O que é a poesia? Quantas vezes se definiu como sinónimo de magia, mistério, encantamento. Se Pitágoras estabeleceu o par de opostos limitado–ilimitado, e o próprio Anaximandro, outro dos chamados filósofos Pré-Socráticos, mostra que o apeiron (o indefinido, o ilimitado) é princípio (arkhé), causa, fim e indefinível essência, bem poderíamos afirmar que só o limitado e racional é o prosaico, e o seu oposto, o poético, seria o maravilhoso, o admirável, o milagre portanto, o mundo da imaginação que sustém e dá sentido ao que chamamos “realidade”, o prosaico e quotidiano.

A sabedoria tolteca de Castanheda chama tonal ao prosaico e nahual ao poético e mágico. A poesia arrancar-nos-ia de um mundo estático, sem sentido, onde tudo tem um valor relativo, mais ou menos cinzento; e levar-nos-ia, na magia dos seus versos onde tudo na natureza está interlaçado; a um reino em que a metáfora, a alegoria – e não só elas, senão todas as chamadas figuras da linguagem e do pensamento – são reais e têm vida própria. Um mundo em que cada acontecimento na natureza é símbolo de uma verdade inefável. A poesia é “criação” (poiesis), cristalização alquímica da verdade que imperiosamente quer expressar-se, e o poeta é o medium desta vontade que faz nascer, desde o mistério, estas flores da vida interna que são os poemas. Na poesia as associações de imagens, de símbolos e de palavras, invocam sempre na sua musicalidade, ritmo e significado como um orvalho do céu, uma alma escondida que chega assim até à nossa razão.

Jorge Luis Borges en 1976. Domínio Público

Jorge Luis Borges inclui um artigo na sua Historia de la Eternidad, dedicado às Kenningar ou “menções enigmáticas da poesia da Islândia. Estenderam-se até ao ano 100: tempo em que os thulir ou rapsodas repetitivos anónimos foram despojados pelos escaldadores, poetas da intenção pessoal.” Borges explica que se trata de perífrases metafóricas, associações de imagens, onde, por exemplo, a “tempestade das espadas” nomeia a batalha e o “prado da gaivota” o mar. A maior parte delas é tão artificial que perde, por vezes, o seu encanto, sobretudo ao traduzi-las para línguas como o espanhol ou o português. Mas é necessário reconhecer – e admirar – a beleza das imagens e profundidade de significados em algumas delas. Não são muito diferentes – citando Borges – as perífrases que abundam na “literatura arcaica” seja na Ilíada ou no Beowulf. Destacamos algumas destas “flores retóricas” que agitam vivamente a nossa imaginação:

A navio Viking é chamado “falcão da ribeira” ou “cavalo que corre nos arrecifes”, ou “o lobo das marés”;

Os escudos são “a lua dos piratas” e as suas lanças “serpentes”. A “Vontade dos ferros” é a “Vontade dos Deuses”.

Um povo tão guerreiro como o que concebeu estas metáforas considera a batalha como “a assembleia e a tempestade das espadas”, o “voo e a canção das lanças”, a “festa dos Vikings”, a “chuva dos escudos vermelhos”. E também como “o encontro das fontes” porque é na batalha, enfrentando a morte e saíndo do medo que nos aprisiona, que voltamos “às fontes”, à raiz de nós mesmos, ao mundo mágico e misterioso em que os deuses concebem o mundo, este que o filósofo Heráclito chamou de “a harmonia dos opostos”, a “tensão entre o arco e a corda”, o silêncio e tensão interior em que nasce tudo aquilo que é válido e criativo, poético, portanto. O prosaico é, pelo contrário, a repetição ineficaz, a falta de consciência, o medo e inércia, que se manifestam como “paz e comodidade a qualquer preço”.

A batalha é também chamada “festa das águias” pelo misterioso vínculo entre o valor e a vontade, que regem a batalha; e a águia, eterno símbolo do espírito universal. A águia simboliza o poder do espírito sobre a matéria, poder que a ordena e dignifica e que os romanos chamaram “imperium”, comando ou força que dá e mantem a unidade do conjunto e que podemos associá-lo tanto à vontade como à lei. Já em textos medievais, por exemplo, nas hagiografias de 800 d.C., a batalha é a “alegria dos guerreiros” e na Balada de Brunnanburth, de 900, é o “estalar das bandeiras” e o “encontro dos homens”.

