Virgínia Woolf, uma das “mães” do romance modernista atual, é, como todos os seres humanos que lutam para sair da prisão de carne e sangue em que vive, um paradoxo vivo. E refiro-me aqui aos escritos, que, como ela própria dizia, deveriam ser “granito e arco-íris”, fortes e fielmente fixados nos factos (granito), e deles arrebatados pelo voo das emoções, com todas as suas coloridas cintilações, com as suas evocações que se abrem cada vez mais ao infinito.
Ela própria se sente em dívida com Platão e Shakespeare, embora também suspire com o ardente impulso de um Byron, de quem sentimos nesta obra a respiração do mar:

Over the glad waters of the dark blue see
Our thoughts as bondless and our souls as free
Far as the breeze can bear the belows foam¹

Neste trabalho, As Ondas, de Virgínia Woolf, é surpreendente o monólogo silencioso de seis personagens que vai reconstruindo uma história das suas vidas e dos momentos que partilharam juntos. As suas existências, as suas memórias, a sua própria intimidade, é acompanhada, abalada por uma perpétua ondulação, das ondas do mar, ondulação da escuridão e a luz, ondulação da seiva da natureza, pela pulsação da própria matéria, que dá o título ao livro. Todos eles giram, no entanto, em torno de um centro, um polo que dá sentido ao seu ser, Percival, de quem se fala continuamente, mas que não diz nada no livro. São como uma flor de seis pétalas que cresce, abre e é desfolhada pelo tempo, até que se entrega a podridão da terra fértil em que nasceu.

As suas personagens são projetados com rápidos epítetos, ou com imagens e metáforas, que vagamente os definem com detalhe. Num fluxo de consciência que parece quebrar as barras da jaula do espaço e do tempo em que vive, por vezes é difícil saber onde está o olho vigilante do autor, o que faz a sua leitura nada fácil, por vezes até psicadélica, e isto é a causa de esta escritora da primeira metade do século XX ser uma das criadoras do romance psicológico e moderno. Percival é claramente solar, e ilumina-os a todos, em silêncio; Bernardo é mercurial, precisa da relação humana e das palavras para que a sua própria vida não seja dissolvida em nada; Luís é marcial e saturnino, severo em tudo, vigoroso, mas querendo forçar quase tiranicamente as vontades; Nelly é preciso e, ao mesmo tempo, um amante da beleza; Rhode é fantástica, lunar, medrosa, incapaz de enfrentar os ventos de aço da vida, extremamente sensível; Jenny uma mulher flamejante em presença e beleza e na sua sede de prazeres e do mundo; Susana é filha da terra, da natureza, dos seus ciclos e das suas certezas, da segurança, por exemplo, os bens, que vão crescendo muito lentamente, poderosos e sem a possibilidade de a sorte os subjugar.

É como se juntos tivessem aparecido no palco do mundo, cada um incompleto e a precisar dos outros, rejeitando-se na sua personalidade por serem diferentes, mas realizando misteriosamente uma unidade, vencida a primeira ilusão superficial de se afastar. E, no entanto, cada um deve continuar a sua vida, e é da sua consciência e da sua história que a interpretam, que estão enraizadas nela, e que são batidas pelas ondas do tempo. E é evidente que juntos formam um anel de almas, ou um navio celestial com o qual as escalam e montam nas suas crinas de branca espuma. 

Avançam como almas juntas no mistério, e embora a morte tenha arrebatado a um ou vários, continuam assim no essencial, pois as almas não são corpos e permanecem, mesmo na sua ignorância, unidas. Assemelham-se à “irmandade do anel” de Tolkien, ou às aventuras do Nahual de Castaneda, com a diferença, decerto muito importante, de que não há uma missão que os convoque e redima, e nem por isso deixam de ser parte de um todo sem o qual a vida é totalmente sem sentido. Tudo o que falta a cada um para sentir e fazer plenamente vive nos outros, com o espírito da colmeia que desfoca as identidades, mas as realiza e conforma. A turbulência do mundo agita-os e ameaça engoli-los, e esse mar bate a costa como a pata de uma grande besta, mas SÃO juntos e a Estrela dos Mistérios sorri-lhes desde o seu invisível infinito, consoante os momentos de auge e queda do sol marcam, em suave progressão sempre à frente, os momentos das suas experiências, como um relógio gigantesco.

