Leonardo, o misterioso e multifacetado génio do Renascimento, nasceu numa casa singela a muito pouca distância da aldeia de Vinci, entre Empoli e Pistoia, no norte de Itália.
Viu a luz do dia num sábado, a 15 de Abril de 1452. O seu pai é notário e, a sua mãe, Catarina de Anchiano, solteira, casar-se-á mais tarde com um lavrador. Com as Santas Águas recebe o nome de Leonardo de Ser Piero d’Antonio.
O facto de ser filho ilegítimo, conforme os costumes da época, não impede que Leonardo viva e cresça em casa de seu pai. O seu querido avô, António, morre em 1468 e um ano mais tarde toda a família vai viver para Florença.
As enigmáticas rodas do destino começaram a movimentar-se e um dos génios mais completos de todos os tempos encontra, na magnífica cidade, o ambiente adequado para as suas primeiras precocidades. Estas são de tal calibre que o pai não duvida em levá-lo, como aluno, ao mestre Verrocchio, o melhor da cidade, cuja oficina era considerada por toda a parte um centro de onde saíam homens destacados na pintura, escultura, ourivesaria e numa cultura humanística fortemente ligada ao Mundo Clássico.
Leonardo, em 1472, consegue ser inscrito como Mestre na Companhia dos Pintores, coisa espantosa se considerarmos a sua idade e as provas que teve de vencer para tal. Abandona a oficina de Verrocchio sem, no entanto, romper relações com ele.
Em 1480, ingressa na extraordinária Academia de Lorenzo, o Magnífico.
O seu carácter fogoso e aventureiro leva-o, em 1482, à presença do Duque de Milão e, por testemunho do notável Ludovico Sforza, sabemos que já era engenheiro civil e construtor de máquinas. E este é o ponto de principal interesse para o tema deste trabalho que contempla, forçosamente, apenas uma faceta dessa jóia humana que foi Leonardo; uma jóia genial, misteriosa e torturada, pois em muitos aspetos nascera quinze séculos depois ou cinco séculos antes do seu próprio tempo interior. Felizmente, o ecletismo renascentista permitiu-lhe deixar-nos testemunhos desse fenómeno. Porque Leonardo reencontra, de uma maneira que desconhecemos, muitos dos inventos até então perdidos ou esquecidos dos Mecânicos da Alexandria greco-romana e, por sua vez, projeta-se sobre o nosso século XX.
Será que teve acesso a trabalhos desconhecidos e escondidos do Mundo Clássico? Ou possuiria talvez a faculdade de “ler” nesses anais a que os modernos ocultistas chamam akashicos? Ambas as coisas?… É provável que nunca o cheguemos a saber ao certo. Porém, este ser monumental e incrível fascina-nos à medida que nos aproximamos dele, das suas obras e projetos, muitos deles irrealizáveis nos séculos XV e XVI por insuficiência técnica e incompreensão.
Embora no seu tempo estivesse proibida pela igreja católica a dissecação dos cadáveres humanos e mesmo a dos animais – coisa que se relacionava com a bruxaria – Leonardo superou essas dificuldades para as realizar e, assim, adquiriu extraordinários conhecimentos de anatomia e desenhou toda uma panóplia de instrumentos cirúrgicos, bem como traçou magistralmente cortes pedagógicos que iam desde a posição do feto no ventre materno até aos fenómenos óticos do olho.
Utilizando as medidas áureas, fez projeções sobre todas as coisas criadas pela Natureza, e é espantoso ver como interpretou as copas das árvores e as formas dos animais. Neste último aspeto, a ciência do nosso tempo ainda anda de fraldas e os desenhos de Leonardo relacionam-se com um esoterismo pitagórico que teremos de reservar para o futuro. Ainda que o seu mito jamais se tenha extinguido, antes de passar a mencionar algumas de suas fabulosas máquinas, não podemos deixar de agradecer aos organizadores da Exposição sobre Leonardo que se realizou em Milão, no ano de 1939. Não pararam desde então, algumas levadas a países distantes. Também existe um pequeno museu na sua casa natal e uma galeria impressionante na cidade de Milão, tal como arquivos e amostras noutros lugares de Itália, Europa e nos Estados Unidos da América. Não descartamos que em coleções particulares existam também testemunhos ainda desconhecidos e reconstruções de diferentes épocas das suas misteriosas máquinas.
A fonte que utilizaremos é, quase exclusivamente, o chamado “Códice Atlântico”, talvez pelo seu tamanho original de 1200 grandes lâminas repletas de esboços e explicações. Foi reduzido a umas 400 por Pompeyo Leone, escultor da Corte de Espanha, que o sintetizou e preservou no século XVI. Em 1608, com a morte de Leone, o Códice Atlântico passou por várias mãos até ser depositado na Biblioteca Ambrosiana de Milão. Com as Guerras Napoleónicas, foi levado para Paris, de onde, em 1815, retornou à Biblioteca Ambrosiana, sítio no qual se encontra na atualidade. Existem outros Códices, porém, razões de espaço impedem-nos de os mencionar neste trabalho… Tal é a obra sobre-humana de Leonardo!
MÁQUINAS DE GUERRA
Passada a Idade Média e transferida parte da Biblioteca de Constantinopla para a Europa, trabalhou-se com uma grande quantidade de bibliografia em grego e latim, a partir de alguns originais que procediam do séc. IV a.C. até manuscritos árabes que traduziam em parte obras perdidas da Biblioteca de Alexandria, escritos entre o século IX e XI da nossa Era. Muitas referências eram sobre máquinas de guerra.
Leonardo, para ser aceite na Corte de Ludovico, o Mouro, apresenta-lhe uma resenha informativa da sua capacidade como engenheiro militar e inventor. Oferece-lhe, entre outras, as seguintes possibilidades:
- Pontes de módulos encaixáveis, rapidamente desmontáveis e transportáveis. Diferentes tipos de blindagens para essas pontes e lança-chamas para pegar fogo às pontes inimigas.
- Como cortar a água que inunda os fossos de proteção do inimigo, desviar rios, fazer pontes desmontáveis sobre eles; diferentes modelos de escadas de assalto e instrumentos para medir a altura das muralhas à distância.
- Bombardas especiais com projéteis explosivos que se fragmentam em ramalhetes de outras bombas menores quando se combate a infantaria ou praças-fortes sem proteção para o ataque por tiro indireto ou parabólico. Explosivos especialmente compostos para partir rochas.
- Uma forma de bombarda ligeira que lança granadas fumígenas que produzem nevoeiro artificial, muito fáceis de transportar e de grandes efeitos psicológicos nos adversários.
- Enormes bombardas que lançam granadas incendiárias e fumígenas a partir dos navios.
- Como cavar vias subterrâneas secretas sem ruído, que passem por baixo de muralhas e, inclusive, de rios.
- Carros armados e blindados, artilhados, de rápida aproximação ao inimigo. Assinala que serão manobrados por especialistas e que depois deles deverá seguir a infantaria de ocupação.
- Outros carros munidos de gadanhas giratórias contra a infantaria. Devem ser apoiados por bombardas, morteiros e caminhos artificiais transportáveis para andar sobre zonas lamacentas ou incertas.
- Uma longa descrição de armas leves para peões e franco-atiradores, desde modelos aperfeiçoados de fundas até trabucos ou armas curtas de fogo.
Noutros desenhos e descrições Leonardo deixou-nos:
- A balista de tiro rápido, precursora da metralhadora.
- Rodas para carregar balistas à maneira dos carregadores de disco utilizados pelos EUA e URSS. nas Primeira e Segunda Guerras Mundiais.
- Diferentes tipos de balistas múltiplas automáticas acionadas por um só homem mediante uma manivela, à maneira das primeiras metralhadoras de múltiplos canos utilizadas desde a Guerra de Secessão nos EUA.
- Um estudo das armas tradicionais.
- Balista gigante montada sobre um carro. As rodas inclinam-se à maneira de alguns modelos de suspensões atuais de automóveis alemães para absorverem o contra-impacto e corrigirem a altura. Tem lâminas elásticas cujo número diminui ao aproximar-se dos extremos do arco. O alcance desta enorme máquina está estimado em cerca de mil metros.
Para além de tudo isto, figuram outras catapultas e complicadas máquinas das quais a maior parte nunca foi construída.
Leonardo destacou-se também como fundador de grandes armas com técnicas novas, baseadas em não empregar grandes canos, mas pequenas secções facilmente transportáveis. Mecanizou os elementos de pontaria que naquela época eram quase inexistentes, a ponto de os artilheiros terem de se orientar pelo próprio dedo polegar como mira, dedo que retiravam antes do disparo. Destacamos um canhão naval e de campanha com um desenho que, se não soubéssemos que é de Leonardo, pensaríamos que tinha sido desenhado nos princípios do século atual.
Eram elementos típicos de Leonardo – abandonados depois até às Guerras Napoleónicas – a relativa ligeireza das suas máquinas bélicas e o seu funcionamento extremamente prático, dando prioridade à efetividade sobre o ornamento, coisa que nos séculos XVI e XVII era uma revolução tão grande que não foi aceite, salvo esporadicamente, durante a sua vida.
As suas balas-flecha e projéteis ocos e explosivos constituem, como grande novidade, certos elementos de artilharia da NATO e do extinto Pacto de Varsóvia.
MÁQUINAS HIDRÁULICAS
Diz-se que já na oficina de Verrocchio, Leonardo se interessou pela mecânica da água e que desenhou algumas fontes. Fazia maquetas em vidro de aquedutos e utilizava a técnica de colorir parte da água, ou de fazer com que nela flutuassem pigmentos, a fim de seguir mais facilmente as correntes e de entender as leis ocultas que as regiam. Desenhou aquedutos, túneis de canalização de rios e planeou canais impossíveis de realizar naquela época, por exemplo, um que fazia a comunicação entre a cidade de Milão e o mar e que tinha eclusas à semelhança do atual Canal do Panamá.
A pedido do Papa Leão X planeou canais especiais para inundar as planícies da Lombardia em caso de invasão turca. Também idealizou como secar os pântanos, coisa que só se pôde tornar efetiva no segundo quarto do século XX e que, na antiguidade, os romanos haviam parcialmente conseguido desde a época de Augusto.
Além disso, Leonardo desenhou navios sem remos, movidos com grandes rodas laterais – que disse ter observado num baixo-relevo romano que não conhecemos na atualidade – barcas motoras e submarinos, assim como pequenos artefactos estranhamente parecidos aos atuais tubos respiratórios dos mergulhadores. Citaremos alguns dos seus inventos:
- Canal com eclusas oblíquas, com níveis de água reguláveis.
- Portas hidráulicas com elementos que permitem nivelamentos de pressão de maneira automática, prevendo marés ou aumentos no nível das águas por deslocamentos devidos à inclusão de um navio, baseados no Princípio de Arquimedes.
- Dragas para tirar o lodo e a areia dos portos e canais.
- Experiências com modelos de dimensões reduzidas para averiguar os efeitos hidráulicos sobre navios, canais, diques, submarinos, etc.
- Um canal desde Florença até ao mar, na guerra contra Pisa em 1500. Embora personalidades como o próprio Maquiavel o tenham considerado possível e se iniciassem os trabalhos, estes não tardaram a ser abandonados por incompetência dos operários, falta de tecnologia para aplicar eficazmente as ideias de Leonardo e, sobretudo, pela psicologia reinante que nada tinha a ver com esses projetos colossais. A instabilidade política e social das cidades e estados cortava todas as possibilidades… O Império Romano caíra há mais de mil anos!
- Máquinas escavadoras que podiam abrir um fosso de 18 metros de largura por 6 de profundidade, com braços extensíveis e rotativos. A máquina estava associada a gruas extraordinárias que deslocavam a terra removida ao mesmo tempo que era arrancada do solo.
- Galochas e suportes para as mãos, especiais para andar sobre a água.
- Diferentes tipos de snorkel1 para respirar debaixo de água.
- Barbatanas para nadar e óculos para ver debaixo de água.
- Escafandros metálicos para mergulhadores, de grande resistência.
- Salva-vidas redondos, como os atuais.
- Embarcações que podiam submergir e emergir à vontade. Submarinos em forma de peixe.
- Máquinas de todo o tipo movidas pela água, incluindo ventiladores.
- Nora de alcatruzes movida por pesos e pela própria água.
MÁQUINAS PARA VOAR
Segundo dados bastante fiáveis, os antigos mecânicos de Siracusa, Rodes, Alexandria, etc. tinham realizado com êxito experiências de voo com maquetas de máquinas mais pesadas que o ar. Os chineses, os egípcios e alguns povos da América Pré-colombiana utilizaram planadores e sabemos que os chineses e indianos conseguiram, com fins militares, elevar numa espécie de “papagaios–voadores” homens a uma altura de, talvez, milhares de metros. Porém, com a obscuridade da Idade Média, perderam-se estas possibilidades na bacia do Mediterrâneo. Tinha que aparecer Leonardo para que elas ressurgissem, numa dimensão maior, mais séria e elaborada… pelo menos dentro do que sabemos, e pondo de lado os vimanas que os antigos livros da Índia atribuem aos Atlantes de há quase um milhão de anos.
Entre 1503 e 1506, Leonardo dedica-se a estudar o voo e a anatomia das aves. Leonardo parece indagar sempre a Natureza, escapando a todo o fanatismo antropocêntrico.
Assim nascem:
- Estudos de asas articuladas.
- Uma espécie de “Asa Delta” que consegue voar, mas imperfeitamente.
- Asas rotativas, à maneira das atuais pás de hélice que podem, sem variar a velocidade de movimento, apoiar-se no ar de maneira graduada e reversível.
- Um Ornitóptero para voo vertical.
- Cabinas aerodinâmicas para máquinas voadoras, com o fim de proteger o homem que as conduz e move.
- Um Ornitóptero com timão de direção para voo horizontal.
- Uma plataforma para a descolagem e aterragem de Ornitópteros (aparelho que tinha algo do atual helicóptero e também do autogiro).