Estes kenningar chamam à cabeça “castelo” do corpo, apesar de talvez a palavra mais exacta seja fortaleza nas alturas; tal como Platão a chama também “a Acrópole do corpo humano”, pois é aí onde se tomam as decisões e se dão as diretrizes de acção.

A espada é o “dragão”, o “peixe da batalha” o “remo do sangue”, a “vara da ira”, “o lobo das feridas” e o “gelo da luta”, associações sugestivas e todas elas muito vivazes. Kenningar de grande semelhança às de Beowulf, onde se chama à espada “a luz da batalha” e o “companheiro da luta”.

Réplica de uma espada viking. Domínio Público

O peito é a “casa do alento” e “o navio do coração”, o vento é o “irmão do fogo” e o “lobo do encordoamento”, imagem de grande beleza. Analisemos os significados simbólicos e ainda esotéricos de algumas delas:

A prata é chamada “o orvalho da balança”, e recordemos a relação que a filosofia hermética estabelece entre a prata, a lua, a balança e o discernimento. A Lua é chamada a filha de Saturno e rege o equilíbrio entre o material e o espiritual, assim como na astronomia ptolemaica a órbita lunar é o umbral, a balança que separava os orbes celestes dos quatro elementos (terra, ar, água e fogo), o chamado mundo sublunar onde os seres nascem, vivem, morrem e se corrompem. Para a alquimia a prata é formada nas entranhas da terra devido aos invisíveis eflúvios da Lua.

A língua é “a espada da boca”, pela sua capacidade de inspirar, guiar e também destruir, imagem poética usada também por Shakespeare e um facto comprovado da psicologia humana. Mas também é “o remo da boca” pois, do mesmo modo, que os remos permitem que o navio avance no meio das águas, a língua, metonímia da “voz humana” permite, de acordo com a sabedoria hermética egípcia, “criar” e “avançar” no invisível, e conduzir o navio da nossa existência, no meio das águas da vida.

O rei é “o senhor dos anéis” porque une lealdades simbolizadas na magia destes mesmo anéis: que por não terem princípio nem fim, representam a essência das coisas. O anel, antigamente, era símbolo de poder (de poder mais que status), o dom de governar, e o rei era, portanto, “o senhor dos anéis”. É com este sentido que se chama, também, “o distribuidor de riquezas” ou, mais genuinamente, kshatriya, o que “distribui espadas”.

Um dos mais belos kenningar, dos mais imbuídos na magia e no mistério, é o que chama ao Sol, “o ferreiro das canções”. Pois o sol é a “frágua” onde surge, impetuosamente, toda a “música da natureza”. E se entendemos – como um bom poeta faria – as “canções” como os “arquétipos”, que regem o Anima Mundi; é, segundo Platão, o Sol Inteligível, Alma do Sol ou Logos, quem lhes dá vida e os forja. A Alma do Sol é a Ideia do Bem, fonte e raiz de todas as demais Ideias divinas. Do mesmo modo, Apolo (o “sem polos”, a Unidade) é o que conduz as Musas (Apolo Musageta), e é, portanto, a chave da harmonia do nosso Cosmos. O Sol é também quem rege o movimento dos planetas, que no ritmo das suas órbitas “cantam” o que a filosofia pitagórica chamou “música das esferas”.

Também na Índia védica, o deus Vishvakarman é o “ferreiro ou carpinteiro divino” que forja as armas mágicas dos Deuses, o Logos que dá a sua Alma e Esplendor ao Sol e a toda a Natureza, o Eu Universal (Atman) com o qual se identifica o yogui nas suas místicas meditações, a Grande Vítima que dá vida e música à natureza com o seu sacrifício. E, portanto, “o ferreiro das canções”.

José Carlos Fernández
Escritor e diretor de Nova Acrópole Portugal

Imagem de destaque: “Os Noruegueses desembarcam na Islândia no ano de 872” pintura de Oscar Wergeland, Galeria Nacional da Noruega. Wikimedia Commons