Fotografia de Pierre Poulain / www.photos-art.org

Este texto de José Carlos Fernández foi inspirado na fotografia acima de Pierre Poulain, fazendo parte de um projeto intitulado FiloFoto.

Nesta foto genial de Pierre Poulain vemos jovens a testar a sua coragem saltando para o mar desde os muros da cidade de Akko em Israel. Para além dos contrastes entre uma fortaleza milenar e a juventude, está o surpreendente contraste entre a profundidade que deverá ter a água para realizar tal salto, e a que aparentemente tem ao vermos alguém de pé e corpo inteiro muito perto da costa. O título “Às vezes há que atrever-se” diz tudo, mas ainda assim gostaria de fazer algumas reflexões sobre o que sugere esta imagem e outras semelhantes na arte antiga. Depois de uma geração de culto à comodidade e ao feito de se ser espectador de quanto sucede no mundo, de uma geração que proclama a paz ao preço de vender a alma se assim for necessário (enquanto simultaneamente exerce uma violência e pressão contínuas sobre a natureza e meio social circundante), de uma geração que em quase todos os países do mundo abriram todas as fronteiras para que entrem os lobos devoradores da consciência humana e onde as soberanias nacionais são substituídas pelo poder sem escrúpulos nem obstáculos das grandes corporações económicas; chega então uma geração mais rude intelectualmente, mas mais pura, enfim, uma juventude que prefere beber das Águas da Vida que acalmam a sede da alma. Mas beber de verdade – não num onanismo temeroso que gerou todos os mercados atuais de espiritualidades – uma juventude que recupera de novo a necessidade de ação, de serviço à coletividade como voluntários (e quantos, no entanto, são miseravelmente explorados pela sua inocência, que é o mesmo que dizer, mão de obra grátis ao serviço de interesses mesquinhos que de públicos têm apenas o nome!) e de gosto pelo difícil numa filosofia de risco que nos pode salvar do pseudo-orientalismo estupidificante, isto que o grande Chogyang Trungpa chamou “materialismo espiritual”.

O risco é necessário à vida e o que dele se priva está inevitavelmente condenado à escravatura moral, a uma atitude vegetativa – pasto fácil de todos os predadores humanos (animais pelo facto de serem predadores). O pássaro deve saltar do ninho para saber, por instinto, que pode fazer uso das suas asas e voar. Da mesma forma a alma humana, se quer saborear a verdadeira liberdade, deve saltar dos ninhos da comodidade psicológica para descobrir o poder intrínseco da sua natureza, a sua capacidade de voo, ainda que sem perder a cabeça, pois como dizia o fundador da Nova Acrópole, o professor Jorge Angel Livraga, “a aventura pode ser louca mas o aventureiro deve ser sensato”. O problema neste renascimento da “filosofia do risco” é que este se assume sobretudo como uma sede de adrenalina, uma busca de sensações novas, uma aceleração psicológica sem eixo espiritual que nos aliena ainda mais que a procura do fácil e nos converte numa espécie de “rambos enlouquecidos”. O risco é necessário para aprendermos a vencer o medo, para ampliarmos os nossos limites, para nos desafiarmos a nós mesmos, não como uma droga para sentirmos que estamos vivos. Sem dúvida que devemos ser valentes para que quando seja necessário saltemos ao desconhecido. Contudo, há vezes em que a valentia é saber resistir com inteligência e tenacidade e a cobardia abandonar-se a si mesmo e saltar. Vemos que em muitos animais (que lição tão bem exemplificada no filme Bambi de Walt Disney) a sua estratégia de sobrevivência (extremamente difícil pela tensão crescente que gera) é permanecer imóvel (dando a sensação de ser invisível) até que passe o perigo — o que não resiste à pressão é caçado. Ou nas catástrofes onde se geram pânicos coletivos e só a mente fria que não perde o foco encontra a solução do que é melhor. E são estas ondas de terror coletivo, como nos incêndios, que fazem com que os infelizes saltem para uma morte segura antes do tempo. Nas escolas de mistérios, como vemos na Etrúria ou no poço dos crocodilos de Komombo buscava-se o valor e a serenidade do candidato, tentando que nunca se abandonassem ou “saltassem ao desconhecido”. Num poço Etrusco, que descia até ao abismo por uma escadaria, encontravam-se buracos nas paredes através dos quais se empurrava o aspirante à Iniciação ou se o intimidava para cair, e a vitória era, claro está, ir descendo passo a passo, degrau a degrau até à obscuridade, evitando tudo o que pudesse fazer cair. O fácil por vezes é saltar ou deixar-se cair, e o difícil, descer o abismo, onde tudo está escuro e a nossa fantasia projeta monstros reais ou imaginários. Como na famosa história do filósofo humorista Nasrudin do séc. X, em que na rua, debaixo da luz de um poste procurava umas chaves que havia perdido. E à medida que se iam aproximando transeuntes seus conhecidos, e que pensando ser impossível que as chaves estivessem ali, pois o local debaixo da luz era demasiado pequeno, lhe perguntam se tinha a certeza que as chaves perdidas estivessem ali, este responde que não, que sabe que estão em sua casa, mas que em sua casa está escuro e não quer procurá-las aí. Parece uma estupidez absurda, mas nós também buscamos a solução dos problemas fora, onde há luz do mundo, e não dentro, onde é obrigatório acender uma luz interior e onde sabemos que está escuro temos medo de olhar ou estar. Há então que chegar ao fundo de tudo, não empurrados numa queda livre e mortal, mas degrau a degrau, com vontade e perseverança, com inteligência. E ainda que nos trema o pulso do castiçal de luz que levamos e nos guia, há que aceitar os riscos calculados e permanecer abertos à mágica presença do desconhecido.

E assim é por vezes o momento do salto, o Grande Salto ao Abismo encenado nas tumbas Etruscas, em que alguém salta de cabeça ao mar e depois deve nadar para encontrar uma ilha no meio do mesmo. Esta cena simboliza a morte e a forma como ela nos incita a cortar laços — saltar quando é o momento e nadar nas correntes onduladas da luz astral para chegar de novo a um mundo semelhante ao que deixamos mas muito mais luminoso e leve. Também a Safo lhe é atribuído este grande salto por um ressentimento de amor, contudo na realidade simboliza a Grande Iniciação, a entrada no Grande Mistério no qual se entra como homem e se renasce como um deus. De outra forma, como chamaremos aquele que venceu para sempre a morte e os seus esquecimentos periódicos, aquele que pode dizer, como assinala São Paulo, “Oh morte! onde está agora o teu aguilhão?” aquele que já é um manancial de luz não obscurecida pelo próprio karma que arrastamos como sombra.