Virginia Wolf. Flickr

A mesma autora dizia que esta é a obra em que melhor se expressa, em que desenvolve a sua filosofia, a sua intimidade, em que nos revela sem véus quase os mistérios da sua alma. E, sendo Bernardo o escritor entre eles, e o seu monólogo solitário o que culmina a obra, é fácil pensar que se identificava com tudo o que ele diz, sobretudo em relação à linguagem, ao seu poder e também às suas limitações. Talvez a aventura espiritual do seu livro seja um eco das experiências do famoso círculo de Bloomsbury.

Cada uma destas personagens percorre um caminho e encoraja a sua mística, enriquecendo assim os outros. Cada um deles esforça a sua alma em direcção a um mistério, a um arquétipo no sentido platónico, mas tal como os egípcios e hindus que chamavam a alma humana de “o homem-planta” (Saptaparna) ou “o trigo sete cúbitos de altura”, as raízes dela na matéria, no mundo dos sentidos, e na prisão dos seus hábitos, impedem-no de alcançá-lo. Mas sim ao coração que em todos bate como o mesmo quando estão juntos, e os dissolve na mesma noite de amor, de vez em quando.

Vejamos, com as mesmas palavras de Virgínia Woolf nesta obra, de que maravilhosa maneira ela expressa estas realidades, tão subtis que é difícil sequer pensar nelas e menos ainda falar, pois são realmente “mais para o coração do que para a língua”, como tudo o que é místico, e segundo a mesma raiz etimológica desta palavra, deve permanecer no silêncio.

Vejamos, como cada uma delas se sente abalada por estas ondas, que estão sempre presentes nas mil metáforas deste livro, e que são, e como são estas ondas, e como juntos entram no mistério, desafiando o tempo.

Por exemplo, Susana, que tanto se sente unida à natureza, como o signo de Touro que bem representa:

“O dia nasceu recentemente. Nas planícies há nevoeiro. O dia está duro e rígido como roupa branca engomada. Mas suavizará-se-á, adquirirá calor. Nesta hora tão cedo, imagino que sou o campo, que sou o celeiro, que sou as árvores. Meus são os bandos de pássaros, e esta livre jovem que salta no último momento, quando quase é irremediável que a pise. Meu é o falcão que abre preguiçosamente as suas vastas asas. E a vaca que rechina ao avançar um casco, ruminando. E a louca andorinha movendo-se em arcos. E o pálido vermelho do céu, e o verde quando o vermelho se vai. E o silêncio e o sino. E a chamada do homem que vai em busca dos cavalos de tiro no campo. Tudo é meu. Nada pode dividir-me ou manter-me dividida.”

“Às vezes penso (ainda não cheguei aos vinte anos) que não sou uma mulher, mas a luz que ilumina esta vedação, esta terra. Eu sou as estações, penso às vezes, janeiro, maio, novembro, a lama, o nevoeiro, o amanhecer. Não posso tolerar que me metam de um lado para o outro, nem posso flutuar docemente, ou misturar-me com os meus semelhantes. No entanto, agora, apoiando-me nesta cerca até que o ferro deixe vestígios no meu braço, sinto o peso que se formou nas minhas costas.”

Ou Jinny, encarnação da beleza que seduz e reina sobre o mundo, e que com o seu gesto quer desafiar ainda os anos e a velhice.

“Mas vós nunca me odiareis”, disse Jinny. “Sempre que me virdes, mesmo que seja do outro lado de uma sala cheia de cadeiras douradas e embaixadores, a cruzareis em busca da minha simpatia. No momento em que entrei, tudo ficou parado, formando um quadro. Os empregados pararam, e os comensais levantaram os garfos, deixando-os ainda no ar. Tinha eu o ar de estar preparada para o que ia acontecer. E quando me sentei, levastes as mãos à gravata e escondeste-las debaixo da mesa. Mas eu não escondo nada. Estou preparada. Sempre que a porta se abre, eu grito: Mais! A minha imaginação são corpos. O meu corpo precede-me, como uma lanterna ao longo de um beco escuro, e da escuridão extrai uma coisa após a outra, rodeada por um aro de luz. Deslumbro-vos. Obrigo-vos a acreditar que é isto.”

