Trinta anos depois, li novamente, com grande satisfação, o livro de John Steinbeck “Os feitos do Rei Artur e seus nobres cavaleiros”, uma obra infelizmente inacabada e que é um tributo à chamada “Morte de Artur” de Thomas Mallory (1415-1471), livro de referência da literatura inglesa.

No capítulo de Lancelot, este primeiro cavaleiro da Távola Redonda enfrenta uma prova onde deve vencer a magia e as tentações de quatro rainhas. Como Lancelot é o símbolo da alma humana, sendo o cavaleiro mais sublime nesta obra artúrica, as quatro rainhas simbolizam, talvez, as quatro grandes ambições horizontais que arrastam a consciência, fragmentando-a.

São os quatro instintos da sua natureza, que a expandem, mas que podem submergi-la ainda mais na matéria, e apenas, se servirem a um Ideal superior, à Luz Espiritual, ampliam e elevam a alma. Do mesmo modo que uma árvore cresce em volume ao mesmo tempo que em altura, ou como faz a Pirâmide, precisamente, um símbolo da evolução humana.

Noutras simbologias, podem significar os Quatro Arquétipos de Platão, ou os Quatro Regentes do Karma, mesmo relacionados ao poema de Amado Nervo “Os Quatro Coronéis da Rainha”. Mas em todos estes exemplos, o Quadrado está no Céu, e a partir dele chamam, governam ou inspiram.

Mas neste fazem-no desde a terra, desde o horizontal, e se não há um vetor que verticalize para o alto, começa-se a partir desde o centro, desfaz-se tudo e tudo fica em nada, arruínam a obra.

Mas se houver, transformam a necessidade natural de expansão da alma num fator de crescimento, de vida organizada e ao serviço do todo. Caso contrário, são forças caóticas, solventes, que é como eles são apresentados na prova de Lancelot, uma vez que são quatro rainhas feiticeiras.

Podemos relacioná-lo, com os quatro instintos e de certa forma com os quatro elementos[1]:

– O instinto de sobrevivência, de querer viver, a necessidade de mudança. Água.

– O instinto sexual e de busca de prazer baseado na sensação. Fogo.

-O instinto de aconchego, a necessidade de pertença, de proteção, a necessidade de ser reconhecido, a necessidade de a alma encontrar eco nas concavidades do espaço em que está. Ar.

– O instinto de poder, de domínio, de comando. A Terra, a mais poderosa, portanto, neste elemento em que a alma tem carne e osso, ou vive neles, na vida manifestada neste cenário material.

Vejamos as imagens de John Steinbeck no seu livro “Os feitos do Rei Artur”.

1-“Primeiro veio a rainha das Ilhas, o cabelo tão dourado como a coroa, olhos azuis como a ardósia refletindo as mudanças do mar, inflamando bochechas de sangue quente, um manto azul marinho com listras de cinza marinho, um palafrém manchado como um penhasco salpicado com espuma.”É como o mar, o da vida.

2-“Seguia a rainha de Gales do Norte, cabelos vermelhos, olhos verdes, manto verde, o rosto de roxo apagado, o cabelo do seu cavalo ruano tão avermelhado como o seu cabelo.” Parece o fogo, devorador.

3-“Então veio a rainha do Oriente, com cabelos cor de cinza quente, como as cinzas de rosas, olhos castanhos, o manto de cor lavanda pálido, cavalgando um cavalo branco como o leite.” Parece o ar, o cavalo as nuvens, o manto o céu.

4-“Finalmente, veio Morgana le Fai, rainha da terra de Gore e irmã do rei Artur. Negros eram o cabelo, os olhos, o manto e o cavalo, polido e amordaçado como o coração de Satanás. Ele tinha bochechas brancas, com o branco inflamado das rosas brancas, e o seu manto noturno parecia mais negro com as suas bordas de arminho”. Parece a terra, com as suas negruras abismais e férteis.

Morgana le Fai, Anthony Frederick Sandys (1864). Domínio Público

A fortaleza onde Lancelot é testado recebe o nome de “Castelo da Donzela”, e é forçado a decidir e a julgar quem é a mais bonita das quatro. Embora ele recuse e diga que deve seu coração a Genebra, o “espírito branco”, a esposa do rei Artur, que é a “alma imortal em si”, sua vida e luz, no plano elevado. E além disso, não poderia decidir, porque elas são encantadoras, feiticeiras, e não mostram o quão terríveis e feias elas são, mas apenas a beleza que cada um fantasia como a mais perfeita e tentadora, e elas, simplesmente lhes dão forma.

Claro, todas as quatro representam o instinto nu e sem ascensão, a face sem vida desse instinto da alma.

1-O sexo brutal e enervante.

2-A sede de vida, sem termo, como aquele que bebe água do mar.

3- A proteção infantil, a necessidade de estar dentro de algo, mesmo que não nos permita expressar, crescer, mesmo que isso nos destrua ou nos imobilize.

4- O domínio que submete, subjuga, pisa na cabeça dos derrotados, humilha e em que, se for um jogo de predador e vítima, mais cedo ou mais tarde também seremos subjugados, pisados e humilhados.

