O ser humano necessita conhecer a sua história, para deste modo reconhecer-se a si mesmo e à sua própria vontade de ser. E necessita também saber que está a construir o futuro, ou seja, que está a fazer história, que está a escrever no Livro da Vida em traços indeléveis, pois tudo aquilo que não se escreva assim é devorado, como dizia Baltasar Gracían no seu Criticón, na Caverna do Nada.
O auge do romance histórico responde, precisamente, à necessidade de perceber, de alguma maneira, os chamados ventos da História, ainda que seja na imaginação, através da literatura. E ainda que esta última se apoie muitas vezes não só na rocha firme dos factos inequívocos, mas também no reino infinito das possibilidades de que se alimenta a ficção e a fantasia.
Pouco nos satisfaz que nos mostrem o passado segundo a historiografia marxista — e que, portanto, deveria estar já obsoleta — através de processos coletivos e económicos e onde os acontecimentos individuais nos quais se gesta o heróico são arrojados ao esquecimento, para que nele se dissolvam. Pode ser que lhes seja útil a certos especialistas estudar a História assim, mas ao público, em geral, isto é-lhe indiferente. Necessitamos aprender do passado e voltar a considerar a História como Magistra Vitae. Necessitamos imaginar e sentir como faz o herói, pois a vida sem atos heróicos, ainda que sejam os do herói quotidiano e desconhecido, é uma vida carente de significado. Sem sacrifício generoso e livre aproximamo-nos perigosamente do bestial pela mão peluda do egoísmo.
É por isso que necessitamos, como o sedento da água, de obras que nos devolvam a História. E se a leitura de clássicos por vezes nos é difícil e para alguns demasiado austera, o romance histórico preenche esse vazio tão perigoso para a alma e outra vez sentimos na nossa imaginação o eco dos exércitos em marcha fazendo estremecer a terra e os silfos do ar agitando estandartes e bandeiras; sentimos o eco silencioso e recolhido, íntimo e fecundo, da vigília de um templário sempre fiel à Ordem e ao seu lema Non nobis, non nobis sed nomine tuo da gloriam1.
O problema deste género, o romance histórico, é que respondendo à procura, literalmente foi saturando o mercado, crescendo exponencialmente… infelizmente já quase ad nauseam. Ad nauseam quando a fantasia reina caótica e faz com que o historiador e o leitor culto clamem ao céu, ou simplesmente não leiam além do primeiro capítulo. Ad nauseam quando diminuímos a coragem e a dignidade dos atores históricos fazendo-os cúmplices do — senão iguais a — nosso nanismo psicológico e moral, fazendo-os pensar, dizer e fazer o que envergonharia o mais humilde dos seus súbditos ou o mais libertino ou sombrio dos seus seguidores: invertendo e deformando a escala de valores do herói ou protagonista histórico para a fazer semelhante à que é bem aceite na nossa época, ou “politicamente correta”. Ad nauseam quando para manter a atenção do leitor, quando falta documentação erudita – ou por vezes o mais básico conhecimento do século que retratam – é necessário encher as páginas cortejando o género erótico quando não abertamente pornográfico, querendo pintar com mil novos matizes o ato sexual ou pervertido que por mais voltas que se lhe dê se reduz sempre ao mesmo, como sucede com qualquer função biológica básica. Ai do leitor que carece de formação ou discernimento! Acabará a acreditar sabe-se lá em quê! Como na seleção e queima de livros em casa do bondoso Alonso Quijano, seria necessário fazer uma depuração severa, separando o que alimenta a alma do que a envenena, o que retrata cenários históricos do que não tem nenhuma credibilidade. E se não o fazemos, pois não está no espírito da época, o tempo, inexorável nos seus ditames, lançará à Caverna do Nada os que nada mereceram, pois não escreveram para mais que encher os seus bolsos e para satisfazer a insaciável voracidade de um mercado que lê os livros como quem come amendoins, pois por detrás está o vazio pavoroso da não reflexão.
Graças aos céus que há livros que cumprem perfeitamente o que se espera deles e salvam a dignidade deste género, o romance histórico. Bem documentados, referindo-se a factos, usando a imaginação para preencher as lacunas ou para tecer uma trama que humanize a narrativa, abrindo-a à linguagem de belos sentimentos e propósitos. Pois não esqueçamos que a Literatura é, ou deve ser, Arte e não há Arte se não encarna e faz presente a sempre amável beleza. Não é necessário somente narrar factos, figurar diálogos, recrear cenários, repetir lições. É necessário fazê-lo de forma bela, dando-lhe esse toque mágico, o toque da própria vida, que faz que como na cerimónia e no beijo do amanhecer, o eternamente repetido seja sempre maravilhosamente novo.