Rhoda é o devaneio que nega a vida e encontra outra sem limites ou definições, e que para algumas almas é o seu alimento, a sua verdadeira natureza, e com os seus dedos de nevoeiro e lua abrem para outros portas e dimensões que nunca poderiam ter alcançado. Esta é, então, a sua mística. Mas tudo neste mundo a fere, desfaz a sua unidade de sonho, porque ela, querendo ou não, é a grande vítima.

“Passarei dissimuladamente por detrás deles”, disse Rhoda, “como se eu tivesse visto um conhecido além. Mas não conheço ninguém. Retorcerei o friso da cortina e contemplarei a lua. Explosões de esquecimento acalmarão a minha agitação. Quando se abre a porta, salta o tigre. Abre-se a porta. Entra em torrentes o terror. Terrores e mais terrores me perseguem. Visitarei secretamente os tesouros que tenho guardados. No outro lado do mundo há lagos que reflectem colunas de mármore. A andorinha molha a ponta da asa nos negros lagos. Mas eis que se abre a porta e entra gente. Vêm ter comigo. Lançando para o ar vagos sorrisos para disfarçar a sua crueldade e indiferença, apoderam-se de mim. A andorinha molha as asas. A lua desliza sozinha sobre mares azuis. Tenho de segurar a mão deste homem. Devo responder-lhe. Mas que resposta lhe darei? Retiro-me violentamente, para continuar a arder neste desajeitado corpo que tão mal me fica, e receber os raios da indiferença e o desprezo deste homem, eu que anseio as colunas de mármore e lagos do outro lado do mundo, onde a andorinha molha a ponta da asa.

“A noite girou um pouco mais sobre as chaminés. Por cima do ombro deste homem, pela janela, vejo um gato tranquilo que não se afoga na luz, que não está preso em sedas, com liberdade para parar, despertar e seguir em frente novamente. Odeio todos os detalhes da vida individual. Mas estou aqui, cravada, para escutar atentamente. Uma imensa pressão me esmaga. Não posso mover-me nem deslocar do seu lugar o peso dos séculos. Flechas, um milhão de flechas, me atravessam. A troça e o ridículo despedaçam-me. Eu, capaz de receber as tempestades no meu peito, capaz de deixar alegremente que o granizo me cubra, fico imobilizada aqui. Fico em evidência. O tigre salta. Com os seus chicotes, as línguas dirigem-se a mim. Móveis, incessantemente, as línguas vibram sobre mim. Tenho que me defender com mentiras. Que amuleto existe contra semelhante mal? Que rosto posso invocar para abrandar este ardor? Penso em nomes inscritos nas tampas das grandes caixas, penso em mães sob cujos joelhos largos descem as saias, penso em bosques para onde as encostas das colinas descem com mil corcundas. Escondei-me, grito, protegei-me, porque sou a mais jovem, a mais nua de todas vós. Jinny deixa-se levar como uma gaivota pela onda, habilmente serve-se da sua aparência aqui e ali, dizendo isto e dizendo aquilo, sem mentir. Eu minto. E delineio. 

“Sozinha, eu agito a minha tigela. Sou a ama e senhora da minha frota de embarcações. Mas aqui, enquanto torço entre os meus dedos o friso da cortina bordada da casa daquela mulher que me convidou, estou dividida em pedaços. Deixei de ser uma única entidade. Então, qual é o conhecimento que possui Jinny enquanto dança, a segurança que tem Susan enquanto inclinada, silenciosa, sob a luz da lâmpada, passa o branco fio de algodão pelo buraco da agulha? Dizem sim. Dizem não. Vibram altos murros na mesa. Mas duvido. Tremo. Vejo como o espinheiro abana a sombra no deserto.

Varanda ao luar. Domínio Público

Agora vou começar a andar, como se tivesse proposto algo, e assim atravessarei a sala até chegar à varanda. Vejo o céu, com as suaves penas do repentino brilho da lua. Também vejo os corrimãos da praça, e duas pessoas sem rosto, cortando-se como estátuas contra o céu. Acontece que há um mundo imune à mudança. Depois de atravessar esta sala cheia de línguas que me picam como facas, obrigando-me a gaguejar, a mentir, parece-me que os rostos ficaram sem feições, desprovidos de beleza. O casal apaixonado está agachado debaixo do plátano. O polícia fica de guarda na esquina. Passa um homem. Acontece que há um mundo imune à mudança. Mas falta-me equilíbrio suficiente, ali, na ponta dos pés nos limites do fogo, ainda chamuscada pelo ardente alento, com medo que se abra a porta, que o tigre salte, mesmo para formar uma frase. Permanentemente contradiz o que digo. Sempre que se abre a porta, interrompem-me. Ainda não fiz vinte e um. Nasci para ser despedaçada. Nasci para ser ridicularizada em toda a minha vida. Nasci para subir e descer, entre estes homens e mulheres com rostos convulsivos e línguas mentirosas, como uma rolha num mar turbulento. Como a fita de uma alga, sou projectada para longe sempre que a porta se abre. Sou a espuma que enche de brancura as mais distantes cavidades da rocha. E eu também sou uma menina, aqui nesta sala.”

Bernard é o contador de histórias, aquele que joga com as palavras, mas não é capaz de dar solidez ao que com elas cria, porque não passam de palavras, não gestos rituais nem pedra sobre a qual construir, e com elas tenta assim aprisionar o sentido da vida.

“Nasci com o dom de formar palavras, de lançar bolhas sobre isto e aquilo. E enquanto ilumino espontaneamente estas observações, construo-me, diferencio-me e, quando ouço aquela voz que me diz, enquanto passo: “Olha! Escreve isto!’, imagino que nasci destinado a encontrar em qualquer noite de inverno o significado de todas as minhas observações, um fio que vai de um para o outro, um resumo que completa e contorna tudo. Mas os solilóquios em becos laterais logo definham. Necessito de público. Este é o meu principal defeito. Isto é o que sempre ajusta o fio da última declaração e impede que seja devidamente formada. Sou incapaz de me sentar numa mesa em qualquer sórdida casa de comida e pedir a mesma bebida até ficar transbordando com um único fluido: esta vida. Construo a minha frase e com ela fujo para um apartamento mobilado, onde fica iluminada pela luz de dezenas de velas. Preciso que me vejam, para poder desenhar estas pautas e panfletos. Para ser eu (aviso), preciso da iluminação dos olhares dos outros, e consequentemente nunca poderei ter a certeza absoluta de quem sou. Os verdadeiros, como Louis e como Rhoda, existem ao mais alto nível quando estão sozinhos. Incomoda-lhes a iluminação, a multiplicidade. Assim que os seus retratos são pintados, atiram-nos de cabeça para baixo para o chão. As palavras de Louis estão cobertas com uma espessa camada de gelo. As suas palavras nascem apertadas, condensadas, duráveis.

“Contrariamente, depois desta sonolência, desejo brilhar em infinitas facetas à luz dos rostos dos meus amigos. Atravessei o território sem sol da não-identidade. Terra estranha, a propósito. E ouvi, no meu momento de apaziguamento, no meu momento de entorpecedora satisfação, o suspiro que vem e vai das ondas para além deste círculo de esplêndida luz, a partir desta batida de insensata fúria. Tive um momento de imensa paz. Talvez isto seja felicidade. Agora regredi impulsionado por ardentes sensações, pela curiosidade, pela ganância (tenho fome) e pelo irresistível desejo de ser eu. Penso nos seres a quem poderia dizer coisas, em Louis, Neville, Susan, Jinny e Rhoda. Com eles tenho múltiplas facetas. Tiraram-me da escuridão. Graças a Deus, esta noite reunir-nos-emos.”

E, na verdade, é ele próprio quem melhor os define, por exemplo:

“Vejo o Louis esculpido em pedra como uma estátua. Neville, afiado como uma tesoura, exactamente. Susan, com olhos como esferas de cristal. Jinny, dançando como uma chama, febril, ardente, na terra seca. E Rhoda, a ninfa da fonte, sempre molhada.

Neville é o amante da ordem e da beleza, o perpétuo amante da vida, do espírito grego, da inspiração, mas constrói um porto seguro porque se sente vulnerável.

“Sou uma só pessoa: eu. Não suplanto Catulo, a quem adoro. Sou um estudioso altamente disciplinado, com um diccionário de um lado, e do outro um caderno no qual anoto curiosos usos do particípio passado. Mas não se pode viver sempre dedicado a dissecar com uma faca para melhor entender estas frases antigas. Viverei sempre assim, a correr as vermelhas cortinas de sarja e a ver o livro, como um bloco de mármore, pálido à luz da lâmpada? Seria maravilhoso dedicar a minha vida à perfeição, seguir sempre a curva da frase, levar-me onde quer que me levasse, a desertos e areia movediça, ignorando equívocos e tentações.”

E cerca de 10 anos depois, já enredado na matéria e na procura do que deseja:

“Minha vida tem uma rapidez que não tem a tua. Sou como um cão atrás da peça. Concha do amanhecer ao anoitecer. Nada, a busca da perfeição nas areias, a fama, o dinheiro, tem significado para mim. Terei riquezas. Terei fama. Mas nunca terei o que quero, porque me falta graça corporal e o valor dela derivado. A rapidez da minha mente é demasiado forte para o meu corpo. As minhas forças vacilam antes de atingir o objectivo e caio no chão, onde fico como uma pilha molhada e talvez repugnante. Nas crises da vida, provoco a piedade e não amor. Consequentemente, sofro horrivelmente. Não sofro para me converter num catedrático, como faz Louis. O meu sentido da realidade e dos factos é muito apertado para me permitir estes jogos de malabarismo, estas ficções. Vejo tudo, excepto uma coisa, com total clareza. Esta é a minha salvação. Isto é o que dá aos meus sofrimentos estímulo constante e vida. Isto é o que me permite expressar-me com autoridade, mesmo quando calo. E, como em certo aspecto vivo enganado, porque a pessoa muda constantemente, embora não o deseje, e em manhã alguma sei com quem estarei à noite, nunca estou parado. Depois dos meus mais severos desastres, levanto-me, viro-me e mudo. As pedras saltam da casca do meu corpo musculoso e tenso. Neste esforço, envelhecerei.”

Luís, com dificuldade em fazer parte de um grupo sem subjugá-lo, é forte, determinado, ambicioso, disposto aos mais severos esforços para construir a sua vida, mas sente que essa mesma ambição o seca, o transforma numa estátua de pedra.

“As minhas raízes descem atravessando filões de chumbo e de prata, através de húmidos e pantanosos lugares que exalam odores, até chegar a um núcleo, formado por raízes de carvalho unidas, no centro. Selado e cego, tapados com terra os ouvidos, ouvi, apesar de tudo, rumores de guerras. E o rouxinol. Tenho percebido muitas tropas à pressa, indo daqui para ali, em busca de civilização, como voos de aves migratórias em busca do verão. Já vi mulheres com cântaros vermelhos dirigindo-se para as margens do Nilo. Acordei num jardim, com um golpe no pescoço, um ardente beijo, o beijo de Jinny. E recordo-me de tudo, como se recordam os gritos confusos, a queda de colunas e travessas vermelhas e negras num incêndio noturno. Durmo e vejo sem cessar. Agora durmo, agora vejo. Vejo o bule reluzente, as prateleiras de vidro cheias de pálidos aperitivos amarelos, os homens de casacos arredondados empoleirados nos bancos do balcão, e também vejo, atrás deles, a eternidade. É um estigma marcado pelo fogo na minha trémula carne por um homem encapuzado com um ferro vermelho.”

O Sol, símbolo de vontade. Domínio Público

É como se juntos fossem os Sete Raios das tradições mistéricas, ou encarnação deles, passando pelas diferentes vicissitudes da existência humana, unidas na matéria, revoltando-se contra ela para serem livres novamente. Evidentemente Percival seria o chefe solar, a vontade que os reúne naturalmente, mas que por sê-lo, em nenhum momento ele aparece em cena em diálogo, e o seu gesto poderoso leva incondicionalmente à felicidade, à realização do destino.

E com que beleza descrevem a sua união, por exemplo, num dos seus encontros já na maturidade, depois de jantarem juntos e de vencer com dificuldade as suas próprias dúvidas, medos e diferenças pessoais que os rejeitam antes de serem uma engrenagem juntos:

“Agora, mais uma vez,” disse Louis, “estamos prestes a separar-nos, depois de pagar a conta, e o círculo no nosso sangue, quebrado tantas vezes, tão bruscamente, porque somos tão diferentes, fecha-se. Algo construímos. Sim, porque quando nos levantamos e tocamos um pouco nervosamente os dedos de uma mão com os da outra, rezamos, guardando nas nossas mãos este sentimento comum: “Não vás, não permitas que a porta batente destrua essa coisa que construímos, essa coisa formada e fechada aqui, entre estas luzes, estas crostas, esta desordem das migalhas de pão e de gente que passa. Não te mexas não vás embora. Retém-no sempre!