A alma humana não pode manter seu fogo inflamado, não pode viver, na presença destes instintos se a eles não se lhes opõe a uma força ascendente, uma necessidade de céu. Embora sejam instintos raízes da sua natureza – do seu passado raiz, essencialmente – e não se possa avançar nem crescer sem eles, salvo exceções que formam o Caminho do Meio, vertical e puro, sem forças centrífugas, apenas verticais. E mesmo nestas, apresentam-se esses quatro como sonhos-memórias da Alma.

O que pode ser feito é transmutar, levantar, verticalizar. Os poderes da alma se materializam às custas dos seus instintos, tal como o fogo precisa de madeira para queimar, e o caminho de uma terra em que se apoia para avançar.

A descrição destes instintos, nesta obra, “Os feitos do rei Artur” é genial, não nos admira que o autor tenha recebido em 1960 o Nobel de Literatura, e antes disso o prémio Pulitzer pelo seu livro “As vinhas da ira”.

A primeira a apresentar as suas graças e sedução é a rainha de Gales do Norte, que enfeitiça com base no sexo:

“A voz da rainha ronronava suave e profunda, como se vibrasse por todo o corpo.” Acredito que sabes o que posso prometer-te: sensações que não conheces, a não ser vagamente, um êxtase que se elevará, crescerá, inchará até estourar, inesgotável e insaciável, pois não terá fim até que conheças a crucificação do amor e implores a cruz e ajudes a afundar os cravos enquanto cada nervo, cada um dos teus nodosos brancos nervos, participa do deboche e se lança na fúria de uma paixão exaltada e frenética.”

A segunda é agora a rainha das Ilhas, o mar com os seus reflexos em mudança, o desejo de vida, a necessidade de mudança, e onde tudo é valorizado de acordo com os contrastes e o que está associado:

A guirlanda, Dante Gabriel Rossetti (1871-74). Domínio Público

“Sir Lancelot, Melhor Cavaleiro do Mundo, creio que deves garantir que não há estado, clima, atividade, prazer, dor, alegria, tristeza, derrota ou vitória cujos excessos não nos deixam saciados e enfastiados. O dom que te ofereço é a mudança. Um dia tudo vai rir, como um ondulado lago azul que sorri ao sol enquanto as vagas colidem alegremente com os musgosos seixos; o próximo gerará ferozes tempestades, uma violência selvagem e devastadora, capaz de despedaçar-te, maravilhosa. Prometo que toda alegria será enfatizada por uma pequena dor, que ao repouso seguirá o frenesi, que o calor se alternará com o frio. (…) Te ofereço a vida. Um dia serás rei e no dia seguinte um servo oprimido pelo trabalho, a fim de avaliar a tua condição de monarca. Onde outros te oferecem apenas uma coisa, eu ofereço-te tudo em contrastes escalonados.”

A terceira, a rainha do Oriente, oferece-lhe o abrigo, o reconhecimento, ao ter sido a mãe que ele perdeu e que tudo valorizava nele sem o pressionar a ser mais, pois aceita-o sempre como era:

“Estou lhe oferecendo a paz que ele nunca descobriu em lugar nenhum, a segurança e o calor que ele ainda busca, o louvor às suas virtudes e uma gentil e compassiva consciência dos seus defeitos.”

De qualquer forma, a mais terrível das exposições é a do instinto de poder quando não é humano, esvaziado de toda a aspiração do céu. E ainda assim, como os outros, base ou degrau para ascender, quando humanizado, quando segue a lei e não o feroz egoísmo. Aqui está Morgana de Fei, o inverso sombrio do rei verdadeiro, que seria Artur, seu irmão.

“Minhas irmãs astutas ofereceram-te os pedaços brilhantes de uma roupa, os fragmentos quebrados de uma imagem sagrada. Eu te ofereço a totalidade do que esses restos fazem parte: eu te ofereço o poder. Se desejas mulherzinhas com traje elegante, o poder poderá consegui-las. Admiração? Há um mundo inteiro ansioso por te adular. Uma coroa? O poder e uma pequena adaga a colocarão na tua cabeça. Alterações? O poder te permitirá mudar cidades e esmagá-las quando te cansares delas. O poder atrai a lealdade sem exigi-la. A vontade de poder mantém o bebé mamando com nostalgia quando já está cheio, aconselha a criança a roubar o brinquedo de seu irmão, amadurece uma safra inteira de garotas concupiscentes. O que faz o cavaleiro enfrentar os tormentos que lhe darão o prémio ou a morte? O poder da fama. Porque é que há homens que empilham posses que não podem usar? Porque é que um conquistador se apropria de condados que ele nunca verá? O que instiga o eremita a chafurdar na escuridão imunda da sua cela, se não é pela promessa de poder, ou influência nem que seja, no céu? Por acaso esses santos loucos e humildes rejeitam o poder da intercessão? Que crime não se transforma em virtude nas mãos do poder? E a virtude não é em si uma forma de poder? A filantropia, as boas ações, a caridade não são apoios do poder futuro? É a única herança que não morre ou se torna tediosa, porque não há poder que a alcance. Um velho em quem secaram os sumos de todos os outros desejos é capaz de rastejar com seus joelhos trémulos até a sepultura sem que as suas mãos parem de coçar freneticamente em busca de poder. As minhas irmãs te ofereceram o queijo para os ratos dos pequenos desejos. Apelaram às sensações, à saciedade, à memória. Eu não te ofereço um dom, mas a habilidade, o direito e o dever de te apropriares de todos os dons, de tudo o que podes conceber, e quando te cansares deles poderás despedaçá-los como vasos e lançá-los na pilha de desperdícios. Além disso, ofereço-te poder sobre os homens e mulheres, sobre os seus corpos, as suas esperanças, os seus medos, as suas lealdades e seus pecados. (…) O poder é algo em si mesmo, um todo que se autocontém, bastando-se e sustentando-se, inacessível, exceto através do poder. A sensação de poder torna as outras graças e atributos mesquinhos. Esse é o presente que eu te ofereço.”

