Um dos quadros mais fascinantes e enigmáticos que encontramos ao visitar o Museu do Prado em Madrid, Espanha, é conhecido vulgarmente por As Meninas, do pintor sevilhano Velázquez, e cujo título original era A família de Filipe IV. É uma tela de grandes dimensões (310 x 276 cm), realizada a óleo no ano de 1656, em plena maturidade do pintor e quatro anos antes da sua morte aos sessenta anos de idade. O nome comum de As Meninas faz menção às damas de companhia da Infanta Margarida da Áustria. O nome de Meninas é uma palavra portuguesa e é utilizada em Espanha porque se refere às donzelas oriundas das mais importantes famílias da nobreza portuguesa, que serviam a infanta, no período de unificação de Espanha e Portugal, durante as chamadas dinastias filipinas, considerada na história deste último país como um período difamante e de ocupação.

Detalhe do quadro, a Infanta Margarida. Flickr.

Detalhe do quadro, a Infanta Margarida. Flickr.

 

 

Onze personagens (e um cão) dispostos harmoniosamente criam uma cena em que não é fácil localizar-se e que desconcerta. Aparentemente Velázquez está a pintar Suas Majestades e a Infanta Margarida chega para saudar os seus pais, acompanhada pelas suas damas de companhia (as meninas portuguesas já mencionadas), a aia mor e o guarda da princesa, na penumbra; uma anã hidrocéfala e alguém que se parece com uma criança [1] que está a maltratar um mastim tranquilamente sentado no primeiro plano. Uma personagem aparece entrando na sala, e com ela um raio de luz visível ao fundo e que penetra nela.

Detalhe do quadro, os reis Filipe IV e Mariana de Áustria refletidos no espelho. Wikipedia.

Detalhe do quadro, os reis Filipe IV e Mariana de Áustria refletidos no espelho. Wikipedia.

O que desconcerta é que os reis Filipe IV e Mariana de Áustria não estão dentro da cena senão refletidos num espelho, possivelmente sendo retratados pelo pintor sevilhano, ou vieram vê-lo trabalhar, estando eles na verdade onde se encontra o espectador que contempla o quadro, engenhoso jogo de perspetivas que aliado ao domínio da técnica do esfumato faz com que entremos nele, de forma magistral e misteriosa. Mais ainda se o quadro, como antes acontecia no Museu do Prado, fosse contemplado na penumbra e olhando-o através de um espelho. Como disse o professor E. Orozco no seu livro “El Barroquismo en Velázquez”:

Como aspiração central, Velázquez propõem o paradoxo de que o quadro não seja quadro, que o quadro ofereça um âmbito espacial com o ar ambiente, que, sentindo a sua profundidade, nos estimule a penetrar nele, e que, por sua vez, nos impressione como se os seres que o habitam pudessem também sair dele e penetrar no nosso.

Trata-se portanto de uma obra-prima da “realidade virtual” do século XVII. O efeito é tão desconcertante que quando o poeta e crítico Teofilo Gautier o viu, disse: “Onde está o quadro?”. Pablo Picasso também ficou impressionado e dizem que se fechou no seu estúdio de Cannes até encontrar a chave do mesmo. Onde está realmente cada uma das personagens?

Depois reproduziu a sua própria interpretação das Meninas, muito ao seu estilo que não sei dizer se alucinante ou de alucinado.

Os historiadores de arte dizem que por ser uma obra de arte barroca, existem várias mensagens ocultas em simultâneo:

  1. Estas personagens seriam representações alegóricas: a anã Maria Bartola, com uma bolsa de moedas na mão, a cobiça; e o menino importunando o plácido mastim seria o Mal, quem é assim figurado como um pequeno diabrete vestido de vermelho, querendo perturbar a Fidelidade (o cão), no primeiro plano do quadro. Esta seria uma insinuação à importância que Velázquez dava a esta virtude, ainda mais para quem está próximo dos reis.
  2. O quadro seria uma defesa do sacerdócio da Arte: o pintor, Velázquez, tem a audácia de aparecer na cena régia, ele mesmo maior até do que os reis (2), ainda com a delicada desculpa de que a imagem dos mesmos é reduzida por estes estarem distantes e por ser refletida no espelho.
  3. Tal como o Nascimento de Vénus de Botticelli ou a sua formosíssima Primavera, o quadro seria um talismã mágico e astrológico. Em 1973, o professor Jacques Lassaigne, no seu tratado, Les Menines, explica que vários dos personagens traçam perfeitamente a constelação (3) da Corona Borealis (unindo as suas cabeças, ou melhor, os seus corações), a princesa Margarida seria a estrela do mesmo nome, a mais luminosa desta constelação (4). A luz que recebem os personagens no quadro é da mesma magnitude relativa das estrelas da Corona Borealis no céu. Os reis ocupariam a posição – e a luminosidade aparente – da chamada estrela R, uma estrela difícil de observar a olho nu, mas facilmente através do telescópio (5), uma estrela que aumenta de brilho progressivamente e esforçadamente, mas que logo o perde de forma abrupta, uma metáfora, portanto, do poder e da fortuna no mundo.
Recriação da constelação Coroa Borealis. Wikipedia.

Recriação da constelação Coroa Borealis. Wikipedia.

