«Por cada enigma que solucionamos [em Göbekli Tepe] aparecem novos mistérios. (…) há vinte anos todos acreditavam que a civilização fora impulsionada por forças de tipo ecológico. Penso agora que estamos a tomar consciência de que a civilização é um produto da mente humana.»[1]
Quando chegamos ao campo arqueológico de Göbekli Tepe é o seu próprio espaço com a linguagem simbólica dos seus Ts que nos desafia a esquecer a nossa forma de pensar baseada na preponderância do externo, a fim de nos sintonizarmos com as suas perguntas que são, de algum modo, também respostas, ou indicações face ao grande mistério da Vida.
Do ponto de vista externo, deparamos com uma arte e arquitectura muito evoluídas realizada por caçadores-recolectores do epipaleolítico, estamos no X milénio a. C.[2], ou seja, há cerca de doze mil anos. No momento do nível III de Göbekli Tepe, o mais antigo até agora conhecido, e o mais impressionante pela sua qualidade técnica, não havia ainda nem agricultura, nem domesticação de animais. Estes caçadores-recolectores deixaram a sua marca de eternidade em assombrosos menires-T com relevos de grande qualidade escultórica nos chamados recintos B, C e D – que estão integrados num monte artificial com quinze metros de altura e trezentos de diâmetro. Os altos-relevos seja em 2D ou 3D são impressionantes, representam sobretudo serpentes, raposas e javalis, mas também aves, escorpiões, predadores, e outros animais. Os menires-T são eles próprios antropomórficos estilizados. Não há um antes e não há um depois, directo, a esta cultura dos Ts, só se atingiria este nível de arte e arquitectura uns seis mil anos depois, seguindo a matriz cronológica actual da arqueologia. Note-se que os Ts do local, às dezenas, são monólitos de calcário trabalhados com um peso de várias toneladas, sendo que os mais altos do recinto D pesam mais de quinze toneladas.
No cimo deste monte artificial, temos uma visão de 360º da região.
Todo um assombro. Factual. Verificado pela nossa própria observação demorada.
Vamos tentar uma aproximação pela via interna.
A teoria da complexidade postulada por Edgar Morin e aplicada no estudo da biologia por Stuart Kauffman fala-nos de redes, padrões, emergências, atractores, e da divindade como a «criatividade na Natureza»[3]. Níveis superiores de Vida, significam níveis superiores de complexidade. Existe vida nos átomos e moléculas, sabemos, estes átomos e moléculas formam células, a vida celular é muito mais complexa, é uma emergência surgida de uma rede de átomos e moléculas. A soma dos átomos e moléculas não explica a vida da célula, o todo emergente é maior do que a soma das partes. Esta nova emergência de vida que é a célula tem atractores que a organizam, que lhe dão uma matriz, padrões. Os processos de auto-organização, autopoiéticos, estão intimamente ligados aos atractores.
Assim, também acontece quando se formam novas redes de seres humanos que se sintonizam com novos atractores. Aí acontece a emergência de uma nova cultura, essa cultura depois materializa-se numa nova forma de vida, costumas, arte, relações humanas. E é no domínio do sagrado e do símbolo que surgem as raízes das novas emergências.
Jacques Cauvin pressentiu este processo, e Klaus Schmidt conviveu com ele durante os dezanove anos em que dirigiu as escavações em Göbekli Tepe e se foi interrogando e comunicando com os materiais surpreendentes das suas descobertas.
Diz-nos o eminente historiador das religiões, Mircea Eliade:
«O sagrado é um elemento na estrutura da consciência e não uma fase na história desta consciência. Por imitação dos modelos revelados por seres sobrenaturais, a vida humana adquire sentido. A imitação dos modelos trans-humanos constitui uma das características mais importantes da vida religiosa, uma característica estrutural que é indiferente à cultura e à época. De facto, não poderia ter sido de outra maneira. Nos níveis mais arcaicos da cultura, viver como ser humano é em si um acto religioso já que a alimentação, a vida sexual, o trabalho, têm um valor sacramental. Noutros termos, ser, ou melhor, chegar a ser um homem significa ser “religioso”.»
