Quando surgiu a Arte?

A História é o exercício de estendermos a consciência no Tempo em sentido regressivo e é lógico que esteja limitada pelas nossas capacidades cognitivas, isto é, há limites físicos concretos pelos materiais disponíveis e paradigmas mentais que nos aproximam ou afastam dessa verdade factual. No entanto, tal não invalida que reconheçamos que há mais passado para além do que aquele que os nossos conhecimentos proporcionam e fazendo assim elucubrações mais ou menos fantasiosas, lendárias ou míticas sobre o que terá ocorrido antes do conhecido. Sim, porque houve algo anterior ao que actualmente conhecemos.

Desde que o ser humano tem consciência de si mesmo, desde que deixou de caminhar olhando apenas para o chão vendo onde colocava os pés e ergueu o olhar para as nuvens ou estrelas, desde esse momento inicial, que todas as Tradições associam com a descida da consciência, a presença do Belo terá acompanhado a estrada da Vida que é a evolução humana. E a sua vivência originou a Arte, actividade multifacetada que não deixa de estar presente em todas as épocas e lugares nas suas mais variadas formas. No presente podemos usufruir de toda a produção artística produzida na actualidade, mas do passado vamo-nos distanciando gradualmente. E se ainda podemos reproduzir a música de Beethoven por estar registada num sistema de linguagem, o que ouvimos hoje não é exactamente igual ao que foi ouvido pelo público do grande compositor quando dirigiu as suas sinfonias. Quanto mais recuamos menos vestígios temos, e assim para atrás até nos restar apenas a arte feita na dura pedra que desafia o tempo.

Este trabalho tem como objectivo fazer uma abordagem exploratória à ideia do Belo e suas possibilidades de acesso através do que chamamos Arte. Comecemos por enquadrar o objecto da nossa atenção evitando erros de entendimento com base na linguagem. Cada um de nós é livre para usar e usufruir da linguagem corrente e, evidentemente, não queremos aqui estabelecer qualquer glossário, antes olhar para as palavras e ver o que podem ter dentro, o que cada um de nós lá coloca, o que nos podem dar ou até onde nos podem levar na busca da sabedoria. As palavras belo, beleza e sublime estão presentes em qualquer discurso que aborde a temática da arte. É como se estas palavras, ou melhor, aquilo que elas representam fosse a causa e finalidade de toda manifestação artística. Falar de arte sem as ter em consideração seria o mesmo que falar de medicina sem ter em conta a saúde. E assim vamos do simples adjectivo que aplicamos a toda a coisa que consideramos bela ou até sublime, até a algo que substanciamos com a palavra beleza. Todos sentimos que há coisas e seres belos, que participam dessa qualidade que reconhecemos dentro de nós de forma subjectiva, no entanto podemos admitir uma fonte de onde emana essa qualidade que sentimos estar presente numa flor, numa música ou poema… A flor é bela por ter em si mesma essa qualidade presente que é a beleza. Se esta qualidade fosse apenas e somente resultado da percepção subjectiva do indivíduo que desfruta da arte, portanto muito mais circunstancial e sujeito às modas de cada época histórica, seria difícil sentirmos algo quando contemplássemos uma estátua antiga. O que entendemos por Belo no âmbito deste trabalho é algo existente, fonte objectiva que é raiz de todas as coisas belas. Seguimos o pensamento platónico admitindo que, se há uma coisa harmónica, é porque existe harmonia; se há um amante é porque há amor; se há algo verdadeiro é porque há a verdade… Assim, à beleza captada numa flor ou música ou poesia, corresponde a existência do Belo emanante, princípio de tudo o que de belo existe no universo.