Um ensinamento platónico diz que a alma humana pode buscar a sua raiz celestial em si mesma, afastando-se de quaisquer outros chamamentos, de uma forma completamente subjetiva e separada do mundo, abrindo cada vez mais o seu olhar interior para a realidade pura; ou fazê-lo através do seu estudo e trabalho no mundo, da natureza, na sua relação com os outros, num esforço que coletiviza, une a sociedade e cria e fortalece as instituições que dão origem a um Estado. A primeira seria como a ascensão até o eixo interno de uma pirâmide, o abandono dos instintos raiz da alma indo em direção ao que o seu Pai Celestial pede, o caminho espiritual propriamente dito. A segunda significa ascender por uma das suas caras, em que não se eliminam, mas que se transmutam ou subtilizam a influência destes instintos da alma, se verticalizam.

Aqui, em frente a esse quadrado de instintos na Terra, haveria um correspondente quadrado luminoso no Céu. Na realidade o primeiro é a sua sombra e reflexo. O de acima é o “Quadrado na Luz” dos egípcios, o Amenti, “o Ideal que reivindica da sua sombra na Terra cada vez maior perfeição”. E desta forma, “o que está abaixo é como o que está acima”, de acordo com a conhecida Lei do Kybalion.

Os arquétipos que chamam ao céu a estes instintos da alma são:

– O Poder é chamado pelo Justo e o seu caminho de evolução é a reta Política. O comando estabelece uma ordem harmónica na qual as almas avançam e crescem. E o poder se torna num ato de sacrifício e oferenda a essa Justiça.

– A necessidade de proteção é chamada pela Mística, a Religião, a necessidade de ser abrigado torna-se na necessidade de amparar, de fazer o Bem, Arquétipo que chama a alma de acordo com seu instinto raiz.

-A sensualidade extrema, que é esvaziada no nada no instinto do sexo, pode ser subtilizada, refinada e responder às mais belas e perfeitas harmonias do céu. É o caminho da Arte que quer plasmar a Beleza, o arquétipo espiritual, resplandor da verdade, segundo disse Platão. Através dessa harpa de cordas de prata da sensibilidade da alma, desse instinto purificado pela graça e luz do céu, a sensualidade se converte em criatividade.

– A sede de viver converte-se em sede de saber, e nos infinitos reflexos do céu no mar da vida se busca a sua lei, a sua verdade oculta, o seu ensinamento. A ciência ou necessidade de saber, verticaliza esta necessidade de viver.

Calliope, musa da eloqüência, beleza e poesia heróica. Domínio público

Na realidade, estes dois quadrados, um celeste e outro terrestre, podemos muito bem dizer que formam um octógono estelar, a figura geométrica do amor e a riqueza, na Índia (é a estrela de Lakshmi) ou da perfeição e as virtudes na tradição islâmica. E podemos fazer girar um quadrado sobre o outro de modo que cada Arquétipo espiritual do quadrado celestial verticaliza cada um dos instintos da alma. Por exemplo, a sensibilidade pode se tornar uma perceção da verdade (ciência), a sede de viver em sede de dar e fazer o bem (mística), a sede de poder em sede de criar (arte), e a sede de proteção na sede de proteção e amparo das almas confiadas, em base à arquitetura, luz que a faz ver e calor que nutre, das formas políticas justas.

De qualquer forma, estes instintos raízes da alma existem e também os instintos da sua natureza celeste e de fogo. E no reino em que vivemos, que é o da harmonia dos opostos, o que exige a evolução é que os primeiros, raízes, sejam os veículos e a sujeição dos segundos, e espirituais, flores e frutos. Nas curvas espiraladas de ascensão à Montanha da Realização, em cada volta uma das direções do espaço nos cumprimenta e sorri, a face luminosa destas quatro rainhas da tradição artúrica.

Desfeito em pedaços de neblina e sonho o Castelo da Donzela, Lancelot, o primeiro cavaleiro, regressa a Camelot para encontrar-se com o seu rei e a sua dama, Genebra. Osíris, Ísis e Hórus outra vez juntos.

José Carlos Fernández

Escritor e diretor de Nova Acrópole Portugal

[1] Não é de forma alguma que esta relação seja definitiva, mas na descrição que faz John Steinbeck delas, parece que sim.