É claro que em Göbekli Tepe aconteceram importantes teofanias internas. Essa nova vivência do sagrado fomentou novas redes de seres humanos, um novo tipo de sociedade, que na consequência de novas emergências desta índole sentiu a necessidade de acelerar um processo de sedentarização.
A vivência do sagrado gera o pensamento simbólico no ser humano. A linguagem objectiva, monossémica, não tem meios para exteriorizar uma vivência que está para além do mundo objectivo, o sagrado está no «completamente outro», no «mundo numinoso», como assegurava Rudolf Otto. Deste modo, o sagrado expressa-se através do pensamento simbólico polissémico, do pensamento-por-imagens. Viver o sagrado, simbolizar, usar a função da imaginação e integrar-se num imaginário: eis o ser humano.
Pela via do sagrado, emergiu uma nova visão do mundo, estas teofanias tiveram a necessidade de se expressar em templos, emergindo uma nova religião, por consequência, surgiram as sociedades sedentárias. Não foram as mudanças climáticas que propulsionaram a revolução neolítica, a partir do externo, mas sim novas vivências do sagrado, a partir do interno. Gordon Childe estava equivocado.
Quando uma ideia ganha força na mente humana, é incrível o seu poder de realização. Aí está Göbekli Tepe para o demonstrar.
Eis uma das grandes respostas de Göbekli Tepe: o verdadeiro ser humano é invisível e trans-histórico.
Watkins tem estudado aturadamente as paisagens e processos de transição do Paleolítico ao Neolítico, nomeadamente Göbekli Tepe, e chegou à seguinte conclusão:
«(…) focando as paisagens em transição, as comunidades do período epipaleolítico e neolítico inicial do sudoeste da Ásia não apenas transformaram a paisagem de assentamento por meio de suas mudanças nas estratégias de subsistência e assentamento, mas também criaram paisagens simbólicas e culturalmente construídas que eram diferentes de tudo que os seus predecessores do Paleolítico tinham conhecido.»[4]
O ser humano não é só filho do ambiente, mas também cria ambiente. Essa criação é uma precipitação da mente.
Klaus Schimdt reitera esta visão de que a emergência de uma cultura representada simbolicamente permitiu, como consequência, a criação de redes humanas mais populosas, a criação da cidade.
«A evolução da humanidade moderna envolveu uma mudança fundamental: de pequenos grupos de caçadores-coletores para grandes comunidades permanentemente co-residentes.
Seguindo as ideias de Trevor Watkins, a quem estou grato pelas longas discussões e muita inspiração sobre o assunto, observamos que as sugestões de Jacques Cauvin estavam corretas: o factor que permitiu a formação de grandes comunidades permanentes foi a capacidade do uso da cultura simbólica, uma espécie de capacidade pré-literária para produzir e “ler” a cultura material simbólica, o que permitiu às comunidades formular as suas identidades e visão do cosmos partilhadas.»[5]
O TRIÂNGULO DE GÖBEKLI TEPE
Gil Haklay e Avi Gopher[6] detectaram com acutilância um triângulo reitor na planta dos três recintos mais importantes de Göbekli Tepe. O recintos B, C e D.
Estes são os três principais recintos sagrados de Göbekli Tepe descobertos, localizando-se no nível estratigráfico mais antigo identificado até ao momento (Nível III). Os recintos e Ts mais recentes são menos monumentais e têm menos qualidade escultórica.
Como em outros recintos desta cultura do Ts, o recinto é elíptico, foram colocados uma série de Ts na parede que o delimita, e no espaço central do recinto encontram-se dois menires-T, mais altos. No caso do maior recinto deste campo arqueológico, o D, estes dois menires-T são declaradamente antropomorfos estilizados, podemos ver os seus braços, dedos, cinto.
Como se vê na imagem, os Ts dos recintos B e C estão no mesmo alinhamento, na base do triângulo rectângulo, reitor deste conjunto triádico.
Estamos assim a falar de arquitectura, planeamento, narrativa simbólica, oficina escultórica de grande qualidade. Chão alisado, paredes com uma forma de argamassa, alinhamento deste conjunto virado a sul, região da máxima luz.