- Estudos sobre as folhas mortas e sua aplicação em para-quedas.
- Hidroscópio e Anemómetro para prevenir condições de voo adversas.
- Inclinómetro: forma de giroscópio aplicável ao voo.
- Diferentes tipos de para-quedas, pensados para suportar o peso de um ou de vários homens ou o equivalente em volumes lançados do espaço.
Apesar de serem estes os seus aparelhos mais impressionantes, e se bem que teoricamente estivessem perfeitamente aptos para os seus fins, quase todos eles fracassaram pois Leonardo tropeçou com a mesma dificuldade com que já se haviam deparado os engenheiros e mecânicos da época helenística e romana: a falta de um motor poderoso e leve que não se cansasse no seu exercício. Esta dificuldade só foi superada nos princípios deste século XX, com o aparecimento dos motores de explosão que funcionam com combustíveis líquidos.
OUTRAS MÁQUINAS
- Mecanismo para manter um movimento perpétuo a uma velocidade constante.
- Elevador de plataforma semelhante aos utilizados hoje em armazenamentos.
- Numerosos tipos de correntes de transmissão, algumas ainda não superadas. As actuais bicicletas usam a corrente de transmissão de Leonardo.
- Múltiplas variedades de engrenagens e rodas movidas por pesos.
- Modelo de bicicleta. Também de carrinhos autossustentáveis de quatro rodas, parecidos a um automóvel
- Máquinas industriais reguladas pela oscilação de pêndulos e de pesos girando a grande velocidade segundo programas.
- Prensas de regulação, com limites prefixados.
- Rodas dentadas de “escape” para relógios de pesos
- Diferentes tipos de molas de aço, ainda não superados. Molas e sistemas de “corda” elástica.
- Máquinas de precisão para talhar as lentes astronómicas e os espelhos.
- Caixa de mudanças de velocidades. Odómetros exatos para medir distâncias.
- Alavanca ou “macaco” para levantar grandes pesos
- Máquinas para fazer cordas, martelos automáticos para forja, gruas elevadas.
- Elevadores de manivela e hidráulicos. Também por contrapesos.
- O compasso parabólico.
- Inúmeros estudos sobre a “Divina Proporção” e demonstração da impossibilidade do movimento perpétuo
- Máquinas têxteis
- Máquinas para mover cenários “grandes como montanhas”.
- Máquinas de impressão.
- Refletores.
- Máquinas agrárias semiautomáticas.
É-nos impossível, insistimos, abarcar toda a obra mecânica de Leonardo.
O que mencionámos basta para dar uma ideia deste génio universal, sem paralelo nos tempos que lhe sucederam.
Quando, há um par de meses, meditávamos em frente ao seu famoso fresco de “A Última Ceia” admirávamos o uso das perspetivas, lamentávamos ao mesmo tempo que o Mestre, inventor nato, não se tivesse cingido às normas dos pintores de sua época, pois a obra deteriora-se continuamente. Além disso, uma bomba de duas toneladas lançada pela aviação aliada na Segunda Guerra Mundial, causou-lhe danos ao explodir na igreja que o continha, apesar do grosso muro de sacos de terra que, para proteção, se havia encostado.
Juntamente com a grandeza de Leonardo, é o seu próprio “gigantismo” que arruína muitas das suas criações, pois trabalha com materiais, pigmentos e técnicas ainda não utilizados no seu século…
Mescla de sábio e de vidente, chega a pintar na sua velhice um estranho “fim do mundo” que não pôde ser interpretado na altura… Hoje surpreende-nos: nele figura um enorme cogumelo que surge da explosão de uma cidade.
Admirado, amado e odiado por muitos homens poderosos, aceita do Rei de França, Francisco I, a proteção oferecida e de Roma vai para França em 1516. É agora um ancião de porte nobre, sacudido por tempestades interiores e trabalhando até ao fim com verdadeira fúria. O seu autorretrato, desses tempos, é impressionante. O homem deu lugar ao super-homem, ao semideus que já vive numa outra dimensão quase perpetuamente. Deixou o seu corpo carnal a 2 de Maio de 1519 em Clos Lucé, lugar próximo do castelo de Amboise, junto ao rio Loire. Foi sepultado na Igreja de Saint Florentin, mas os seus restos desapareceram durante as guerras religiosas do século XVI, quando o seu sepulcro foi profanado e os seus ossos dispersos pelos fanáticos de sempre.
Porém, a sua obra e o seu espírito titânicos continuam a comover o mundo… o nosso mundo contaminado que não soube fazer máquinas harmónicas que não envenenassem a Natureza… Como essas que Leonardo sonhou.
Jorge Ángel Livraga
Extraído do livro Artigos Jornalísticos. Edições Nova Acrópole
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