“A inteligência das coisas espirituais e invisíveis é o verdadeiro pão da alma que dá nova força ao nosso coração e nos fortalece para toda a boa obra em todo o género de exercícios espirituais.” – Bernardo de Claraval, Sermão da Anunciação do Senhor, II, 4.
“Aplica o ouvido ao teu interior, medita com os olhos do coração e saberás, por experiência própria, o que lá se encontra. Ninguém sabe o que existe no homem, somente o espírito do homem que se encontra dentro dele.” – Bernardo de Claraval, Aos clérigos, da conversão, III, 4
Nascido em 1090, na Borgonha, Bernard de Fontaine foi sem dúvida uma das personalidades mais emblemáticas da Idade Média, ou se quisermos do fabuloso renascimento do século XII. A primeira cruzada alcança o seu objectivo em 1099, conquistando Jerusalém para a cristandade europeia. Não obstante o fracasso cristão das seguintes cruzadas, abria-se uma porta de comunicação entre a Europa ocidental que se reanimava e as culturas do Mediterrâneo oriental, nomeadamente o Império Bizantino e o Islão. Em concomitância, surge o esplendor do gótico com a teologia da luz do abade Suger, inspirado em Dioniso Aeropagita, o novo modelo de monges-guerreiros tipificado pela Ordem do Templo, aparecem as histórias do Graal e da Távola Redonda, surgem as misteriosas cartas do Preste João das Índias, e o espantoso crescimento da Ordem de Cister. O mundo já não era o mesmo, a Europa ressurgia claramente das cinzas da Alta Idade Média, as peregrinações a Jerusalém e a Santiago de Compostela eram também floramentos dessa vitalidade mística e geopolítica de afirmação da cristandade.
Nesta refundação da Europa, Bernard de Fontaine é a figura que salta à vista como homem-destino de uma necessidade histórica. Ainda muito jovem, descobre a sua vocação mística, vindo ao de cima o seu carisma que o leva a forma uma loja informal onde reúne um núcleo de almas selectas. Nestas reuniões secretas Bernard já emergia como o líder espiritual à maneira de um Sócrates cristão, que fazia despertar a consciência do Cristo interno nos seus amigos e familiares. Por uma das muitas sincronicidades do século XII, estava nascente a Cîteaux, a novel ordem monástica desejosa de recuperar a pureza original da regra de S. Bento. É assim que Bernard com os membros da sua loja decidem incorporar a nascente Ordem de Cister, eram cerca de três dezenas, mais do que os monges já existentes da Cîteaux!
Com certeza, radicava na Borgonha da época o que o filósofo Jorge Ángel Livraga sintetizou como «centro de inventos» de uma civilização ou de uma época, dali irradiava um fluxo espiritual para toda a Europa.
Quando Bernard entra na Cîteaux tem vinte e um anos, quatro anos depois, tal novo Cristo com doze apóstolos, irá fundar uma nova abadia de Cister num chamado vale do Absinto, que rebaptiza por vale Claro, vale da luz, Clairvaux. Ele e os seus doze monges recriam e redinamizam o modelo de Cister, estamos em 1115, de tal modo que a abadia de Clairvaux será a abadia-mãe de muitas outras e Bernardo de Claraval torna-se o líder incontestado da ordem monástica que passa a liderar em grande medida este renascimento do século XII. E não só líder incontestado da ordem, ele próprio líder político e espiritual da cristandade até ao momento do seu passamento em 1153. Trinta e oito anos depois de fundar Clairvaux, os cistercienses já povoavam a Europa com mais de trezentas abadias, mostrando uma vitalidade espiritual impressionante.
Do tal centro de inventos da Borgonha, emergem Raimundo e Henrique que trazem esse fluxo para a Península Ibérica, e também os principais cavaleiros que fundam em Jerusalém a primeira ordem monástico-militar da cristandade, a ordem dos Cavaleiros Templários. Tratou-se de uma revolução teológica na época, um monge poderia ser guerreiro e tornar-se tão santo como um místico só de clausura. Esta revolução fora possível graças ao apadrinhamento precisamente de Bernardo de Claraval que em 1129 está presente no célebre Concílio de Troyes, onde é redigida a regra primitiva da Ordem do Templo. Poucos anos depois, Bernardo Claraval escreve o Louvor à Nova Milícia que impulsionou o crescimento daquele novo modelo cristão de monges-guerreiros:
«Este é um género de milícia não conhecido nos séculos passados, no qual se dão ao mesmo tempo dois combates com um valor invencível: contra a carne e o sangue e contra os espíritos de malícia espalhados pelos ares. Em verdade, acho que não é maravilhoso nem raro resistir generosamente a um inimigo corporal somente com as forças do corpo. Tão-pouco é coisa muito extraordinária, se bem que seja louvável, fazer guerra aos vícios ou aos demónios com a virtude do espírito, pois se vê todo o mundo cheio de monges que estão continuamente neste exercício. Mas quem não se pasmará por uma coisa tão admirável e tão pouco usada como é ver a um e outro homem poderosamente armado dessas duas espadas, e nobremente revestido do caráter militar?