A raposa é o animal simbólico mais representado, talvez como mensageiros dos Deuses-Gémeos. Também o javali é representado amiúde, símbolo talvez ligado ao imaginário da caça e de teor xamânico, e a serpente com cabeça triangular. Num dos Ts aparece uma serpente a descer e outra a subir, parecendo simbolizar o encontro das energias da terra com as energias celestes.
No povoado neolítico da região, Nevali Çori, encontrou-se a mesma representação da serpente encimando um crânio.
Já referimos que outros animais também são representados, se bem que com menos frequência.
A qualidade dos relevos é impressionante.
Toda esta oficina sem recorrer aos metais.
Os dois Ts centrais do recinto D têm mais de cinco metros!
Não encontramos nesta fase mais antiga de Göbekli Tepe representações da Deusa-Mãe nem qualquer evidência de matriarcado. Há evidência de um culto aos crânios, e estes Ts suscitam um simbolismo de ligação da terra ao céu. Muito provavelmente, na mitologia de Göbekli Tepe já havia a ideia dos três mundos, o que poderia ter raiz xamânica. Os deuses-gémeos, ou heróis divinizados, evocam o céu, os animais, nomeadamente as serpentes, o inframundo (território dos antepassados) ou o mundo intermédio, e a terra propriamente dita, território dos humanos vivos.
Em todas as culturas antigas, havia a necessidade de certos ritos para que o cosmos vivente se mantivesse estável. Essa manutenção de um equilíbrio invisível e da boa ligação entre os três mundos, era a função dos sacerdotes. Assim, se vislumbra na sociedade de Göbekli Tepe uma ordem tripartida. Os sacerdotes-arquitectos, os artesãos-escultores e os caçadores-recolectores. Ao que parece sem divisão funcional de sexos.
Para a cosmovisão arcaica e cosmoteísta que chegou até ao mundo greco-latino, perpassando assim muitos milénios, a fonte da vida não estava no mundo material (assim também o intuiu Joseph Campbell), pelo que era necessário construir pontes invisíveis com os mundos subtis para que a terra recebesse essa Vida de origem celeste. Por isso, a necessidade da função sacerdotal, dos ritos, do culto aos deuses.
Neste processo de transição, verifica-se a aparição dos moedores para fazer farinha, pequenas estatuetas de deusas-mães (embora tudo leve a crer que formas de cerveja surgiram antes da farinha; cerveja que seria utilizada nos seus banquetes rituais).
Ao que parecem atestar as recentes descobertas, certa população começou a sedentarizar-se junto aos templos, aspecto de que esperamos posteriores desenvolvimentos.
Esta cultura de Göbekli Tepe, ou cultura dos Ts, dominava a região ao redor, já se tendo identificado cerca de quinze lugares arqueológicos.
Assimile-se quão importante e pioneira fora esta cultura de caçadores-recolectores. Cultura que abriu as portas para o processo de sedentarização.
Parecendo já haver uma mitologia bem consolidada, e uma geometria e geografia sagradas.
Outro fenómeno bem interessante que se detecta em Göbekli Tepe é que ao fim de um tempo, da ordem de séculos, encerravam os recintos sagrados, davam-lhes um fim. Um ciclo teve o seu início, a sua fundação, e também seria ritualizado o final desse ciclo. Este rito do «fim» parece ter sido comum no mundo antigo. Por exemplo, em Badajoz, encontraram-se os vestígios de uma cerimónia importante prévia à destruição e abandono de um templo tartéssico[7].
KARAHAN TEPE
Outra dessas cidades sagradas da Cultura dos Ts foi o lugar hoje denominado Karahan Tepe.
Aí encontramos um grande recinto com os Ts centrais assim como uma «piscina» completamente escavada numa única rocha. Tem onze Ts no interior da «piscina», uma cabeça central, e o relevo de uma serpente gigante. Também encontramos Ts em recintos praticamente rectangulares, já não seguindo o cânone da parede ovoidal.
Sendo um campo arqueológico também impressionante, pensa-se que ainda mais antigo que Göbekli Tepe, não tendo, contudo, a excelência escultórica deste último assentamento.