O Templário do Rei é uma destas obras que rendem culto ao amor, à beleza e também à verdade histórica e à objetividade, e para isso quantos milhares de horas de investigação e viagens nos últimos cinco anos deverá ter sobrelevado esforçadamente o autor, meu amigo, o professor António Balcão Vicente! Se ele se permite licenças próprias deste género, rapidamente esclarece quais são, deslindando o que constrói com a sua imaginação literária do que narra como historiador. António Balcão Vivente é doutor em História Medieval e sabe do que escreve, não improvisa, trabalha esmeradamente a temática que narra e ainda que este pareça ao leitor um modo elegante e fácil de ler, adivinha-se o labor ingente que fica escondido.
O romance narra a história de um templário que, depois de muitas vicissitudes e aventuras, no Oriente e como conselheiro do Rei Pedro III, o Grande, de Aragão, recebe a missão de conduzir a sua filha e princesa Isabel — para os portugueses a já imortal Santa Isabel, Patrona de Coimbra — até à sua cidade de Trancoso, onde será desposada por D. Dinis, jovem rei de Portugal e dos Algarves. D. Dinis, sexto rei de Portugal, é o primeiro governante deste país que fechou a fronteira atual e exerceu sérios labores civilizadores estabelecendo os fundamentos militares, agrícolas, económicos, legislativos, diplomáticos, comerciais do que seria Portugal como grande nação, por certo, a nação mais antiga da Europa. Santa Isabel é a única rainha santa da nossa história e a devoção que se tem por ela neste país é muito grande. O seu milagre das rosas — semelhante, por certo, à de outra rainha Santa Isabel, a da Hungria, que foi sua tia-avó — vincula-a em certo modo à deusa regente destas terras e nação, a Deusa Vénus, segundo canta o seu mais ilustre vate, Camões, na epopeia de Os Lusíadas.
Platão dizia que os melhores homens de prata, ou seja, os guerreiros mais sábios, convertem-se em homens de ouro, regidos não já pela luta contra as sombras internas e externas, mas pela vivência das Leis da Alma do Mundo e, portanto, da Sabedoria. São eles os que vivem a Justiça do modo mais acabado, e estão por isso capacitados por natureza e méritos, a ditar esta Justiça como juízes, como legisladores e conselheiros, como educadores e como governantes. O protagonista deste livro, Frei Arnaldo, é apresentado como tendo superado a guerra exterior — depois de a ter exercitado, precisamente para vencer-se a si mesmo — e pela sua prudência, tacto e sabedoria é escolhido como conselheiro real, primeiro do Rei D. Pedro de Aragão e depois pelo próprio Rei de Portugal, D. Dinis.
O autor explora as relações do Templo com outras irmandades cavaleirescas, inclusive islâmicas, como a dos Assassine; e Frei Arnaldo, além disso, inicia-se no ascetismo sufi do maior filósofo do Islão, Ibn Arabi, chamado o Mestre Máximo. Pouco a pouco a dureza da vida, e a guerra como disciplina para estabelecer a ordem nela ou cumprir os desígnios da História, vão-se transmutando numa doutrina do amor universal que subjaz a todas as religiões e que se expressa de um modo acabado neste romance no Culto ao Espírito Santo, o que por certo tantíssima importância deu Cristóvão Colombo. São descritas pormenorizadamente algumas das festas folclóricas desta religião eterna que se traduz também nas vivências e ensinamentos das doutrinas cátaras, de franciscanos e templários. Há reflexões e cenários onde se considera que os verdadeiros inimigos são sempre a violência e o egoísmo, e a violência e o egoísmo de aqueles que querem manter o seu status quo e devorar o seu oposto, como um monstro de duas cabeças, e semelhante, no terrível, à Grande Besta do Apocalipse. Por um lado, o poder político ao serviço das ambições, simbolizado pelo imperador ou a coroa régia; e por outro o poder religioso, não contente com a missão de salvadora de almas, que quer também ser possuidora de fazendas e fortunas. Recordemos que neste século (e não só) os Papas lançavam como feiticeiros as suas invetivas e maldições, interditos e excomunhões, como se fossem dardos psicológicos de um poder letal, com o poder de desmembrar as sociedades dos países que não quisessem submeter-se aos seus desígnios “temporais” e, portanto, seculares. Estas excomunhões e interditos quebravam a relação e fidelidade do súbdito para com o seu senhor, a sua validade ante os olhos de Deus, e promovia o caos e a anarquia. O Rei Afonso IV, pai de D. Dinis, morreu angustiado pelo peso insuportável de tais maldições, e o Rei D. Dinis teve que fazer um minucioso e hábil trabalho de engenharia diplomática para reestabelecer sem grandes perdas as boas relações com Roma.