Certamente esse soldado é intrépido e está garantido por todos os lados. Seu espírito se acha armado do elmo da fé, da mesma forma que seu corpo da couraça de ferro. Estando fortalecido por essas duas espécies de armas, não teme nem aos homens nem os demónios. E digo mais: não teme a morte, posto que deseja morrer. Com efeito, o que pode fazer temer, seja a morte ou a vida, quem encontra sua vida em Jesus Cristo e sua recompensa na morte? É certo que ele combate com confiança e com ardor por Jesus Cristo, entretanto deseja mais morrer e estar com Jesus Cristo, porque este é seu fim supremo.
Eis, pois, valorosos cavaleiros, marchai com segurança, expulsai com uma coragem intrépida os inimigos da Cruz de Nosso Senhor, e estai certos de que nem a morte nem a vida poderão separar-vos da caridade de Deus, que está em Jesus Cristo. Pensai com frequência, durante o perigo, nestas palavras do Apóstolo: “Vivamos ou morramos, somos de Deus”.» (sublinhados nossos)
Bernardo de Claraval relançava, em termos teológicos na Europa cristã, o espírito tradicional das confrarias místico-guerreiras. Despertava raízes profundas da alma europeia e dos velhos sonhos dos guerreiros da luz.
Não sabemos quando, de certo antes dos vinte e cinco anos, a Luz banhou a alma de Bernardo, a Luz divina, a intuição da alma, um clarão do Ideal antes de tomar forma. E, assim, tornara-se um parteiro de almas, um líder místico-político. A estrutura do seu pensamento é claramente de índole neoplatónica porém nunca cita os autores clássicos mas sim os profetas e doutores da tradição judaico-cristã, fala por símbolos, metáforas, anagogias, como as dos seus célebres comentários ao Cântico dos Cânticos. Porém, apesar de toda a sua força espiritual e penetração nos mistérios de uma sabedoria viva revestida das formas judaico-cristãs, e apesar do crescimento da Ordem do Templo, da magnificência do gótico, a Europa cristã fracassaria na criação de uma verdadeira sociedade tradicional, que manifestasse uma unidade integradora. O século XIII ainda conheceria grandes esplendores, já o século XIV seria o espelho desse fracasso. Novas esperanças viriam no Renascimento dos séculos XV e XVI, que também seriam frustadas com os fanatismos exacerbados da Reforma e Contra-Reforma. O que terá faltado para que a Europa não tenha conseguido criar uma verdadeira civilização integradora durante a Baixa Idade Média? Porquê estes dois fracassos? São perguntas que tentaremos perscrutar em próximas abordagens.

Lactatio Bernardi, Lactação de São Bernardo, Josefa de Óbidos, 1660-70, Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra. Era Bernardo ainda um jovem monge na Cîteaux quando incumbido pelo abade de predicar face ao bispo de Chalon que os visitava. Temendo não se sair bem da missão começou a implorar rezando à Virgem até adormecer, que em sonhos lhe apareceu derramando o seu leite, a ciência divina, outorgando-lhe o dom da oratória sagrada. Assim se tornou irmão colaço de Cristo.
Mas regressemos ao Doutor Melífluo. Assim ficou conhecido, da sua palavra irradiava o mel da sabedoria, de uma sabedoria viva com que formava os seus discípulos, o «leite de origem divina» com que amamentava (termo que ele próprio utilizava) os noviços e entregava todo o seu coração à sua evolução. Ele próprio, segundo a lenda, recebera esse leite divino directamente da própria Virgem Maria, tornando-se assim colaço de Cristo. Cristo que também abraçara num mágico momento da sua vida. Nas cartas aos seus discípulos e amigos sente-se essa enorme capacidade de empatia e transmissão de uma sabedoria com poder transformador, tendo uma grande preocupação em não se confundir o simples conhecimento intelectual com as águas vivas da sabedoria que com origem na fonte de Cristo chegavam à Humanidade através do Aqueduto, simbolizado pela Virgem Maria, a «escada dos pecadores», como também lhe chamou. Leia-se uma parte do seu Sermão sobre o conhecimento e a ignorância (Sermão 36 do comentário ao Cântico dos Cânticos):
«O conhecimento das letras é bom para a instrução, mas o conhecimento da própria fraqueza é mais útil para a salvação. (…)
Há quem busque o saber por si mesmo, conhecer por conhecer: é uma indigna curiosidade. Há quem busque o saber só para poder exibir-se: é uma indigna vaidade. Estes não escapam à mordaz sátira que diz: “Teu saber nada é, se não há outro que saiba que sabes” (Persius, Satyra 1, 27). Há quem busque o saber para vendê-lo por dinheiro ou por honras: é um indigno tráfico. Mas há quem busque o saber para edificar, e isto é amor. E há quem busque o saber para se edificar, e isto é prudência.
(IV) De todos estes que buscam o conhecimento, só os dois últimos não incorrem em abuso do saber, já que o buscam para praticar o bem. Deles é que fala o salmo: “O saber é bom para quem o põe em prática” (Sl 111, 10). Os demais devem ouvir a Escritura: “Quem conhece o bem e não o pratica, comete pecado” (Tg 4, 17). É como se, numa comparação, disséssemos: tomar alimento e não digeri-lo faz mal. Um alimento indigesto, mal cozinhado, produz maus humores e, em vez de nutrir o corpo, corrompe-o. Assim também pode dar-se o caso de o estômago da alma, que é a memória, ingerir muitos conhecimentos que não foram cozinhados pelo fogo do amor e nem passaram para ser elaborados pelo aparelho digestivo da alma (no caso, os actos e costumes), a fim de que a alma se torne boa pelo bom conhecimento (o que pode ser atestado pela vida e pelos costumes). E acaso um tal saber indigesto não deve ser considerado pecado, tal como um alimento que se transforma em humores maus e nocivos? E os maus humores do corpo não equivalem aos maus costumes da alma? E não virá a sofrer de inchaços e cólicas de consciência quem conhece o bem e não o pratica?» (sublinhados nossos)
Bernardo é um bifronte, domina perfeitamente o pensamento simbólico, usa na suas cartas, sermões e livros as fontes judaico-cristãs mas a sua alma está embebida da sabedoria do mundo clássico, nota-se claramente a influência do neoplatonismo e do estoicismo, em parte talvez por via de Santo Agostinho, também por via do gnosticismo de Paulo, talvez o autor cristão mais citado nos seus escritos, mas há algo em si de muito misterioso. Refira-se também que é em Paulo que encontramos claramente o sentido do esoterismo cristão em que Pai simboliza o Deus-Interno do ser humano (atma na terminologia sânscrita) e Cristo a inteligência iluminada pela intuição (Manas-Budhi em sânscrito; nous em grego). Ou seja, o Deus único, é fundamentalmente a centelha divina que habita em cada ser humano. Na vertente cósmica, Cristo é o Logos Solar.

Amplexus Bernardi, Cristo abraçando São Bernardo, Francisco Ribalta, 1625-27, Museu do Prado. Bernardo de Brito relata este momento da mítica bernardina na sua Chronica de Cister: «(…) estando o Santo Abbade na igreja postrado diante de hum altar, em sua oração costumada, com aquelee fervor de espírito, em que andava sempre abrazado, lhe apareceo Christo nosso Redemprtor pregado no madeyro da Cruz, cujo tronco elle beyjava, derretido em rios de lágrimas, nascidos do que tinha presente: & o Salvador do mundo despregando os braços da Cruz o abraçou comsigo estreytamente, pagandolhe cum mimoso abraço o contentamento com que por seu respeyto engeytava os mimos, & descanços do mundo» (p. 93).
Segundo a sua filosofia espiritual, o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, com a queda de Adão e Eva, permaneceu com a imagem de Deus mas perdeu a semelhança, ficou dessemelhante. O pecado e a imersão na matéria retiraram ao ser humano a semelhança. Depois veio Cristo e Maria, o Adão e Eva renovados, modelos agora do regresso dos seres humanos à luz, à semelhança com Deus. Essa ascese começa com o «conhecimento de si e de Deus», conhecimento da alma nos seus três aspectos, concupiscente, irascível e racional (recorde-se o Fedro de Platão), conhecimento da imagem de Deus que pode encontrar no seu interior, conhecimento do Amado, e da escada do Amor em quatro degraus fundamentais, que o pode levar à fusão total com o divino. Neste caminho, manter a vida interior activa é fundamental. Leia-se um excerto da célebre carta que Bernardo envia ao seu discípulo, o Papa Eugénio III[1]:
«Começa a tua consideração por ti próprio, que não aconteça que te ocupes de outras coisas e te esqueças de ti próprio. De que serve a alguém conquistar o mundo se se perde a si próprio? (Mt, 16,26) Por muito sábio que sejas, não possuis toda a sabedoria se não és sábio contigo mesmo. E quanta sabedoria te faltará? No meu modo de ver, toda. Mesmo que conheças todos os mistérios (1Cor 13, 2), a largura da terra, a altura do céu, a profundidade do mar (Lob 38, 16), se não te conheces a ti mesmo, serás como aquele que edifica sem criar fundações, cria uma ruína e não um edifício. Tudo o que construas fora de ti será como pó amontoado que o vento leva. Não é sábio aquele que não o é consigo mesmo. O sábio será sábio por si próprio (Prov 9, 12), e beberá primeiro ele mesmo da sua própria fonte (Prov 5, 15). Começa, pois, por ti a tua consideração e acaba-a também em ti.» (Sobre a Consideração, II, 3, 6; sublinhados nossos)
Nesta metafísica socrática-neoplatónica, o ascetismo monástico com a disciplina e prática da humildade inerentes permite ao homem reencontrar «a bondade inata do seu ser» e começar a ascender pela escada dos quatro graus do amor:
«Em primeiro lugar, pois, o homem ama-se a si próprio, pois é carne e não pode gostar de nada fora de si. Mas quando vê que não pode subsistir por si próprio, começa a procurar Deus pela fé e amá-lo, como necessário. Ama, pois, neste segundo grau, Deus, mas para si, não por Ele próprio. Já depois que começou, devido à própria necessidade, a reverenciá-lo e a frequentá-lo, meditando, orando, obedecendo-lhe, paulatinamente em virtude de este género de familiaridade, Deus se dá a conhecer e consequentemente torna-se mais doce, e assim passa ao terceiro grau, para amar Deus, não já para si, mas por Ele próprio. Neste grau está-se muito tempo e a partir de então, juntando-se a Ele, será com Ele um espírito. Quando se entra nestas grandezas espirituais e divinas ter-se-á superado todas as doenças da carne.» (Do amor de Deus; sublinhado nosso)
Seguindo pelo aqueduto do amor, em algum momento, aparecerá o Senhor na sua vinda oculta:
Conhecemos três vindas do Senhor… há uma vinda intermédia… oculta, só os eleitos a vêem, em si próprios… mas, para que não penses… que… a vinda intermédia é uma invenção nossa, ouve o próprio Senhor: “Aquele que me ama guardará a minha palavra; o meu Pai o amará e viremos a fixar nele a nossa morada”… graças a esta vinda, nós que somos a imagem do homem terreno, seremos também imagem do homem celeste.» (Sermão 5 do Advento)
Esta «vinda oculta de Cristo», designação muito audaz de Bernardo simboliza, a nosso ver, a iniciação espiritual, algo como uma epopteia cristã, a visão com o olho espiritual do Cristo interno de Paulo, emergência do homem celeste, semelhante a Deus, Adão que se torna Cristo. Para o efeito, Maria, a nova Eva, tem um papel crucial.
«A mesma porta que deixou passar o veneno da serpente e infectou toda a humanidade, dá agora lugar ao antídoto da salvação» (Sermão da Anunciação do Senhor)
Na simbología de Bernardo, Maria é essa porta misteriosa, a mediatrix, a própria personificação da caridade, o amor que nos leva aos braços do Amado, a psique que abraça o Eros divino.
Nota-se que de algum modo, Bernardo foi também um percursor e inspirador do futuro movimento franciscano, o despojamento, a simplicidade e o amor à Natureza estão bem patentes nos seus textos e exemplo de vida. Claraval, sua Jerusalém celeste, era também o bosque que percorria meditando. Dizia Guilherme de Saint-Thierry, seu biógrafo e irmão cisterciense, «frequentemente manifestava aos seus amigos que tudo o que sabia, aprendera-o orando, e meditando na solidão dos bosques e dos campos sobre o que lia nas Sagradas Escrituras, e que não havia outros mestres que as azinheiras e as faias.»