O catedrático da perspectiva e engenheiro civil Angel del Campo Francés no seu livro La Magia de las Meninas (1978) desvela muitos mistérios ópticos deste quadro e diz que a solução do enigma que o quadro coloca baseia-se na utilização de seis espelhos (?) e quiçá o que fazem todos juntos na sala é uma experiência com a “lanterna mágica” do jesuíta Athanassius Kircher. Um raio de luz (o que entra a partir do fundo) é projectado sobre um pequeno retrato em madeira pintada por Velázquez e a imagem, ópticamente amplificada e dirigida por espelhos, é projectada sobre a parede.

Este mesmo investigador, recentemente falecido, explica também o significado geométrico – alegórico do triângulo equilátero que formam a cabeça da infanta Margarida, os reis reflectidos no espelho e o raio de luz que entra pela porta. Significam, diz: o Infinito do espírito (raio de luz), a realidade (a princesa, que é claramente protagonista deste quadro) e a ilusão (Filipe IV e a rainha Mariana de Áustria palidamente refletidos no espelho). Outra forma de ler isto seria talvez:

1 – O real é aquilo que nem nasce nem morre, o espírito simbolizado pela luz (metáfora muito amada por todo o verdadeiro pintor).

2 – Depois vem o que somos verdadeiramente (representado pela Infanta).

3 – E por último as responsabilidades ou dignidades, que sendo importantes no mundo, vão e vêm, estão, hoje sim, amanhã não, não outorgando nem arrebatando nada a quem as assume. Tão importantes como a imagem dos reis no espelho, que se reflectem agora e num momento depois já não. É a mesma tripla diferença entre o que somos, o que cremos ser, e o que os demais crêem que somos.

Detalhe do quadro, o pintor retratando-se a si mesmo. Wikipedia.

Detalhe do quadro, o pintor retratando-se a si mesmo. Wikipedia.

Também se enuncia o enigma sobre o que realmente está pintando Velázquez na tela sobre o cavalete de madeira. A cena das Meninas? (ou seja, o mesmo quadro). A si mesmo? Os reis, que estão presenciando a cena? É possível, até que a imagem no espelho dos reis seja a imagem refletida do que está pintando Velázquez. O espectador, ao posicionar-se mesmo em frente do quadro das Meninas, observaria esta imagem que é o centro da composição.

Também é interessante analisar as perspectivas. O ponto de fuga está na porta aberta, por onde entra o raio de luz, custodiada por uma espécie de guardião do umbral (como os génios das portas ou pilones da magia egípcia). Velázquez utilizou uma composição geométrica áurea em forma de espiral que vai dispondo todos os espaços no quadro. O centro da referida espiral, ou seja, a partir de onde irradiam todas as linhas de força é o peito da Infanta, pois o quadro foi realizado em sua homenagem, e além disso a princesa Margarida estava na linha sucessória da dinastia, truncada pelo nascimento infausto de Carlos II, o Enfeitiçado.

O pintor barroco Luca Giordano disse que este quadro era “a Teologia da Pintura”, e o filósofo francês Michael Foucault afirma que nele, o espectador é convidado a formar parte da realidade, não podendo ser apenas espectador senão que o afecta enquanto observa. Esta é uma visão do mundo como a que nos dá a Física Quântica atual ou a Filosofia Egípcia de há 5000 anos. Para este autor a pintura seria toda uma estrutura ou matriz de conhecimento em que o observador participa numa representação dentro de outra representação. Pois conforme diz Aristotéles, tudo neste mundo é género e espécie ao mesmo tempo, tudo é causa e efeito, tudo é parte de algo e está formado de partes.

Os enigmas sintetizados no talismã astrológico que é este quadro não impedem que, em dado momento, aquietemos os ventos que se originam na mente, e em silêncio, com a inocência de uma criança, nos adentremos na cena e acariciemos o mastim que se encontra em repouso, olhando com estranheza a nossa turbação.

 

[1] No entanto as enciclopédias dizem ser Nicolasito Pertusato, anão italiano que chegaria a ser camarista no palácio.
[2] O respeito que Filipe IV manifestou pelo pintor é evidente. O quadro estava no escritório de Verão do rei, onde só os mais íntimos e privados o poderiam ver. Muitos nobres haveriam protestado da audácia de Velázquez em representar-se a si mesmo na companhia dos reis e numa posição de destaque. E o que é curioso e serve de desculpa é que não está, de facto, com os reis, mas antes com a sua imagem refletida num espelho, evocação alegórica de muitos profundos significados. Aliás, quando Velázquez morreu, o rei quis que traçassem sobre o seu peito a Cruz da Ordem de Santiago, ordem nobiliárquica a que um pintor não podia aspirar.
[3] Ante a crítica de que uma das estrelas não aparece, a resposta é que é impossível dispô-las todas sem deformar as figuras humanas que as representam. Trata-se de uma alusão mágica e astrológica, não de uma cópia exacta do conjunto estelar.
[4] A chamada, estrela alfa da mesma.
[5] Velázquez, entre outras paixões tinha a da Astronomia e dispunha de vários telescópios em sua posse. Na sua época era sabido que a chamada agora R. Corona Borealis era uma estrela que aparecia e desaparecia no céu.