Uma das cabeças sujeitava uma coroa real, correspondendo-lhe um braço cuja mão segurava um ceptro. A outra, mais aterradora ainda, ostentava uma tripla tiara pontifícia, sustentando na mão correspondente um crucifixo que a qualquer momento parecia soltar-se. A sua presença infundia horror e impedia o acesso à porta do Templo, enquanto se retorcia como se a cabeça real quisesse separar-se e esmagar a cobertura com a tiara papal.
Nesta obra, e espelhando muito bem o que sucedia na época que descreve, há alusões ao Rei do Mundo e a uma Nova Idade de Ouro, associadas à busca do Preste João, (mítico?) imperador exemplar e viva encarnação do poder e justiça do Rei do Mundo. São também de grande interesse os seus relatos sobre a iniciação e a doutrina dos Avatares ou Enviados de Deus (ainda que, claro, não com o nome oriental, que em sânscrito significa precisamente “os que descem”, pois o céu descende à terra na forma de homem-Deus). Não faltam as lições de Alquimia, de Matemática e Geometria Sagrada, do simbolismo associado ao processo da Construção (tão caros à cosmovisão e psicologia maçónica), de subtil Diplomacia e Estratégia de governo, etc. Descrevem-se pormenorizadamente e explicando o seu simbolismo uma multitude de mosteiros e capelas, e chamam-nos especialmente a atenção as pinturas românicas das igrejas do Reino de Aragão, fazendo um percurso que o leitor pode seguir num dos mapas que ilustram a publicação e que convertem o romance num magnífico livro de viagens para se adentrar na história e arte medieval. E não só neste reino das Espanhas, mas também nas diferentes igrejas — cistercienses, monumentais, como a da Batalha e Alcobaça; ou recolhidas mas carregadas de “algo” mistérico como a templária de Santa Maria em Tomar — e castelos e encomendas desta Ordem dos cavaleiros ao serviço do Rei dos Reis.
Encontramos neste livro diálogos e ensinamentos muito fecundos sobre como nasce o mito, ou como a Natureza se abre ante quem sabe interrogá-la. Meditações muito penetrantes a respeito da vida e das provas internas do templário, e como a sua senda é uma senda de purificação nas dificuldades e de sacrifício permanente dos seus apetites pessoais.
Não só os lugares são descritos minuciosamente, mas também as cerimónias e honras fúnebres dos reis, a de coroação (a rei morto rei posto) e as vigílias que o antecedem, do Rei D. Dinis e de D. Pedro, com todos os seus elementos simbólicos e frases rituais próprias.
O momento em que está situada a cena recorda as perseguições brutais de que foram objeto cátaros e albigenses, devido às quais se deu nascimento à Inquisição — na bula Ab abolendam do Papa Lúcio III em 1184 — tão vinculada depois a Santo Domingo Guzmán e aos seus canes dei (cães de Deus), guardiães zelosos do Santo Tribunal. Instituição de triste memória nunca abolida oficialmente, que se saiba.
E já paira no ar a futura tragédia da Ordem do Templo, pérfida e brutalmente traída pelo rei francês Filipe, o Formoso, e pelo seu dígito e títere no Vaticano, o Papa Clemente V, igualmente assassino. D. Dinis, valentemente e com a diplomacia e habilidade de que sempre fez gala, conseguiria transferir bens e homens à Ordem de Cristo nascida oportunamente… mas isto não é narrado neste livro, e o leitor o agradece, pois é um acontecimento tão triste!… Ou talvez mais triste seria saber porque não se defenderam, ou porque o destino pronunciou a sua sentença de morte. Mas, quem o sabe? Talvez Raimundo Lúlio…
E se o trabalho da pedra bruta para convertê-la em cúbica é de inspiração maçónica, encontramos também ecos da sabedoria de São Bernardo e da sua ordem cisterciense, e do trovar clus, ajustando música, matemática e poesia. E ainda que não o mencione expressamente, é várias vezes insinuado que a poesia é, como dizia Tagore, o eco da melodia do universo no coração dos humanos. É assim que os trovadores, inspirados na Dama Ideal ou na Virgem Maria (a Natureza em seu estado virgem, pristino; a Mãe do Mundo e Estrela de Alva) conseguiam fazer da religião poesia e da poesia religião.
Este é, enfim, um livro muito apropriado para se dar a ler e explicá-lo nas aulas de História a adolescentes e jovens, pois reúne uma grande documentação erudita, gerando o interesse por todos estes temas antes mencionados (e outros) dando-lhes uma forma muito atrativa. Seria também muito válido — e que conste que não ganho um cêntimo escrevendo estas linhas ou recomendando esta leitura! — para fazer uma série televisiva histórica (tão procuradas hoje em dia) que tanto bem faria a portugueses e espanhóis, desconhecedores, em geral, deste período histórico.
Terminamos esta breve resenha com as palavras do próprio autor no Epílogo do livro, pois elas são uma declaração de intenções que nos é de grande interesse. Aristóteles dizia que podemos saber tudo sobre algo se perguntarmos o quê, quem, como, quando, por quê, onde… Bem, aqui se respondem a várias destas perguntas:
Este livro surgiu a partir de uma proposta do Professor Paulo Loução para que abordasse, por meio de um romance histórico, a temática da influência da rainha Santa Isabel no desenvolvimento do culto ao Espírito Santo em Portugal. Tratava-se de um projeto sem um termo fixado de antemão, implicando uma grande investigação documental relativa à Coroa de Aragão, no século XIII.
Rapidamente constatei que as supostas influências de D.ª Isabel radicavam em profundos sentimentos populares de cariz religioso, muitas vezes materializadas de forma exotérica, e com um fundo comum aos territórios da Coroa de Aragão e do Reino de Portugal.
Nesta amálgama básica combinavam-se influências pré-romanas, heresias dos primeiros séculos do Cristianismo e uma profunda desconfiança da centralização litúrgica desencadeada por Roma.
Muitos destes componentes convergiam em movimentos com características diversas que podiam derivar tanto de uma dose de messianismo milenarista como que de um retorno a uma mítica pureza e simplicidade originais, ou inclusivamente, de algumas formas redutoras de dualismo gnóstico, de proveniência oriental. Foi devido à riqueza desta imensa diversidade que se desenvolveram as inumeráveis heresias combatidas pelo poder de Roma de um modo tão feroz como ausente de glória, e sempre apoiado num braço secular. Entre esses movimentos, ainda que aparentemente sem nada em comum, assumiram uma importância fundamental o catarismo, o movimento templário e os franciscanos, tentando manter-se sempre no fio da navalha em equilíbrio entre a heresia e o estipulado pela Ecclesia.
Estabelecidas estas balizas, é importante também admitir que a investigação e a escritura desta obra se desenvolveram em dois momentos claramente diferenciados, separados por um período de aproximadamente um ano, durante o qual ao autor lhe foram apresentadas novas perspetivas de interpretação filosófica da vida, como resultado de uma experiência de quase-morte que viveu. Este acontecimento influenciou de um modo importante o processo mental de realização desta obra.
Para a elaboração do texto recorri a fontes documentais de diversa proveniência, destacando especialmente as de produção régia, monástica e episcopal, no caso da Coroa de Aragão, e das Chancelarias de D. Afonso III e D. Dinis, no caso de Portugal.
De entre as fontes narrativas relativas à Coroa de Aragão, pareceram-se de especial importância o Libre dels feits de Jaime I, a Crónica de el-rei Dom Dinis de Rui de Pina, a Monarquia Lusitana e a Lenda da Rainha Santa Isabel.
Além destas usei outra, em particular, apesar de que era consciente da sua falta de autenticidade. Trata-se dos, vulgarmente, designados Estatutos Secretos do Mestre Roncelim, que serviram de base à descrição do episódio iniciático que se desenvolve na Encomenda do Templo, em Paris (…)
A descrição dos ambientes, tanto físicos como mentais, corresponde nas suas características, à segunda metade do século XIII. Algumas retratam somente o momento que tentam reproduzir. Outras, pelo contrário, evocam o sonho que leva a alma a enfrentar o desconhecido, como Frei Arnaldo, ao viajar numa barca imaginária, num mundo que os portugueses foram construindo, peça a peça, enquanto sustiveram a universalidade fraterna, que os fez imaginar um Preste João e um V Império, que está ainda por ser realizado.
Anotações
1. “Nada para nós, nada para nós, Senhor, mas para a glória do Teu Nome.”
Libro notable, por su erudición y los diálogos, tan esclarecedores, así como por sus reflexiones filosóficas.