Apolo, Deus da Beleza, da Perfeição e da Harmonia, segurando a sua lira de sete cordas / wikipedia

O mundo chega-nos através dos sentidos. Os nossos órgãos sensoriais são as janelas abertas à realidade da manifestação e o cosmos manifesta-se em nós através deles. Sem estes canais de comunicação não tínhamos consciência de uma realidade manifestada e material, concreta e existente. São eles que nos vão permitir uma acção assertiva no palco da vida; sem eles estaríamos num limbo inócuo esperando que algo nos sucedesse… Se classificarmos os cinco sentidos com uma base sensorial, podemos dividi-los pela proximidade à matéria: o tacto, o gosto e o olfacto são órgãos mais materiais enquanto a visão e a audição são órgãos menos materiais, ou seja, não necessitam de tanta proximidade com a matéria. Necessitamos tocar para saber se algo está frio ou quente ou é áspero ou liso; necessitamos ingerir para dizer se é salgado ou doce; necessitamos estar próximo para inalar o suave perfume das flores; quanto ao som, chega-nos até ao longo da distância e a luz até das estrelas… Com base na natureza dos sentidos podemos seguir a tradição de os dividir em materiais e espirituais, e às sensações provocadas pelos primeiros apenas colocaremos o qualificativo de bom, e aos segundos já poderemos qualificá-los de belos.

“Nos objectos de todos os sentidos exteriores há coisas boas, úteis, suaves e deleitáveis; porém, graça que deleite e mova a alma para condigno amor (a que se chama Beleza) não se encontra nos objectos dos três sentidos materiais, que são o gosto, o olfacto e o tacto, mas apenas nos objectos dos dois sentidos espirituais, vista e ouvido. Por conseguinte, a saborosa e sã comida e bebida, o olor suave, os ares saudáveis, e o moderado e dulcíssimo acto sexual, apesar da sua bondade, doçura, suavidade e utilidade necessária à vida do homem e do animal, nem por isso são belos; porque naqueles objectos materiais não se encontra graça ou beleza, nem por aqueles três sentidos toscos e materiais a graça e a beleza podem passar para a nossa alma e deleitá-la, ou movê-la a amar o Belo. Este só se encontra nos objectos da vista: como são belas formas e figuras, belas pinturas e bela harmonia das partes entre si em relação ao conjunto, belos e proporcionados aparatos e lindas cores, bela e clara luz, belo Sol e bela Lua, belas estrelas e belo céu, porque no objecto da vista, em virtude da espiritualidade dela, se encontra graça, a qual costuma entrar pelos olhos claros e espirituais, e deleitar e mover a nossa alma a amar aquele objecto a que chamam Beleza. Também se encontra nos objectos do ouvido – como bela elocução, bela voz, bela fala, belo canto, bela música, belo acorde, bela proporção e harmonia – em cuja espiritualidade se encontra graça que suscita na alma deleitação e amor em virtude do sentido espiritual do ouvido. Enfim, nas coisas belas que participam da espiritualidade e são objectos dos sentidos espirituais, encontra-se graça e beleza, mas nas coisas boas muito materiais e nos objectos dos sentidos materiais não se encontra graça de beleza; por conseguinte, embora sejam boas, não são belas.”[1]

Na nossa demanda do Belo temos, então, dois sentidos que são os apropriados a essa tarefa de aproximação à fonte emanante de todas as formas belas. Através da vista e do ouvido podemos fazer esse percurso de retorno às origens, mesmo sabendo que há outras faculdades para além dos sentidos, aquelas faculdades interiores que nos dão outra visão da realidade como o entendimento, discernimento, intuição. Quando esse Belo toca o íntimo que há em nós, através das imagens ou da música, então sente-se o arrebatamento que chama e leva empreender esse caminho impulsionados pelo Amor.

 

As formas de Arte

Da vasta lista de formas artísticas que estão ao nosso dispor, (literatura, música, dança, pintura, escultura, e na nossa época cinema e outros meios digitais) todas se enquadram nos dois sentidos espirituais (visão e audição) acrescido do entendimento ou Razão proporcionado pela nossa mente. Neste caso temos a literatura, nas suas várias facetas, que requer um dos sentidos (visão ou audição) mais o entendimento da razão.

Baseado nesta divisão natural, Richard Wagner elaborou a sua teoria da arte tendo por base o drama. Verdadeiramente inspirado no teatro grego, o criador de O Anel procurou as fontes da arte para ele próprio fazer uso dos dons divinos outorgados aos humanos para que possamos retornar às nossas origens.

Richard Wagner (1813 – 1883) / wikipedia

A palavra drama tem raiz grega e significa, na sua origem, simplesmente acção. É tão somente a Vida no seu desenrolar, e no que concerne aos humanos é evidente que esta acção tem momentos intensos, repletos de significado, onde a vontade divina com a sua inexorabilidade marca a cadência, momentos trágicos, mas também situações mais leves onde essa acção é preenchida com situações lúdicas para aliviar as tensões da vida, momentos de comédia. Esta palavra drama não fica semanticamente longe de uma outra vinda de mais longe, do sânscrito, a palavra dharma. Apesar de este termo ser mais relacionado com Lei, também pode ser sentido da evolução, cuja perturbação ou desvio é o tão conhecido karma. Quer na palavra grega, quer na hindu, temos a consoantes dr a marcar a vibração sonora… e quem sabe se o directus latino não participa da mesma fonte?

Chegados aqui estamos como o realizador de cinema: take 1, acção!, ou seja, que movimento pode o artista movimentar? Claro que o pintor jogará com as telas, tintas e luz; o escultor com os volumes; o coreografo com os movimentos; o poeta com as palavras; o músico com os sons…

Vemos que cada forma concreta tem um órgão dos sentidos predominante e nenhuma é capaz de englobar todas as capacidades receptivas do ser humano através da visão, audição e entendimento. Wagner defende a tese de que a Tragédia Grega, no seu apogeu com Ésquilo, conseguia atingir esse desiderato de arte global. Assim o drama wagneriano é a readaptação de algo que já existiu sob outra roupagem e que tem por objectivo usar as várias formas de arte com o intuito de produzir uma intensa vivência do belo, tão intensa que o leve a amar e a empreender o caminho para o encontro consigo mesmo.

O órgão da visão serve para captar imagens e movimentos. Através dele podemos ter uma acesso a uma realidade mais próxima, imediata. Vejo o que está ao alcance do meu olhar, e como a vida é movimento, a coreografia preenche essa necessidade perceptiva do meu ser observando outros seres e seus movimentos que podem representar o meu próprio movimento pela existência.

As palavras com ritmo criadas pela poesia abrem-me as portas ao entendimento, colocam movimento nos meus pensamentos de maneira a sair do estado de consciência onde me encontro para me dirigir a outro nível que ainda não era existente para mim. Acedo a outro patamar da realidade através da compreensão pela razão.

O ouvido abre-me a porta aos sons concatenados e assim poder entrar em espaços desconhecidos… Sim, os olhos fizeram-me ver o mundo em redor, as palavras levaram-me a aceder à compreensão, mas… e a música? Aqui sentimos a outra realidade que está mais além.

Podemos socorrer-nos de um esquema dos antigos gregos para a compreensão do universo ou realidade e assim, a unidade, sem deixar de ser una é passível de ser analisada sob três aspectos: físico, psíquico e espiritual. A visão, com as suas correspondentes formas de arte associadas, dá acesso a uma realidade mais imediata, próxima, que podemos relacionar com a esfera física; a poesia ou palavra permite um campo de ligação, mediação, de linguagem que comunica e faz ponte entre uma e outra esfera opostas e complementares; por último, os sons harmonizados puros levam-me a essa esfera desconhecida mas fonte do conhecimento, invisível mas fonte da luz, incompreensível mas princípio de toda a compreensão.

Segundo este esquema, então, a visão e subsequentes artes plásticas em imagem e movimento dão a dimensão física, enquanto a audição e consequente arte mais profunda que é a música dá-nos a porta para a dimensão espiritual. E o papel da palavra como poesia, que está em posição intermediária, qual será? Estando no meio fazendo uma espécie de ponte entre uma e outra realidade para onde se dirigirá? Wagner concluirá que o papel desta forma de arte, a palavra ritmada que proporciona o entendimento, deverá orientar-se para a esfera superior, o mundo espiritual. Assim, as suas obras, que apelidará de dramas, contrapondo à forma ópera da época que tinha grande sucesso entre o público e que, geralmente, versava temas triviais do quotidiano, versarão sobre temas que vão para além do simples quotidiano. O compositor chegou a essa conclusão aquando de uma fase da sua vida em que, passando por grandes conflitos interiores e estando a escrever uma peça sobre Frederico Barba Roxa versando um tema histórico, conclui que os seus temas não podiam estar direcionados para realidades tão concretas e objectivas, para cenas espaço-temporais bem definidas. Aí percebeu claramente que apenas os mitos podiam cumprir essa tarefa de direcionar a consciência humana para a esfera espiritual. Nasceu assim o drama wagneriano! Cenários e personagens em movimento, textos poéticos escritos pelo próprio com base na Tradição simbólica e música também inovadora sempre a preencher esse espaço da consciência humana onde o inconsciente é soberano.

No outro lado do oceano Atlântico, nos Estados Unidos, pela mesma época temos um autor que, curiosamente, faz algumas reflexões sobre a arte, especificamente sobre literatura, coincidindo na categorização das funções. Edgar Allan Poe, o poeta e maior escritor de contos intensos impregnados de realidades psíquicas, foi também um artista-filósofo, isto é, alguém que não somente produz obra mas que também reflectiu sobre o que fazia e sistematizou o seu pensamento nalguns escritos teóricos para a posteridade.

Retrato de Edgar Allan Poe, por Samuel Stillman Osgood / wikipedia

Este artista trabalhou apenas a palavra, portanto o verbo nas suas várias formas onde a poesia tem o destaque. Nesta forma, a poesia, faz uma análise da prosódia da língua inglesa onde se denota a importância dada à sonoridade musical proporcionada pela poesia, comparando com a superior prosódia do grego clássico.

Na arte da escrita com as várias formas possíveis, a poesia ocupa a posição mais elevada pela sua condição de escapar à racionalidade, de conter algo dessa esfera desconhecida, espiritual, inconsciente. Citamos:

“Na minha opinião, um poema opõe-se a uma obra de ciência por ter como seu objectivo imediato o prazer e não a verdade; opõe-se ao romance, por ter por seu objecto um prazer indefinido em vez de definido, sendo poema apenas e quando este objectivo é alcançado. O romance apresenta imagens perceptíveis com sensações definidas e a poesia com sensações indefinidas, para cujo fim a música é uma parte essencial, dado que a nossa concepção mais indefinida é a compreensão de um som doce. A música, quando combinada com uma ideia aprazível, é poesia; a música, sem a ideia, é apenas música; a ideia, sem a música, é prosa por causa da sua própria qualidade de definição.”[2]

Noutro texto deste autor, um verdadeiro sistematizador da literatura norte-americana, procura definir o que é a poesia, ou melhor, um poema, revelando a função última da poesia como forma de arte.

“Eu defendo que um poema longo não existe. E mantenho que a frase «um poema longo» é simplesmente uma categórica contradição nos termos. Será quase desnecessário salientar o facto de que um poema merece este título apenas na medida em que excita, provocando a elevação da alma. O valor do poema é proporcional a esta excitação que enleva. Mas todas as excitações, devido a um condicionamento psíquico, são efémeras. Esse grau de excitação que permite que um poema possa sequer ser assim chamado não pode sustentar-se continuamente ao longo de uma composição de tamanho muito longo. No máximo, ao fim de meia hora, esmorece – declina – seguindo-se-lhe a reacção inversa – e então o poema, efectivamente, e de facto, deixa de o ser.”[3]

 

 

[1]Leão Hebreu, Diálogos de Amor, INCM, Lisboa, pg. 266
[2]Carta a B, in Poética (textos teóricos), FC Gulbenkian, p. 26
[3]O princípio Poético, idem, p. 141