“Retenhamo-lo por um momento”, disse Jinny, “vamos reter o amor, o ódio, ou como quereis chamá-lo, este balão feito de Percival, de juventude e beleza, e de algo tão profundamente enraizado em nós, que talvez nunca consigamos um momento semelhante com outro homem.”

“Florestas e países distantes do outro lado do mundo”, disse Rhoda, “fazem parte dele; também mares e selvas, os uivos dos chacais, e a luz da lua iluminando o pico alto em que desliza a águia.”

“A felicidade faz parte dele”, disse Neville, “e a paz das coisas comuns. Uma mesa, uma cadeira, um livro com um estilete de cortar papel entre as suas páginas, e a pétala que cai da rosa, e o tremor de luz quando sentados guardamos silêncio, ou quando, talvez, ao recordar qualquer trivialidade, de repente dizemos algo.”

“Os dias da semana fazem parte dele”, disse Susan, “a segunda-feira, a terça-feira, a quarta-feira. E os cavalos indo para o campo, e os cavalos regressando, e os corvos subindo e descendo, cobrindo com a sua rede os olmos, seja abril ou seja novembro.”

“O que há de vir faz parte dele”, disse Bernard. Esta é a última e mais esplêndida gota que deixamos cair, como um mercúrio celeste, no alto e esplêndido momento criado por nós, com base em Percival. O que acontecerá? Pergunto-me enquanto sacudo as migalhas do colete. O que há no exterior? Comendo sentados, falando sentados, temos mostrado que somos capazes de enriquecer o tesouro dos momentos. Não somos escravos destinados a receber incessantemente as chicotadas nunca escritas da mesquinhez nas nossas costas encurvadas. Nem somos ovelhas, seguindo o amo. Somos criadores. Também nós criámos algo que fará parte das inúmeras reuniões do passado. Também nós, quando colocamos o chapéu e empurramos a porta, não entramos no caos, mas sim num mundo que a nossa força pode subjugar, transformando-o em parte da iluminado e eterna senda.”

Percival morre então na Índia, em plena juventude e, muito mais tarde, Rhoda, que se atira para o abismo, e as suas histórias pessoais avançam. No final, o monólogo é só de Bernard, que depois de superar um eclipse da sua alma, que é como vencer o eclipse mais terrível, o da própria morte espiritual, agora enfrenta-a disposto a enfrentar durante a noite, pela última vez, as ondas, e sabemos que ele entra vitorioso no desconhecido, depois de se armar com silêncio, abandonando agora as palavras com que queria aprisionar a própria vida.

“Permiti-me erguer a minha canção de glória. Bendita seja a solidão. Deixai-me só. Deixai que retire e atire para longe este véu do ser, esta nuvem que muda ao mais leve sopro de ar, noite e dia, e toda a noite, todo o dia. Enquanto estava aqui sentado, mudei. Vi que o céu mudava. Vi como as nuvens cobriam as estrelas, como libertavam as estrelas, como as cobriam novamente. Agora já não observo a mudança das estrelas. Agora ninguém me vê e eu deixei de mudar. Bendita seja a solidão que retirou a pressão dos olhos, o convite do corpo, e toda a necessidade de mentiras e frases.”

“O meu livro, repleto de frases, caiu no chão.”

(…)

“E também está a subir em mim a onda. Incha, arqueia as costas. Mais uma vez, tenho consciência de um novo desejo, de algo que surge no fundo de mim, como o altivo cavalo quando o cavaleiro pica as esporas e depois o restringe com a rédea. Que inimigo percebemos agora avançando na nossa direcção, tu, sobre quem agora cavalgo, enquanto pisamos esta calçada? É a morte. A morte é o inimigo. É a morte contra a qual cavalgo, lança em riste e crina ao vento, como um jovem, como Percival quando galopava na Índia. Pico as esporas. Contra ti me lançarei, inteiro e invicto, oh Morte!”

“As ondas rompiam na praia.”

José Carlos Fernández

Escritor e diretor da Nova Acrópole Portugal

¹Sobre as águas alegres de um mar azul e escuro/Nossos pensamentos sem limites e nossas almas livres/As ondas espumando ali onde a brisa as arrasta. Os primeiros versos do Corsário de Byron.

Imagem de destaque: Ondas do mar. Creative Commons