir do diário da primeira viagem do navegador Cristóvão Colon. O valor considerado por Cristóvão Colon era de 14,17 léguas, tal como para Alfragano, inferior ao que vinha referenciado por Ptolemeu. Este valor vem comprovar a noção do tamanho do mundo descrita por Cristóvão Colon aos Reis Católicos, na Lettera Raríssima. Escreveu o navegador que o mundo é pequeno, ao contrário do que era comum afirmar-se, sendo a sua componente sólida de seis partes e a líquida apenas uma, baseando-se no 4º Livro do profeta Esdras 6:42. Este argumento tornava maior a convicção de que o grau da linha equinocial seria de 56 2/3 milhas, como pretendia demonstrar (Thacher, 1903). Tendo a noção, pelos cartógrafos da época, que a Aurea Chersonesus estaria localizada no Extremo Oriente, na península de Malaca e nas proximidades de Cipango, numa perspetiva ptolemaica, fazia todo o sentido pretender alcançá-la, navegando pelo Ocidente, confiante de que esse seria o caminho mais curto.

A relação entre a milha e a légua é também um outro aspeto interessante de analisar, conforme anteriormente assinalado. O fator de conversão de quatro milhas romanas (ou italianas) por légua é objeto de três citações naquele parecer do cosmógrafo Jaume Ferrer de Blanes, facto que torna também inequívoca a utilização dessa milha romana pelas autoridades da náutica em Castela. Deste modo, foram coletados todos os registros do diário da primeira viagem de Cristóvão Colon, ao Novo Mundo, que estabelecem essa relação constante entre a milha e a légua, conforme anotado no Quadro II.

Quadro II – Razão entre milha e légua na primeira viagem de Cristóvão Colon

Inequivocamente, verifica-se que os 51 registros selecionados, mostram que a razão entre a milha e a légua é igual a quatro, significando que cada légua é composta por quatro milhas. Parece não fazer muito sentido, estabelecer uma conversão entre a milha utilizada na época, com o atual sistema métrico, que foi definido em finais do século XVIII. Porém, insistindo nessa relação e conforme já foi avaliado anteriormente, tudo indica que a milha usada pelo almirante Cristóvão Colon era a romana ou italiana, aferida por um valor muito aproximado a 1480 m. Esta relação leva a concluir que a légua usada no diário da primeira viagem ao Novo Mundo, coincide com a antiga légua portuguesa, fixada em 5920 m, ou seja, quatro vezes a milha romana.

Fontoura da Costa referiu que o valor do grau meridiano foi objeto de muito debate no âmbito da Junta de Badajoz, em 1524, devido à posse das ilhas Molucas. Os espanhóis argumentavam um valor menor para o grau meridiano, em defesa da inclusão das ditas ilhas no seu hemisfério, ao passo que os portugueses alegavam um valor maior pelas mesmas razões. Apesar destas divergências, os navegadores Sebastião de Caboto e Amerigo Vespucci, ambos ao serviço do imperador Carlos V, acabaram por concordar em utilizar o mesmo valor de 17,5 léguas que os marinheiros portugueses e castelhanos usavam comummente (Costa, 1960). É conveniente assumir que em Castela, o valor do grau era bastante disperso, como vem referido pelo cosmógrafo Andrés Garcia de Céspedes (1560-1611): uns consideravam 15 léguas espanholas, outros, 16 léguas, sendo o mais comum 17,5 léguas; alguns adotavam 18 léguas e outros ainda, valores superiores (Céspedes, 1606).

Os estudos do almirante Teixeira da Mota mostram que o valor de 16 2/3 léguas por grau meridiano, já era adotado, pelo menos, desde os primeiros tempos da navegação de Bartolomeu Dias (Albuquerque, 1983). Ora, este valor ainda está aquém daquele que foi considerado por Duarte Pacheco Pereira, no “Esmeraldo de situ orbis”, onde refere no Livro I, capítulo 2º:

(…) atravessando além todo o oceano direitamente a Ocidente, ou a lueste segundo ordem de Marinharia, por trinta e seis graus de lonjura, que serão seiscentas e quarenta e oito léguas de caminho [648 léguas ÷ 36 graus = 18 léguas por grau] e lugares algum tanto mais longe, é achada esta terra navegada pelos navios de Vossa Alteza (…)

A disparidade de valores da medida do grau meridiano mostra que a única certeza existente na época, reporta-se à esfericidade da Terra, demonstrando que o conhecimento das suas dimensões era claramente impreciso. À parte dos problemas inerentes ao rigor da medição das longitudes, esta realidade vem reforçar a necessidade da metodologia das estimativas, quanto às distâncias percorridas nos oceanos.

Meridiano de Tordesilhas (roxo) demarcando os territórios a explorar por Portugal e Espanha e o seu antimeridiano (verde). Domínio Público

Fim da primeira parte.
Carlos Paiva Neves

[1] Miliare, Milliarum ou Mille Passum consiste em 1000 passos, de 5 pés cada e, era assim igual a 5000 pés. Tomando o pé romano de 11,6496 polegadas inglesas [5000 pés x 11,6496 polegadas/pé x 0,0254 m/polegada = 1479,49 m], a milha romana seria 1618 jardas inglesas [1618 jardas x 0,9144 m/jarda = 1479,49 m] ou 142 jardas menor que a milha inglesa. A designação mais comum para milha é mille passum ou simplesmente as iniciais MP. A milha romana contém 8 estádios gregos (Smith, 1865).

Imagem de destaque: O mapa-múndi da Urb. Gr. 82, feito de acordo com a 1ª projeção de Ptolomeu c. 1300. O Oceano Índico é representado como uma bacia fechada. A Aurea Chersonesus é a península no extremo leste, pouco antes do Grande Golfo. Domínio Público