A estatuária encontrada em Karahan Tepe parece evocar um imaginário xamânico. Por outro lado, podemos apreciar uns pratos no Museu de Sanliurfa com um polimento perfeito. Urge realizar arqueologia experimental a fim de verificarmos como foi possível tal prodígio.
NEVALI ÇORI
Nevali Çori é um povoado neolítico um pouco mais tardio, que tem a característica de manter o mesmo imaginário da Cultura dos Ts de Göbekli Tepe.
Fora submerso, tendo o seu recinto sagrado, com os Ts centrais, sido transposto para o maravilhoso Museu de Sanliurfa.
Neste Museu verificamos a complexidade desta Cultura dos Ts e a sua refinada escola de artesãos. Por exemplo, enquadrados da fase pré-cerâmica, os recipientes necessários para os rituais e outras funções eram talhadas em pedra com uma perfeição que impressiona.
Dois mil anos após o apogeu de Göbekli Tepe, em 7500 a. C., na cidade de Çatalhöyük, onde viveriam uns cinco mil habitantes, mantêm-se a simbologia animal, aparece de forma reiterada a representação da deusa-mãe, mas já não a representação dos Ts, nem uma arquitectura e escultura da perfeição das de Göbekli Tepe, realizada dois mil anos antes. Note-se que sendo um povoado já claramente Neolítico, a dieta da população ainda era maioritariamente proveniente da caça. A sedentarização foi o reflexo de uma necessidade interior de «centro», e não consequência de mudanças externas, estas foram acontecendo com o tempo, como efeito.
Refira-se também que as últimas investigações e interpretações por parte dos arqueólogos, em Çatalhöyük, não consideram verosímil a existência do matriarcado nesta cidade neolítica. As estatuetas à deusa-mãe representam apenas um quinto do material simbólico recolhido, mantêm-se muitas peças de arte simbólica com representações de animais, claramente a maioria. E as evidências apontam para uma relação igualitária entre homens e mulheres.
A conclusão de Fernand Schwarz sobre Göbekli Tepe permanece de todo bem factual:
«O lugar de Göbekli Tepe atesta claramente que a humanidade dispunha, numa época pré-agrícola, de meios suficientes para erigir ou estabelecer um local de culto, impondo ideias que contradizem a hipótese de que a agricultura ser anterior a toda a construção importante.
O arqueólogo da Universidade de Standford, Iann Hodder recorda: “isso demonstra que as trocas socioculturais surgem em primeiro lugar e a agricultura, mais tarde.”»[8]
Passamos agora a apresentar algumas fotos da nossa reportagem em Göbekli Tepe, Karahan Tepe e Museu Arqueológico de Sanliurfa. Algumas fotos são de nossos companheiros de expedição, a quem agradecemos desde já.
Paulo Alexandre Loução
[1] Citado por Charles Mann: https://www.nationalgeographic.com/magazine/article/gobeki-tepe (sublinhado e tradução nossos)
[2] Sobre a datação de Göbekli Tepe, verifique-se no site oficial:
How old is it? Dating Göbekli Tepe.
[3] Cf Stuart Kauffman, Reinventing the Sacred: A New View of Science, Reason, and Religion, Basic Books, 2010.
[4] Trevor Watkins, «Changing People, Changing Environments: How Hunter-Gatherers Became Communities that Changed the World», in Landscapes in transition, edição de Bill Finlayson and Graeme Warren, Oxbow Books, 2010, p. 120. Sublinhado nosso.
[5] Klaus Schmidt, «Göbekli Tepe – the Stone Age Sanctuaries. New results of ongoing excavations with a special focus on sculptures and high reliefs». In Documenta Praehistorica XXXVII (2010). Sublinhado nosso.
[6] Gil Haklay e Avi Gopher, «Geometry and Architectural Planning at Göbekli Tepe, Turkey», in Cambridge Archaeological Journal 30:2, 343–357.
[7] Cf. https://historia.nationalgeographic.com.es/a/tartessos-y-sus-sacrificios-rituales-hallados-restos-animales-templo-badajoz_11668
[8] Fernand Scwarz, «Göbekli Tepe – la cuna de los dioses», 2016: