Todos reconhecemos em Dante (1265-1321) o verdadeiro precursor do Renascimento, com outros autores do chamado Trezentos (século XIV) que o aceitariam como Mestre, Petrarca e Boccaccio, por exemplo, e com Florença como centro de irradiação (apesar das críticas feitas por Dante, um dos seus filhos favoritos, a esta cidade, devido a convulsões políticas e morais).

A sua ideia de “monarquia universal” seria determinante para o chamado Estado Moderno e para o poder cada vez maior dos reis como a imagem do Rei do Mundo.

Ele, como entrelaça na Divina Comédia personagens e ideias medievais e cristãs com heróis gregos e romanos clássicos e as suas mitologias, marca o regresso de uma nova cosmovisão de mundo encorajada pelo renascido Fogo de Vesta e suas Águias, procurando novos corações em que arder e uma nova consciência em que vibrar poderosamente: uma nova terra e matéria para elevar ao seu Empíreo. Claro, estas são apenas as primeiras gotas, tímidas, precursoras da chuva, ou os primeiros fios de fogo e luz divina num mundo sombrio e pétreo agitado pela violência, o sono das almas, a brutalidade e a inércia.

De facto, a primeira matriz do Renascimento foi dada de forma eficaz, mas silenciosamente (sem demasiados anúncios doutrinários nem propaganda) na Obra e o Ideal Templário. E é a sua tocha no seu trágico final que parece que Dante teria apanhado, piedosamente. Não esqueçamos também, e depois, o amigo de Petrarca, Cola de Rienzo (o Rienzi do drama wagneriano, que viveu entre 1313 e 1354) quem foi na política, o que Dante na literatura, e de quem é fácil pensar que se trata o grande Iniciado por trás (ou na frente) das forças espirituais e civilizadoras daquele século. Seria realmente interessante saber o que teria dito sobre ele na sua Comédia.

A comoção que gerou Dante no seu tempo e séculos sucessivos é visível no número de edições desta obra, a Divina Comédia, da qual mesmo antes de estar concluída os seus versos eram recitados por toda a Itália. Mas também assistimos a este impacto emocional, religioso nas representações artísticas que se fizeram das diferentes cenas do Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Os manuscritos iluminados ao longo dos séculos XIV e XV, o fresco na igreja de Santa Maria Novella (pintado em 1357 por Nardo di Cione), ou as incríveis e pouco conhecidas, mais de 100 ilustrações que fez do livro o próprio Botticelli, ou as de Federico Zuccari na corte de Filipe II de Espanha, atestam o furor criativo que despertaram as ideias e o magno poema escrito por Dante.

E embora o Barroco não tenha dado muita importância para ilustrar esta obra, os desenhos de contorno de João Flaxman em 1793, e no século XIX as gravuras de Tommaso Piroli e de Gustave Doré divulgarão as cenas com as quais imaginamos, geralmente, as diferentes passagens da Divina Comédia. A formidável escultura em bronze de Augusto Rodin, As Portas do Inferno, com quase 7 metros de altura e 4 metros de largura, é também, e evidentemente, dantesca. Quase nos parece ouvir o sinal de aviso de acordo com o poeta florentino:

Dante e Virgílio nas portas do inferno, William Blake. Domínio Público

“Per me si va ne la città dolente,
per me si va ne l’etterno dolore,
per me si va tra la perduta gente.

Giustizia mosse il mio alto fattore;
fecemi la divina podestate,
la somma sapïenza e ‘l primo amore.

Dinanzi a me non fuor cose create
se non etterne, e io etterno duro.

Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate”.

“Por mim se vai para a cidade do pranto; por mim se vai à eterna dor; por mim se vai para a raça condenada: A justiça encorajou o meu arquiteto sublime; fez-me o Divino Poder, a Suprema Sabedoria e o primeiro Amor. Antes de mim não havia nada criado, à exceção do imortal e eu duro eternamente. Ó vós que entrais, abandonai toda a esperança!”

Na Inglaterra, a obra de Dante é conhecida pela primeira vez em 1782, quando Charles Rogers fez a primeira tradução de O Inferno. A primeira versão completa em inglês é a de Henry Boyd publicada em 1802.

É lógico que o pintor e poeta William Blake, que também era visionário e profeta, se interessasse por esta obra de Dante, com imagens tão plásticas, vigorosas, tão apelativas para uma alma sensível. Recordemos que este pintor, Blake, que muitos consideravam louco, vivia numa realidade paralela e real, na qual falava com santos, anjos e todo o tipo de espíritos da Natureza, desde a infância. Desse mundo interior e subtil nasceriam tão belíssimos poemas e ilustrações, desde as joias líricas de Songs of Innocence, aos monumentais livros proféticos, realmente misteriosos, como o Livro de Urizen ou o Casamento do Céu e o Inferno, com os seus famosos provérbios dionísicos (por exemplo, “As prisões são construídas com as pedras da lei, os bordéis com os tijolos da religião”).

Assim, quando recebeu a incumbência de um dos seus discípulos e amigos para a ilustrar, embora o poeta já tivesse 70 anos, começou a trabalhar febrilmente. O que implicava não só ler e meditar sobre os versos de Dante, mas entrar na própria alma do seu criador, debater-se furiosamente com e contra as suas imagens, dialogar com elas. Decidiu, até aprender, já com a sua idade, a língua italiana para poder entrar no encantamento dos seus ritmos e música, dos seus desenhos e formas mentais, diretamente, sem ter de passar pelos desenhos e formas mentais próprias de uma língua, e também tão diferente, como era a inglesa.

Muitas vezes os amigos o encontravam na cama, com um grande caderno de folhas de 53 cm x 37, pintando cena a cena, as que mais poderosamente chamaram a sua atenção, sem um aparente programa definido. Na verdade, fez 72 chapas do Inferno (várias, portanto, às vezes de um único Canto), 20 do Purgatório e 10 do Paraíso.

Blake morreu sem terminar esta obra. Além disso, curiosamente, Lionell, o amigo que o encorajou a trabalhar nela – para ter uma desculpa para o ajudar financeiramente – é possível que também não quisesse editá-la, o que não seria fácil a propósito. Muitos poucos dos quadros foram terminados e passados a buril nas chapas. Recordemos que esta era a verdadeira profissão de William Blake, porque desde a adolescência foi gravador, o que lhe permitiu ilustrar não só os desenhos dos seus diferentes livros, mas também as chapas de impressão dos mesmos.

Apenas 11 chapas estão assinadas, isto é, terminadas. Muitas são apenas esboços, e outras foram refeitas uma vez e outra; noutras, só há cor em certas partes. Blake trabalhava furiosamente, indo de uma para a outra de acordo com as suas leituras e meditações, os seus humores, ou simplesmente a eletricidade anárquica da sua inspiração dionísica.

Ilustração para Dante, a Divina Comédia, Inferno, Canto I, 1-90, William Blake. Domínio Público

Como explica Maria Antonietta Terzoli no seu artigo “O além de Dante: entre mitologia clássica e teologia cristã”, incluída na excelente obra William Blake, A Divina Comédia de Dante, editada por Taschen e que estou a usar como guia:

“O grau de execução vai de mero esboço a placas completamente acabadas, o que permite formar uma ideia precisa da forma de trabalhar do artista. Basicamente, podemos distinguir três fases no processo de realização. Primeiro são esboçados com lápis, às vezes também com giz, a estrutura da composição e os aspetos fundamentais da narrativa, com correções energéticas e exploração de alternativas. No passo seguinte procede-se à coloração, que se aplica com virtuosismo e de forma muito diferenciada. As figuras modelam-se de forma lírica ou expressiva, policroma ou monocroma, com linhas fluídas ou destacando-as com força, trabalhando nos principais aspetos da composição e a narrativa, e fixando também a incidência da luz e as qualidades atmosféricas. Uma e outra vez se aplicam novas camadas na tinta habitualmente seca, de modo que no final se consegue um efeito de profundidade muito transparente. Por fim, o artista intervém de novo com a pena, destacando os contornos dos protagonistas e acentuando a estrutura de um fundo paisagístico. A ideia de Blake sobre a relação entre desenho e cor expressa-se na seguinte frase: “[…] tudo depende da forma ou o contorno […] Se isto falha, a coloração nunca poder ser correta […]”. Graças ao seu domínio absoluto dos meios técnicos, Blake consegue explorar toda a panóplia de experiências existenciais, desde as gloriosas provações infernais até à felicidade luminosa do Paraíso.”

Blake, embora reconheça o génio poético de Dante, luta com ele e a sua Divina Comédia, não aceita a sua visão do Inferno como o local dos castigos, nem o maniqueísmo que impregna a sua obra, muito menos acredita na humilhação e no sofrimento como pagamento dos erros cometidos. Para ele, esta dialética de castigo e erro eram simples truques. E claro que o seu Deus é o do perdão, não o do castigo. De acordo com a antiga visão gnóstica e ainda teosófica, o Deus que prende este mundo, o Jeová bíblico (associado a Saturno-Lua) não é a Luz Divina omnipotente, mas o Amo da Caverna, um Deus zangado e ciumento, que se faz adorar e temer e que quer a alma escrava das suas leis, que são as da submissão e da vergonha e não a das almas livres,  senhoras de si mesmas, intervindo com o seu poder, inteligência e amor com o mesmo Plano evolutivo que é a existência. Blake considera a visão de mundo de Dante materialista. E para ele, imbuído no meio das suas alucinantes visões – semelhantes às de Swedenborg, a quem admiraria e criticaria ao mesmo tempo – como ele disse: “Tudo na Comédia de Dante mostra que, por razões tirânicas, fez deste mundo o fundamento de tudo e senhora da deusa Natureza, a Natureza é a sua inspiradora e não o Espírito Santo. Como disse o pobre Shakespeare: Natureza, tu és a minha deusa.”

Dante e Beatriz no Céu, na constelação de Gémeos, ilustração de William Blake. Domínio Público

Não entendemos muito bem porquê esta oposição desnecessária. Os estoicos harmonizaram com a sua filosofia e exemplos Logos e Natureza, cada um deles é a expressão do outro. Logos é a Natureza ideal, na mente divina. Natureza é o próprio Logos impregnando, ordenando e dignificando com os seus poderes criadores à mesma.

Apesar da sua rebeldia contra a filosofia de Dante, Blake é estritamente fiel ao texto e às imagens poéticas do poeta florentino. Só que às vezes faz anotações, expondo, para si mesmo, o que pensa. Anotações que seriam invisíveis na pintura final, mas que ali estão deixando um registo de si, porque quem cala consente.

Como disse a autora do artigo acima mencionado, o que retrata William Blake são tipos, categorias humanas, não individualidades e menos personagens de carne e osso. Dante e Virgílio, seu mestre e guia no inferno e no purgatório, são assim quase gémeos nas ilustrações de Blake, gémeos e assexuados, como almas.  Ele vai de azul, a serenidade, e Dante de vermelho, a paixão, porque está vivo e o seu corpo projeta sombras e pesa. Não como nas ilustrações de Botticelli, em que Virgílio assume maior tamanho, especialmente quando o leva e o protege, como a uma criança no colo. E neste último, Beatriz é figurada, diretamente, como uma deusa.

Sendo como sempre a pintura de Blake quase onírica, e as suas imagens e texturas e cores irreais, é incrível como joga com a “música das cores”, ou seja, com os diferentes humores que provocam no espectador, como se estivessem vivos. Como disse a autora deste artigo, “a luz e a cor como portadores de significados autónomos”, com “dramáticos claro-escuros, as nuvens de mau presságio e o fogo vivo do averno, a plácida luz da lua, as auroras cor-de-rosa, as paisagens paradisíacas e a luminosidade esplendorosa do Empíreo”. Acrescentamos nós, o amarelo esverdeado pálido, quase doentio de uma Fortuna que tenta e oferece, mas que não perdoará o fruto comido; ou o cinzento sujo e borrado, dessa chuva barrosa onde saltitam como porcos no círculo dos glutões (e que tão assustador, que tão gráfico é no texto de Dante!); o vermelho flamejante e escuro da luxúria que agita e impele os amantes para satisfazer as suas paixões; ou as chamas triangulares, com sombras, vermelhas e azuis em que ardem os gigantes que presidem à entrada no inferno; o verde esmeralda, esperançoso, das cornijas do Purgatório; o azul noite de inspiração em que ardem frias as estrelas brancas, ao ser Dante raptado por Lúcia – a Graça e Luz da Alma, enquanto guia – e levado em sonhos até à entrada do Purgatório; ou o rosa inflamado do Amor, das cenas do Paraíso, a cor da caridade quando se difunde no branco da pureza, embora a sua verdadeira cor seja o vermelho imaculado, puro. Neste Paraíso a paleta de cores borra e entrelaça as sete cores da íris, diluídas na luz em tonalidades que definitivamente não são desta terra.

Santa Lúcia leva Dante, no seu sonho, à entrada do Purgatório . Domínio Público

Alguns desenhos, apenas esboços, são prodigiosos, como é o da Rosa Mística que fazem juntas todas as almas do Paraíso com a Virgem Maria, a Mãe do Mundo, coroando-a, com um espelho virado para Deus. Se no texto de Dante é sublime o que sugere, não é menos como o que vê e pinta William Blake. Lamentamos profundamente que esta imagem não tenha sido terminada e colorida.

E dos terminados é gloriosa, e no sentido literal, o de Beatriz aparecendo na carruagem empurrada por um Grifo Celeste, que muitos autores querem seja o próprio Cristo, que puxa a Igreja. Imóvel, é puro movimento e turbilhão de lirismo: o dossel azul céu com os olhos como os do pavão; a volta da roda quer simbolizar a afirmação bíblica de “o Espírito estava nas Rodas”; o véu dourado[1] e florido de Beatriz – a Alma Imortal – coroada; as três damas dançando, que aparecem na cor branco neve, verde esmeralda e fogo vermelho fé, a esperança e a caridade, etc.

Beatriz se dirigindo a Dante, William Blake. Domínio Público

Os gestos são excessivos e teatrais, congelados no seu vivo dinamismo, e agitam as ondas astrais com um grande dramatismo emocional. Assim, tudo é vida, luz e movimento, no inferno, no purgatório ou no paraíso, pois como disse William Blake nos seus Provérbios do Inferno, embora “o estúpido não veja a mesma árvore que vê o sábio “, a árvore é a mesma e “A Eternidade está apaixonada pelos frutos do tempo”. E é esse Amor que se torna atividade incessante.

José Carlos Fernández
Escritor e diretor de Nova Acrópole Portugal

[1] Embora no texto de Dante as vestes incorporem as três cores das virtudes teológicas: branco da fé, verde da esperança e vermelho da caridade; o resultado é um véu dourado.

Imagem de destaque: Retrato de Dante, ilustrado por William Blake. Domínio Público